Volume 1 – Arco 1

Capitulo 9: O Que Ninguém Viu

O som seco da explosão ecoou pelos corredores do internato como um trovão maldormido. Vibrava pelas paredes como se algo enorme tivesse arrebentado o céu. Um segundo de silêncio absoluto. E então — portas se escancararam ao mesmo tempo, em todos os andares.

Alunos saíam tropeçando, tontos, os rostos ainda marcados pelos travesseiros. Meias trocadas, cobertores arrastados nos ombros, pantufas de bichinhos enfiadas às pressas. Havia quem segurasse um bicho de pelúcia com força suficiente pra esganar, outros esfregavam os olhos como se estivessem presos em um sonho ruim e esperassem acordar de novo. Os cabelos de muitos pareciam ter entrado numa luta corporal com os lençóis — espetados, revirados, armados contra qualquer tentativa de pentear. Alguns usavam pijamas com estampas de luas, dragões ou coisas mais embaraçosas, como corações rosa ou frases em glitter.

Os corredores se encheram de sussurros e passos confusos. Nos andares superiores, alunos amontoavam-se nas escadas, tentando descer para o salão principal. Uma avalanche humana de corpos sonolentos e apavorados se formava, desorganizada, barulhenta, quente e suada. Um mar de vozes abafadas e empurrões lentos.

No saguão principal do primeiro andar, a multidão começava a se aglomerar. O ar cheirava a poeira, medo e mofo de madrugada. Olhares assustados, bocas abertas, todos olhando para o alto — e ali estava: o teto, completamente rasgado no centro, como se um pequeno meteoro tivesse atravessado o internato de cima a baixo. A luz do céu da madrugada entrava pelas frestas como um facho de holofote, iluminando a poeira suspensa no ar e os pedaços de concreto soltos pelo chão. E no centro da destruição, abaixado entre escombros e pedaços de concreto, estava Briaaron — um dos maiores heróis vivos do continente, agora sujo de fuligem e suor, com a capa rasgada na ponta e os olhos presos num ponto fixo do chão. Ele analisava cada centímetro do estrago com um foco quase perturbador, como se tentasse encaixar peças de um quebra-cabeça invisível, cuja imagem final ele próprio não conhecia. A luz da lua, atravessando os escombros do teto aberto, iluminava seu rosto parcialmente sombreado.

Foi logo depois que os professores chegaram.

Marla foi uma das primeiras professoras a aparecer, ainda vestida com um robe colorido por cima do pijama, cabelos presos de qualquer jeito, expressão semicerrada de quem tinha acabado de acordar. Ela cruzou os braços, encarando o buraco no teto.

— Mas que inferno... — sussurrou ela. — Isso é um buraco? No teto do internato?

Daeros veio logo atrás, surgiu tropeçando nas próprias calças e ajeitando os óculos na ponta do nariz. Ele tentava ajeitar o cabelo ao mesmo tempo em que olhava a cena com uma mistura de medo e... deslumbre?

— Caralho, o Briaaron tá aqui — sussurrou ele, meio pra si. — Eu devia ter me arrumado...

Hanvasa entrou com os pés firmes no chão, batendo os calcanhares como se fosse controlar o caos na base da postura. Trajava um casaco grosso e escuro sobre um pijama cinza. Os olhos  examinavam cada canto como se fosse uma perícia técnica. Ela notou o buraco no teto, o chão parcialmente rachado e a presença de Briaaron. Seus braços se cruzaram imediatamente. O corpo enrijeceu. Algo estava errado — e não só na estrutura do prédio.

Briaaron finalmente se levantou. A poeira escorreu dos ombros largos quando ele encarou o grupo de professores à frente. Sua expressão, embora firme, tinha rachaduras. Ele hesitou por menos de um segundo — o suficiente para Hanvasa perceber.

— O que aconteceu aqui?! — disse Hanvasa, os braços duros ao lado do corpo. — O campo de força estava ativado. Ele... ele deveria ter segurado qualquer impacto.

Briaaron se aproximou, devagar, como se o próprio tempo se adaptasse à sua presença. Sem pressa. Sem medo. Com a confiança maldita de quem já salvou o mundo antes do café da manhã.

— Incidente controlado — disse ele, a voz grave ressoando nas paredes altas. Ele limpou a garganta, falou devagar, como quem escolhe cada palavra com cuidado. — Parte de uma nave caiu durante o confronto. Consegui evitar o impacto direto. Só que... — seus olhos percorreram o teto aberto — ...o campo pode ter falhado por um segundo. Um colapso parcial. Incomum, mas não impossível. Nada que os Reconstrutores não resolvam. Acontece às vezes.

A explicação pairou no ar como fumaça fria. Marla arqueou uma sobrancelha. Hanvasa não se moveu. E Daeros... apenas inclinou levemente a cabeça, como quem escutava uma nota desafinada num coral.

Hanvasa arregalou levemente os olhos. Aquilo não fazia sentido. Campos mágicos não falhavam assim. E mesmo se falhassem, por que não havia sinal de entrada de energia residual? Nem uma marca no solo?

Ela estava prestes a rebater, mas Marla sussurrou atrás:

— Falha parcial num escudo de contenção Nível 7? — ela soltou uma risada seca. — Isso aí acontece quanto? Uma vez a cada... nunca?

Hanvasa ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, falou baixo, sem tirar os olhos dele.

— Você tá me dizendo que pedaços de uma nave atravessaram um campo mágico ativo... sem deixar rastro de energia... sem sinal térmico, e caiu dentro da escola? E ninguém viu?

Briaaron olhou para os professores por alguns instantes, como se calculasse o quanto podia revelar. Depois assentiu, sem medo, mas sem firmeza total.

— Sim, caiu. Eu vi, segurei, contive o estrago. Mantive os alunos a salvo, incluindo a vida de vocês.

Hanvasa ainda encarava Briaaron com olhos de quem lia um relatório de guerra. A expressão dela era dura, mas não explosiva. O silêncio dela era o tipo que gritava.

— Você destruiu nosso teto — ela falou, entre os dentes. 

— Eu salvei sua escola — ele respondeu, ativando algo no bracelete reluzente. — Vocês precisam de um campo de força mais... moderno.

Hanvasa estava prestes a abrir a boca para continuar — mas nesse momento, Aelzy entrou apressado no salão, tropeçando nos próprios passos, ajustando o óculos com dedos trêmulos, ainda em seu suéter velho e pantufas de coelhinhos. A visão da cratera arrancou dele um ruído de choque abafado, algo entre um grunhido e uma prece perdida. Seus olhos passaram de Briaaron para o teto destruído, depois para a cara dos professores, e por fim para o nada — porque nada fazia sentido.

O diretor Aelzy se adiantou, interrompendo sem querer — ou talvez intencionalmente.

— Isso foi... um ataque? — murmurou apontando para o buraco no teto.

Briaaron deu meio sorriso. Mas havia cansaço no olhar.

— Bom... Essa bela moça sabe dos detalhes — olhou rapidamente pra Hanvasa .— Os Reconstrutores virão ao amanhecer. Vão restaurar tudo antes do início das aulas. Podem dormir em  tranquilos e em paz. — anunciou, como se fosse fácil dizer isso no meio de um cenário digno de filme apocalíptico.

Hanvasa, por outro lado, quase bufou. Era claro pra ela que algo não batia. Ela ainda tentava organizar na mente a sequência de falhas que nunca deveriam ter ocorrido. Mas quando abriu a boca pra insistir...

— O importante é que ninguém se feriu — Aelzy cortou, gentil, mas firme. — E Briaaron fez o que ninguém mais conseguiria em tempo.

Briaaron assentiu e começou a flutuar e avisou:

— Só fiquem atentos. Se o campo colapsou, algo interferiu. E isso... pode se repetir — seus olhos pareciam tentar dizer algo mais, mas ele se conteve. — Até mais.

E então, sem esperar resposta, o herói ergueu voo pelo buraco no teto. A poeira subiu em espiral, e logo ele sumiu no céu da madrugada, deixando para trás mais perguntas do que respostas.

Hanvasa ficou parada, com a mandíbula trincada e os olhos firmes na abertura do teto. Ela não gostava de ser interrompida, muito menos quando sentia que algo estava sendo escondido. Seus braços cruzados apertaram ainda mais os cotovelos. Mas agora não era o momento.

Aelzy, por outro lado, parecia genuinamente aliviado. Para ele, Briaaron havia salvado vidas — e a narrativa de um salvamento era muito mais fácil de aceitar do que a ideia de um mistério invisível invadindo os céus.

— Já são quase cinco da manhã — murmurou Hanvasa, com um suspiro. — E você sabe que esses jovens não vão dormir nem com calmante mágico.

Então Aelzy decidiu liberar os alunos até o horário das aulas, com a única exigência de que evitassem confusões — especialmente com o buraco no teto. Podiam ficar nos salões ou voltar aos dormitórios, desde que em silêncio.

Enquanto os cochichos persistiam nos cantos, Marla e Daeros se entreolharam. Nenhum dos dois conseguiria voltar a dormir. Ela deu de ombros, ele bufou, e os dois desapareceram pelos corredores para aproveitar o resto da madrugada fazendo o que professores fazem quando estão prestes a entrar num dia que claramente não vai ser normal.

A noite ainda guardava mistérios — e ninguém tinha percebido que, talvez, o perigo ainda estivesse ali.

A coisa está aqui. 

Não sumiu, não dormiu, não parou. 

Tá dentro desse lugar, respirando o mesmo ar podre que a gente. 

Escutando o silêncio, esperando o momento de arrancar tudo deles.

E ninguém tem a mínima ideia de onde — mas está aqui. 

Talvez dentro da parede. Talvez... dentro de alguém.....................

Se alguém olhasse de muito, muito alto — talvez de um ponto onde nem mesmo os satélites ousassem pairar — veria o internato mágico como um castelo imenso adormecido. Suas paredes pálidas e elegantes ainda refletiam os resquícios do luar, mesmo agora com a estrutura marcada por buracos, rachaduras e vestígios do que parecia ter sido um impacto brutal nessa noite. Mas era por dentro que a noite se transformava em algo além da compreensão.

Através dos buracos abertos pelo colapso da queda, um olhar agudo poderia seguir o rastro da destruição andar por andar, como janelas abertas em um organismo ferido, até alcançar o fundo — o salão principal. Lá, no meio do espaço vazio e silencioso, algo se mexia.

Uma presença solitária.

A silhueta se erguia imóvel no centro do salão, no centro das aberturas ao teto, escura como um borrão na retina. Não era possível dizer se era homem, mulher, jovem ou velho. Não se mexia como uma pessoa comum — sua sombra oscilava levemente como se estivesse submersa em água. Mas então... os dedos daquela figura começaram a brilhar. Um vermelho intenso, vivo, quase sanguíneo, iluminou suas mãos com uma energia pulsante e mágica. Logo depois, os olhos cintilaram — dois faróis escarlates no meio da escuridão — se acenderam também.

Com gestos lentos e fluidos, como um ritual antigo e esquecido, o ser começou a manipular a matéria. Destroços e vigas flutuavam no ar como se dançassem hipnotizados, girando ao redor dele num balé silencioso. O brilho vermelho se espalhava por cada fragmento, envolvendo tudo numa luz mística e precisa. Como se o tempo, o espaço e as leis físicas fossem brincadeiras infantis diante daquela força.

Os pisos superiores começaram a vibrar levemente. Não de medo, mas de obediência.

Os buracos, lentamente, começaram a se fechar. Como feridas cicatrizando sob um bálsamo invisível, cada rachadura se colava, cada trinca sumia, cada pedaço partido se religava com perfeição milimétrica. Era como ver o tempo rodar ao contrário — um processo atômico, preciso, impecável. Do chão ao teto, do teto ao céu.

O solo do segundo andar voltou a ser o que era. O do terceiro. O do quarto. Um a um, os buracos desapareciam, os vestígios da destruição sendo apagados como palavras riscadas por um autor arrependido. A magia vermelha se dissolvia com elegância, como tinta na água, até o último fragmento do telhado se encaixar em silêncio absoluto, completando o quebra-cabeça com perfeição monstruosa.

E então... os andares ficaram escuros de novo.

Nada havia ali.

Nenhum rastro.

Nenhuma pista.

Como se nunca tivesse acontecido nada, como se nunca ninguém houvesse caído ali.

Algumas horas se perderam no vai e vem de passos inquietos e o sinal da escola finalmente ecoou pelos corredores como um aviso impiedoso: o descanso acabou. Era hora de fingir normalidade, sentar em cadeiras duras e agir como se tudo ali fosse só uma escola comum.

Minutos depois, na sala de Magia Avançada, o professor Daeros surgiu — passos firmes, olhar afiado, irradiando autoridade como quem já sabia que alguém ia tentar bancar o engraçadinho.

A luz fria da sala contrastava com a tensão silenciosa que pairava no fundo de certas cabeças. Porque, mesmo com livros abertos e poções bem feitas, nem todo mundo ali conseguia esquecer o que tinha acontecido mais cedo. Ou o que ainda podia acontecer.

— A magia negra, embora seja proibida há séculos, seu estudo serve para entendermos como combater suas influências — disse Daeros.

Os alunos se remexeram nas cadeiras, atentos ao tom sério do professor.

— Há mil e duzentos anos, figuras como Eldrik Sombyvil, Laetira, a Malígna e Okan, o Corrompido, espalharam terror usando magia negra por toda Alfhenia. Seus nomes foram apagados dos registros oficiais depois de tanto tempo, mas suas marcas permanecem nas lendas.

Ele caminhou lentamente pela sala, seus olhos fixando-se em cada aluno.

— Atualmente, não existe ninguém que pratique magia negra ou magia das sombras... pelo menos não oficialmente. Qualquer indício é investigado e eliminado pelas autoridades arcanas.

Ártemis, sentada ao fundo, ouvia em silêncio, absorvendo cada palavra. Havia algo na forma como Daeros falava, uma certeza fria que a fazia se perguntar o quanto daquela história havia realmente desaparecido. 

Ela... quer saber? Eu não tava nem aí. Um maluco com capa destruiu o teto, e eu tenho que me virar por terem me acordado as quatro e meia da manhã.

Três dias. Três putos dias até o próximo capítulo dessa merda toda começar.

E eu sei que vai ser um caos do caralho. Tipo, o começo do inferno de verdade.

Mal posso esperar pra ver o circo pegar fogo — e, claro, pra tentar sobreviver no meio dessa bosta toda.

Vai ser uma merda. Mas, porra, pelo menos vai ser divertido.

Então é isso. Até lá, tentem não surtar muito. Ou surtam. Sei lá. Eu já tô nessa desde sempre.

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