Arcanum Brasileira

Autor(a): Gabriel Barrenha


Volume 1

Capítulo 10: O clã Wastly

Levantei da cama e fui até a porta. Quem poderia ser? O Afonso, talvez?

Destranquei, abrindo-a. Era uma mulher de uniforme, trazendo consigo uma pequena mesa móvel; cheia de comes e bebes. Um explendido café da manhã!

— Perdão por interrompe-lo, senhor Hofirman. — Os seus olhos estavam fixos no chão. — Vim apenas trazer a alimentação do senhor e da senhorita Snow.

— Comida?! — Elizabeth pulou da cama, correndo até nós. — Tudo parece tão delicioso! 

O seu olhar explanava o apetite, só faltava salivar. Não pude deixar de gargalhar.

— Muito obrigado! Mas é muito para só duas pessoas, não vamos conseguir comer tudo!

— Fale por você.

Elizabeth não perdeu tempo e pegou um dos pães recheados com frios.

— Se ficarem satisfeitos, basta tocar neste botão ao lado da mesa, que eu venho retirar o que sobrou. — A mulher deu um passo para trás. — Agora, se me dão licença.

Ela saiu andando rapidamente pelo corredor, sem olhar para trás.

Me virei para a Elizabeth, que devorava o pão, enquanto enchia um copo com suco.

Olhei para os demais quartos, percebendo que todos haviam recebido uma mesa semelhante a nossa, não tão farta; mas ainda assim, repleta dos mais variados alimentos.

— A comida aqui é paga?

— Sim. Os seus pais. São os responsáveis. Por pagar.

Apenas uma das portas estava fechada, sem uma mesa móvel parada na frente. O quarto 55.

— Aquele dormitório já recebeu o café da manhã? — Era mera curiosidade.

— Nenhum funcionário. Entregou algo lá.

— E quem está nele?

— Os gêmeos. Do Clã Wastly.

“Aqueles dois!”

Por que eles não foram servidos? Teriam dispensado? Trouxeram o próprio alimento? Ou…

Senti um grande pesar em meu peito.

— Elizabeth — a chamei. Ela me olhou e respondeu algo indecifrável. — Meu Deus…

Engoliu o que tinha na boca e perguntou o que eu queria.

— Aqueles dois, os elfos! Eles estão no quarto aqui do lado; o 55. E, aparentemente, não receberam o café da manhã.

Ela parou por um instante, procurando a porta a qual eu me referia.

— E nós temos de sobra — concluíu o meu pensamento.

Ambos olhamos um para o outro, sorrimos e nos apressamos em fazer aquilo que seria o correto. Empurramos o carrinho até a porta do quarto e paramos.

— E se entrarem em choque após me verem?

— Realmente... O que aconteceu antes pode se repetir. Mas não é uma boa idéia se esconder e aparecer do nada.

Suspirei. E agora? Não podia esperar que, num passe de mágica, eles virassem nossos amigos; como também não fazer nada pode só piorar a situação.

— Só… vamos tocar a campainha — afirmei, por fim.

Eu não sabia ao certo como agir diante de pessoas que me temiam — ou odiavam — por algo que a minha família provavelmente fez. Deveria pedir desculpas?

Elizabeth acionou a campainha. Demorou, mas obtivemos resposta. Era a voz da Mical, perguntou que era.

— Serviço de quatro! — Elizabeth respondeu.

Ouvimos apenas sussuros vindo lá de dentro. A porta foi destrancada e aberta lentamente; o rosto da garota apareceu pela brecha.

Seus olhos se encontraram com os da Elizabeth, que acenou amigavelmente. Eu estava na lateral contrária da porta, não fui visto.

— Elizabeth Snow!

Mical logo destrancou a porta, mesmo com os protestos do irmão, que ecoavam pelo corredor todo.

— O que faz aqui?! Nós não esperávamos a sua visita!

— Nós só viemos conversar um pouco. E também compartilhar o café da manhã, já que é demais para só duas pessoas! — Elizabeth se inclinou para mim.

Mical finalmente me viu. O brilho em seu olhar desapareceu, sendo substituído por um pavor anormal.

A garota bateu a porta na nossa cara. Estava tão desesperada que nem mesmo a trancou, devia ter corrido para perto do irmão.

Olhei para a Elizabeth, que me olhou de volta. Eu gostaria de abrir e adentrar no quarto; poderíamos ter feito isso. Mas invadir o espaço deles não seria uma solução tão boa assim.

Dessa vez eu bati na porta. Três vezes seguidas com três batidas cada.

— O que você quer, Hofirman?! — Era o Alex. A sua voz nos revelava a sua agressividade e medo.

— Nós recebemos o café da manhã lá no nosso quarto, mas tem comida demais… Pensamos em dividir com alguem!

— Acha mesmo que vamos cair em sua ladainha?! Vocês não passam de enganadores e assassinos cruéis!

Fiquei paralisado diante de tal resposta. Eu não esperava por aquilo. Como responderia tais afirmações?

Elizabeth, percebendo o meu dilema interno, interviu na conversa.

— Nós realmente não temos a menor idéia do que houve entre a sua família e a do Neri, Alex. Quando nos encontramos do lado de fora do trem eu te disse, lembra? Até duas semanas atrás, nem mesmo sabíamos sobre a existência de um mundo onde seres poderosos existem! Então se puderem dar uma chance para nós conversarmos…

Após um pequeno silêncio, a porta se abriu lentamente, deixando apenas uma pequena brecha para nós vermos os olhos do rapaz.

— Como saber se o que dizem é verdade?

— Eu não sei, Alex. Mas podemos conversar e descobrir! O que acha de um café da manhã… entre amigos?


Os irmãos Wastly haviam cedido e permitido que entrássemos em seu quarto.

Ele era igual ao nosso; deveria ser um padrão da locomotiva.

Empurramos a mesa móvel para dentro do comodo e perguntamos se eles estavam com fome. Seus olhos revelavam aquilo que não disseram com palavras.

— Tem coisas demais para a Elizabeth e eu — falei, logo após perceber que eles realmente não tinham uma mesa móvel com alimentos, como eu havia imaginado. — Sintam-se a vontade para pegar o que quiserem.

Logo percebi que o Afonso estava dentro do quarto conosco. Sua cabeça quase tocava o teto.

— Você não havia dito que não entraria no quarto?

— No quarto de vocês. Não. Mas em local. Onde não estão. Sozinhos. Não me é. Permitido deixá-los.

— Ele é o segurança particular de vocês? — Mical perguntou.

— Sim — Elizabeth respondeu. — Aparentemente, são os nossos pais quem estão pagando.

Mesmo que o Afonso tivesse o tamanho de um armário, ainda assim, os irmãos Wastly parecia ter mais medo de mim, do que do grandalhão. A garota não saiu, em momento algum, do lado do irmão desde que nos aproximamos.

— O que vocês dizem é verdade? — ela questionou, sem olhar para nós. — Não sabiam que tinham poderes?

— Qual é, Mical! Acha mesmo que estes dois não teriam noção de tal coisa?!

— Olha, eu não sei o que vocês pensam de nós — Elizabeth interrompeu, se entupindo com os mais diversos doces que haviam sido servidos. — Mas se levarmos em conta as coisas que o meu pai nos contou, um Snow é capaz de congelar este trem inteiro se quiser. Enquanto eu não consigo nem mesmo resfriar um copo d’água!

— E no meu caso, não tenho a menor noção de qual pode ser o meu poder — complementei.

— Os Hofirman’s são prodígios desde que nascem! Espera mesmo que caíamos nessa ladainha?! Mesmo que tivesse passado anos sem ter o conhecimento do seu poder, você o dominaria em questão de horas!

Suspirei. Como faria para ganhar a confiança daqueles dois? A Mical parecia bem mais disposta a ouvir o nosso lado; mas o Alex…

— Não importa o quão bom ou inocente você diga ser. Um Hofirman ainda é um Hofirman! — Os olhos dele queimavam numa fúria quase que palpável. — Vocês nos iludiram, aprisionaram em campos de trabalho e nos massacraram sem o menor resquício de remorso… Só para depois vir um, dizendo que não sabe de nada?

— Campos… de trabalho? — repeti.

Eu já havia ouvido aquele termo referente a outros acontecimentos. Senti um aperto no peito, esperava que não fosse o que imaginei.

— Nós éramos os guerreiros perfeitos, Hofirman. Os melhores em reflexos, força, agilidade e adaptabilidade… até vocês sentirem medo da nossa evolução! Pensaram mesmo que, um pequeno clã de elfos, seria capaz de superar a obra perfeita da criação para combater os Nifons?! — Ele riu constrangido, uma lágrima solitária escorreu em seu rosto. — Por que pensaram que nós seríamos melhores que vocês?!

— Alex… — sua irmã o chamou.

— Se pedissem, teríamos nos ajoelhado de bom grado perante vocês… Então… por que? Por que matar os mais fortes, e abandonar os fracos e doentes para morrer? O ego de vocês é tão grande que não bastou dizimar os símbolos do clã Wastly! Tiveram que humilhar os que restaram, mostrando que, se quisessem, era só dar meia volta e terminar o serviço!

— Alex, para… Por favor… Você não entende que isso só faz mal para você?! — Mical o abraçou, enquanto lágrimas banhavam o seu rosto.

O rapaz a empurrou, tentando afastá-la.

— Eu jamais vou perdoar os Hofirman's, Mical! — Ele olhou em meus olhos. — O meu ódio por cada um de sua família não desaparecerá; nem mesmo após a morte… Mesmo que eu tenha de descer até o inferno para caçar cada um de vocês, assim eu o farei!

As palavras do Alex vinham como facas em minha direção, perfurando cada centímetro do meu ser. Agora eu entendia o porquê de tamanho pavor e raiva. O porquê deles parecerem tão distantes e impossíveis de se alcançar.

— Não me diga que é inocente, Hofirman! Você estar ciente ou não do que a sua família fez, não te isenta da culpa que o seu sangue carrega! Não importa o que você faça, não irá apagar o passado! A sua família tem uma dívida conosco, mas ela não poder ser—

Elizabeth atravessou a distância que havia entre nós e eles como um raio, acertando o rosto do Alex com um tapa. A força foi tamanha ao ponto de fazê-lo cambalear para o lado, estava desorientado.

Mical tapou a boca com as mãos, enquanto as suas lágrimas cessaram quase que instantaneamente. O choque a fez ficar petrificada, olhando para a Elizabeth com espanto.

— Não ouse dizer coisas tão sujas para ele! Você está tão cego pelo próprio ódio, que nem mesmo enxerga aquilo que está em sua frente! Como pode descontar sua frustração sobre alguém inocente, Alex?!

O garoto a olhou com raiva e confusão. Pude ver, de relance, o Afonso segurar no cabo de sua espada.

— O Neri é a melhor pessoa que você vai conhecer nesse mundo, Alex Wastly! Mas a sua ignorância e raiva não te permitem ver isso… — A Elizabeth suspirou, dando um passo para trás. — Realmente lamentamos por tudo o que aconteceu com a sua família… De verdade. Mas descontar sobre alguém que nem mesmo sabe o que está havendo consigo próprio, não é a solução.

Um silêncio constrangedor pairou no ar. A força do tapa parecia reverberar no interior do Alex, enquanto a Mical, ainda estática, tentava processar o que aconteceu. Até mesmo eu me encontrava surpreso com a atitude da Elizabeth.

Ela se virou e me puxou pela mão, dizendo para irmos embora. Nós dois saímos, sendo seguidos pelo Afonso, que nos acompanhou até o nosso quarto; ficando estagnado ao lado da porta.

Elizabeth parou e me abraçou forte. As palavras do Alex pareciam ter a afetado tanto quanto a mim.

— Não importa qual o histórico da sua família, Neri. Você não é como os demais…

Retribuí o abraço em silêncio. Estava grato por saber que ela confiava em mim; mas… até que ponto eu permaneceria sendo diferente?



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