Apoteose Fantasma Brasileira

Autor(a): Alexandre Henrique


Volume 1

Capítulo 4: Corvo (2)

Uma praça tranquila, um ambiente que deveria ser seguro e perfeito para descansar. Bem, era isso que deveria ser, mas o que foi visto naquela manhã era algo terrível.

Um homem foi encontrado crucificado, sua testa sangrava pela cruz cravada em sua pele, seus braços cortados e emendados ao contrário, seu peito aberto com o coração faltando, sua face mostrando desespero. 

Leon não conseguia encarar aquele pobre homem crucificado. Ele olhava para as pessoas e podia ver o que elas estavam sentindo: medo, pavor, nojo e outras emoções complicadas. Até mesmo o delegado, um homem que havia lutado em guerras, estava incomodado com a cena à sua frente.

Embaixo do corpo, podiam-se ver outros detalhes da antiga investigação: desenhos de corvos, cartas e aquela história sobre um corvo. Mas tinha algo diferente dessa vez; havia um pendrive, o único objeto preso à cruz, acima da cabeça do homem. Leon podia ver os detalhes daqueles assassinatos. 

Eram uma mensagem, uma história contada. O assassino estava fazendo aquilo para contar sua origem ou até mesmo replicar sua vida, e essas pessoas estavam envolvidas com ele, por isso ele as estava matando.

Mas havia outro problema. Se todas essas pessoas estavam envolvidas, então elas teriam algo que as conectava umas às outras, e parecia que o delegado percebeu o que era.

— Tem algo que todos têm em comum — disse Leon enquanto olhava para o delegado.

O delegado tinha um caderno em suas mãos, ele folheou o pequeno caderno e olhou novamente para o corpo. Após fazer uma careta estranha, ele olhou para Leon.

— Eles todos têm uma tatuagem no pescoço, o símbolo nulo — disse o delegado enquanto apontava para o pulso do pobre homem.

— Então todos estão conectados. Parece que todos estão nesse culto, ou algo do tipo.

— Sim, sem contar que as cartas do professor eram para esse tal cientista, que está agora em nossa frente.

Leon e o delegado olharam para o corpo que agora estava sendo retirado do ambiente. Mas antes que pudessem fazer mais alguma coisa, alguém chegou para falar com o delegado em seu ouvido, e a reação que ele teve para com Leon não foi das melhores.

O delegado suspirou e olhou profundamente para seu caderno antes de fechá-lo irritado.

— Vamos. Temos outro corpo, dessa vez perto da casa do prefeito — disse o delegado enquanto suspirava em descrença.

Leon sentiu arrepios em sua espinha. A palavra "prefeito" e "corpo" não deveriam estar na mesma frase, mas mesmo assim era isso que havia acontecido. Os dois pegaram o carro da polícia e foram para onde o terceiro corpo foi achado. Como de costume, o número de jornalistas que estavam na cena do crime na praça era igual ao número que estava na frente do jardim do prefeito. Além disso, o próprio prefeito estava dando respostas para os jornalistas, afinal, ele era um político.

Leon e o delegado nem precisaram andar muito para encontrarem o corpo. Ele estava logo à frente do jardim, vestindo uma roupa de jardineiro. O problema era que ele não estava exatamente de frente para os policiais. 

Sua cabeça estava ao contrário do normal, enquanto suas mãos estavam faltando e suas pernas ligadas também ao contrário, o que fazia parecer um boneco costurado errado que tentaram arrumar, mas fizeram totalmente errado, piorando o que estava ruim originalmente.

— Puta merda! — exclamou o delegado enquanto colocava sua mão em sua boca.

O delegado não pôde deixar de xingar naquele momento. Tudo estava como o outro de manhã estava: a assinatura do assassino, as cartas, e também um pendrive. Leon, em sua mente, estava elogiando o assassino por ter a audácia de fazer aquelas coisas.

Por um momento, Leon se agachou no chão e sentiu sua cabeça queimar, além de sentir uma forte pressão.

— Vamos para a delegacia, filho — disse o delegado enquanto encostava nos ombros de Leon com preocupação.

O delegado tinha seu caderno em suas mãos. Ele havia anotado tudo e agora só tinha que revisar todas as evidências. Mas ele sabia que nenhum dos dois podiam aguentar aquilo agora, por isso eles precisavam voltar e tentar esquecer aquilo por um momento. Pensar demais em algo não iria fazer eles terem mais ideias.

Os dois se dirigiram para o carro, mas antes que pudessem entrar, o prefeito os chamou.

— Vocês têm alguma pista? — disse o prefeito com uma voz rígida, quase robótica.

— Não — suspirou — ainda não, senhor — respondeu o delegado imediatamente.

— Então se apressem. As pessoas começaram a reclamar, e isso poderá prejudicar a visão que as pessoas têm da cidade, algo que não queremos, certo? — disse o prefeito com um sorriso forçado no rosto.

— Sim, senhor — exclamou tanto Leon quanto o delegado.

Eles entraram no carro, por um momento, os dois não fizeram nada. Aquele momento era o que precisavam para analisar tudo que tinham. 

Logo de manhã, eles haviam encontrado uma pobre alma crucificada e logo depois outro que havia virado o demônio do “Exorcista”. Não era um bom dia, e por isso Leon quebrou o silêncio.

— Vamos voltar logo para a delegacia para finalmente terminar essa merda.

No caminho até a delegacia, ninguém falou nada, apenas o silêncio predominava, e assim continuou até eles entrarem na sala de evidência. 

Leon se sentou e viu todas as folhas e fotos, enquanto o delegado pegou dois copos e um líquido desconhecido de uma garrafa estranhamente velha.

Logo que os dois se sentaram e receberam o resto dos arquivos dos outros dois assassinatos, eles começaram a organizar os crimes.

— Certo, então, primeiro encontramos o professor, que já estava morto há dias, tendo sido preparado para ser encontrado daquele jeito. Depois encontramos o cientista que estava crucificado, e assim encontramos um jardineiro — disse Leon enquanto folheava fotos e documentos.

— Sim, todos tinham uma tatuagem de culto, além de uma história infantil bizarra sobre um corvo. Sem contar que temos arquivos de vídeo nos pendrives — respondeu o delegado pegando fotos da tatuagem dos pulsos e um notebook.

— Ok, temos que traçar quem morreu primeiro e a ordem das descobertas. É um quebra-cabeça que conta uma história, então temos que ser precisos em relação ao tempo.

O delegado pegou os papéis sobre a morte de cada pessoa e começou a organizar.

— Primeiro foi o cientista. Ele morreu no dia 9 e foi preparado para aquele crucifixo estranho. Então o professor foi morto no dia 11, e depois foi o jardineiro — disse o delegado mostrando os documentos.

Os dois ficaram em silêncio. Leon tomava mais um gole da bebida que aquecia sua garganta, enquanto a fumaça do cigarro saía em forma de suspiro. O delegado então pegou seu caderno e começou a olhar as páginas e logo percebeu algo.

— Parece que todos tinham uma conexão nas cartas. Todas falavam sobre o outro lado, assim como algumas cartas falavam sobre uma espécie de agência?

Leon lembrou dos pendrives e sugeriu:

— Precisamos ver os vídeos, eles podem ter alguma resposta para isso.

Os dois pegaram um notebook e colocaram os dois pendrives. Tentando abrir o arquivo que tinha um nome estranho “Phantázein”, algo deu errado. Eles precisavam de uma senha. O delegado soltou uma palavra não muito bonita quando isso aconteceu, mas Leon pensou na história do corvo.

Ele olhou para as histórias e considerou juntá-las, não nas ordens normais, mas sim nas ordens em que os corpos foram mortos, e assim teve uma história diferente.

“Existia um corvo que sempre quis ver o mundo pelos seus próprios olhos. Ele tinha a ânsia de curiosidade, mas sempre foi avisado pelos outros animais que não poderia se envolver com os monstros. O corvo não ligou para aquilo e viajou pelos lugares. Logo no primeiro que visitou, encontrou um homem que chamou sua atenção por ter a vontade de descobrir sobre o outro lado, algo que o corvo não sabia o que era, chamando sua atenção. O corvo observava o homem e quebrando a regra de falar com os humanos, ele perguntou ao homem:

— O que te deixa tão aflito, humano?

— Ó! Pequeno corvo, eu tenho que cumprir meu objetivo, mas tenho medo de passar do limite e acabar me perdendo.

— O que tem que pesquisar, humano?

O homem respondeu:

— Eu tenho que saber o porquê da vida, esse é meu fardo, quero saber sobre o que vem depois!

O corvo, sentindo o desespero e desesperança do homem, decidiu ajudá-lo.

— Então, deixe-me ajudar.

Os dois começaram a tentar descobrir o sentido da vida inicialmente, mas quanto mais tempo se passava, mais o homem ficava obsessivo pela descoberta da vida e sua pesquisa.

O tal “outro lado” era diferente do que imaginava. Ele precisava de algo vivo e a única coisa que existia ali era seu amigo corvo, o que causou ele aprisionar o pobre pássaro. Mas o animal ainda era esperto e, por isso, conseguiu confrontar o homem.

— Você não entende, corvo? Isso é meu propósito! Tenho que usar esse conhecimento para ajudar as outras pessoas!

O corvo respondeu:

— Você não percebe? Você está se tornando um monstro! Uma criatura obsessiva e perdida! Não é tarde demais! Você pode voltar, você não precisa acabar desse jeito!

— Não, é tarde demais! Eu achei finalmente o propósito da minha vida! E com isso, salvarei aqueles que também estão perdidos iguais a mim!

O homem então atacou o corvo, mas o animal escapou e o observou de longe, o homem se transformando em um monstro, que perseguia e sequestrava pessoas para descobrir sobre a vida, ou que quer que fosse o que ele estava pesquisando.

O corvo, desesperado pelo que viu, fugiu. Ele estava ferido, e por isso, quase morreu, se não fosse por alguém que o encontrou, uma mulher que tinha roupas brancas. Ela cuidou do corvo e então perguntou finalmente a ele depois de um tempo:

— Ó! Pássaro-da-morte, posso lhe perguntar o porquê de nós existirmos?

O pássaro ficou receoso e ao invés de dizer que era para encontrar o seu motivo e seu objetivo de vida, ele modificou sua fala.

— O sentido seria você cuidar da atualidade, viver sua vida conforme seu querer, mudar sua visão e tentar ajudar os outros ou então a si.

A mulher sorriu e saiu do local, e ele percebeu que ela era uma espécie de curandeira, onde ajudava crianças a curar suas feridas. Mas depois daquele dia, ela parou de curar direito as crianças e começou a ensinar diferentes coisas, como atacar os outros e como deveriam viver suas vidas. Ela manipulou as crianças conforme sua visão, e conforme o corvo observava, mais perigosa a mulher se tornava.

Indagando ela, ele perguntou:

— Por que faz isso com as crianças?

— Porque elas irão se machucar se não entenderem o mundo ao seu redor. Eu posso salvá-las. Se elas não se machucarem, elas nunca vão precisar ser curadas novamente, e meus ensinamentos são os corretos! E certos! Elas terão a malícia sobre o mundo cruel e frio!

O corvo ficou triste novamente. Ele não entendia o porquê de ela fazer aquilo. Ele sabia que o mundo era cruel, mas não ao ponto de fazer as crianças perderem sua inocência.

Depois de um dia, o corvo decidiu fugir do lugar, mas ela não gostou da ideia e falou que ele deveria ficar, já que ele também não sabia da malícia do mundo. O mundo de fora era pior do que o mundo que ela criou. O corvo rejeitou e fugiu do lugar, parando em outro, onde ele também viu a maldade já feita.

Ele encontrou um campo de batalha, onde havia apenas um soldado e apenas ele, já que seus amigos e seus inimigos estavam mortos. Ele avistou o corvo e perguntou a ele:

— Ó ave da morte, mensageira do fim, meu sofrimento irá acabar? Por que a vida é assim?

A ave pensou e respondeu:

— A vida é aquilo que escolhemos para nós mesmos, e seu sofrimento acaba quando você desistir de recusar a realidade e tentar mudar coisas que não podem ser mudadas. Eu já vi pessoas obsessivas pela falta de motivo em sua vida, já vi pessoas boas que ficaram maldosas devido ao medo, e agora vejo você, alguém que quer continuar o mesmo e não mudar. Mas não se esqueça, soldado, você ainda pode mudar e se perdoar. Mas parece que pela sua atitude, você não quer isso. Você tem medo da mudança.

O homem ficou sério e tentou matar a ave, sem sucesso. Ele culpou a ave por todo o seu sofrimento e a chamou de agourento. E ali ele ficou, naquele mundo devastado, esperando que tudo mudasse a sua volta por conta própria.

O corvo então voltou para sua casa após presenciar como as pessoas podiam virar monstros. O corvo acabou desistindo da curiosidade sobre o mundo e do seu coração que era puro perante a malícia dele. Ele escolheu acabar logo com tudo que lhe fizesse mal, como vingança pela perda da sua inocência e pureza. Ele escolheu acabar com aquilo de uma vez. Ele percebeu então que também havia se transformado em um monstro, por desistir da sua esperança. Assim, ele sorriu e percebeu que havia apenas ele, e mais ninguém.”

Leon sorriu após ter lido a história. Ele sabia agora do que se tratava. O delegado, vendo a atitude do garoto, sorriu também. Assim, Leon colocou a senha no arquivo bloqueado, “Esperança”, e desbloqueando, o delegado começou a ver os vídeos um por um. Alguns tinham o título de "cobaia" com fotos de crianças, enquanto outros tinham o nome de "entrevista" com o rosto de adultos, incluindo das vítimas que eles haviam achado. 

O delegado chegou a um arquivo que estava no segundo pendrive, um arquivo nomeado "Experimento Null Platina". Vendo aqueles vídeos, a expressão do homem foi de séria para nojo e irritação em segundos. E vendo a reação do delegado, Leon perguntou:

— O que houve?

O delegado engoliu e virou o notebook para Leon.

— É melhor você mesmo ver.

Leon ficou apreensivo e começou a ver os vídeos. Ele pôde entender o porquê do delegado estar daquele jeito. Os vídeos mostravam crianças sofrendo experimentos mentais e físicos, desde pequenos testes até punição corporal, isolamento e terapia de choque. Leon percebeu que essa tal agência estava tentando alcançar algo com as crianças, e alguns rostos familiares apareciam nos vídeos, os rostos das vítimas. Mas o último vídeo tinha um título diferente, era chamado de “A quebra”. 

Eram gravações de câmeras de segurança, mostrando o local pegando fogo e sendo destruído, com vários guardas sendo mortos. Era um caos completo. As crianças estavam matando umas às outras, e os guardas também. 

Podia-se ver cientistas acabando com a própria vida e algumas crianças fugindo do lugar, sendo lideradas por alguém. Podia-se ver todos que escaparam, desde o professor, o cientista, até o jardineiro que não era jardineiro, mas sim um soldado que fugiu em vez de enfrentar a multidão que estava indo para a saída.

— Mas que porra? — exclamou Leon enquanto sentia uma pequena gota de suor descendo de sua testa.

— Certo? — respondeu o delegado enquanto tomava um gole da bebida misteriosa.

— Então eles fugiram dessa loucura e agora tem alguém querendo se vingar deles — disse Leon enquanto passava a mão na cabeça.

— Possivelmente, uma das crianças que sobreviveram — disse o delegado enquanto apontava para a tela do aparelho.

Os dois ficaram em silêncio.

— Isso ficou escondido todo esse tempo, sem ninguém falar sobre?

— O que não é o mais chocante, se isso tiver relacionado com o governo? Como iremos falar com os superiores? — exclamou o delegado, enquanto batia na mesa.

Ele olhou para o vídeo pausado exatamente na cena de uma criança morta a tiros por um soldado. O delegado engoliu em seco e pensou em algo:

— E se nós apenas esquecermos isso?

— Como assim? Iremos falsificar provas? — questionou Leon.

— Não, apenas encobriremos as coisas. Temos que encobrir este caso, para que ninguém saiba disso — a voz do delegado ficou trêmula conforme falava.

— Não, temos que investigar isso direito! Você não vê? As crianças podem estar por aí em algum lugar! — exclamou Leon enquanto balançava a cabeça em discordância.

— E isso não te assusta? Essas coisas podem ser as assassinas! Você não vê no vídeo? Elas todas estavam loucas ao ponto de matar umas às outras!

O delegado se levantou e colocou a mão sobre o rosto. Leon sabia o que o delegado estava sentindo, era algo realmente difícil de aceitar e processar. Era preciso fazer algo muito bem pensado, mas da forma que eles estavam abalados no momento era impossível uma decisão certa sair dali. 

Por isso, Leon respirou fundo e fechou o notebook, tirando os pendrives e guardando-os.

— Vamos fazer o seguinte, vamos voltar para casa e tentar respirar um pouco. Não vamos falar disso para ninguém, até porque ninguém sabe de nada direito além de nós.

— Certo, eu preciso ver minha filha, e me acalmar — disse o delegado enquanto suspirava e passava a mão na cabeça.

— Dá um abraço nela por mim. Por mais que eu tenha vindo aqui para ver a família, eu não consegui encontrá-los nenhum dia — Leon se lembrava que a única vez que havia encontrado Alice era a sua festa de boas-vindas.

— Eu faço isso.

O delegado ficou em silêncio e com o olhar distante. Leon colocou sua mão em seu ombro e encarou ele. Os dois trocaram olhares e suspiraram.

— Eu vou ficar bem, Leon. Vamos voltar para casa, eu te levo lá.

— Bem, para dizer a verdade, eu vou para um lugar diferente — disse Leon enquanto ficava um pouco envergonhado.

— Hmm? Ah! Então nosso príncipe tem uma princesa! — disse o delegado enquanto batia nas costas de Leon.

O delegado começou a rir alto, fazendo Leon ficar ainda mais envergonhado.

— Então, me diga quem é? — perguntou o delegado com um sorriso debochado.

— Bem, o nome dela é Celina.

— A princesa da cidade? — ele parou para pensar um pouco — Bem, eu não esperava isso, mas pode-se dizer que os dois combinam, haha! Isso vai virar notícia! Vamos lá, eu te levo para a casa dela como um verdadeiro pai!

— Nossa! Me deu até arrepios! — exclamou Leon enquanto segurava seus braços.

Os dois riram e saíram da sala, que estava pesada com tantas desgraças. Foram diretamente para a casa da princesa e, logo que Leon desceu do carro, respirou fundo e caminhou na direção do local onde passaria a noite, pensando:

“Tudo que eu tenho que fazer é manter o jogo e ficar tranquilo. Eu a conheço bem, o que poderia dar errado?”



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