Volume 1 – Arco 1

Capítulo 9: Pudim

 

12 de março de 2019 - Terça-Feira

Pela tarde, o clima na escola ganhava um ar de descanso e leveza. Havia uma brisa morna que entrava ocasionalmente pelas janelas e circulava nos corredores, trazendo consigo o leve cheiro de grama e folhas secas. Enquanto Ártemis caminhava pelos corredores em direção ao quarto de Marry, segurando um pudim que havia trazido como presente.

Quando chegou, bateu três vezes na porta, mas ninguém respondeu. Decidiu entrar para ver se Marry estava ali. Ao abrir a porta, viu-a deitada na cama, com uma aparência cansada, claramente desconfortável com a inconveniência de Ártemis .

— Marry, é você? Posso fazer umas perguntas? — Ártemis perguntou ao se aproximar.

Marry suspirou, virando o rosto para o lado. — Não. Vai embora, por favor.

Ártemis ignorou os pedidos, aproximando-se mais, e então ligou as luzes do quarto. Num piscar de olhos, Marry já não estava mais na cama. Ártemis olhou ao redor, confusa, e logo viu Marry deitada debaixo da cama, como se buscasse um esconderijo longe da luz.

— Como você fez isso tão rápido? — Ártemis perguntou, surpresa, se aproximando da cama.

— Eu não quero conversar — murmurou Marry

Ártemis respirou fundo, não desistindo facilmente. 

— Marry... eu vim aqui porque quero sua ajuda. Preciso de algumas informações, e acho que você deve ter as respostas. É sobre um amigo.

Por um momento, a expressão de Marry mudou. Sua curiosidade foi despertada, e ela encarou Ártemis com um olhar desconfiado. — Que amigo?

— Gumer — explicou Ártemis. — Ele anda tendo muitos problemas, com alucinações sobre uma garota, que achamos que seja você. Ele está atormentado, Marry.

Marry franziu o cenho, prestando atenção nas descrições de Ártemis. 

— Como ele é? — perguntou, tentando disfarçar o interesse.

— Ele tem cabelo cacheado e volumoso, pele negra, alto.

Os olhos de Marry brilharam brevemente de reconhecimento, mas ela não deixou transparecer demais. Por dentro, ela já sabia de quem Ártemis estava falando, e o coração acelerou. Mesmo sem dizer nada, algo em seu olhar mostrava que, apesar de todo o sofrimento que carregava, queria, de alguma forma, ajudar Gumer, como ele desejaria fazer por ela.

Marry observou o pudim nas mãos de Ártemis, seus olhos brilhando com uma mistura de surpresa e desejo.

— Esse pudim... é pra mim? 

— Sim, é todo seu — respondeu Ártemis, estendendo o doce com um sorriso amigável.

As duas se sentaram no chão do quarto, e enquanto Marry começava a saborear o pudim, Ártemis tentou introduzir algumas perguntas, esperando entender melhor o que estava acontecendo. No entanto, conforme as perguntas se tornavam mais profundas, Marry começou a estremecer, lembranças e imagens perturbadoras retornando a sua mente. Suas mãos tremiam, e a respiração ficou irregular enquanto ela lutava contra o pânico que as perguntas despertavam.

Ártemis percebeu a tensão de Marry e, com um tom gentil, sugeriu:

— Talvez devêssemos sair um pouco. Quem sabe tomar um ar, você precisa respirar. Esse quarto... bem, não parece exatamente o lugar mais acolhedor agora.

Marry assentiu, ainda trêmula, e deu uma última colherada no pudim.

— Só se tiver mais pudim — murmurou, tentando se recompor.

Ártemis sorriu, aliviada por ver Marry responder com um toque de humor, e ambas se levantaram, prontas para sair daquele ambiente carregado e ir em busca de um pouco de paz.


No pátio, Ártemis e Marry estavam sentadas em uma das mesas de piquenique. Sobre a mesa, folhas e papéis estavam espalhados, enquanto Ártemis tentava organizar suas perguntas.

— Então, você e o Gumer… Por que vocês se conectam nos sonhos? — perguntou Ártemis.

Marry, sem dar muita atenção, continuava comendo pudins em uma velocidade impressionante, enquanto rabiscava os papéis. Ela desenhava uma criatura humanoide com traços grotescos e adicionava palavras estranhas ao redor.

— Não gosto desses sonhos — murmurou Marry com a boca cheia. — Odeio ver o Gumer sofrendo daquele jeito.

Ártemis arregalou os olhos, um pouco nervosa com a quantidade de pudins que Marry já havia devorado.

— Mas... por que você acha que isso acontece? — insistiu Ártemis, inclinando-se ligeiramente para frente.

Marry engoliu rapidamente outro pedaço antes de continuar, ainda mastigando.

— Não sei o motivo, mas eu o vejo todas as noites no quarto infinito. É como se… algo tivesse amaldiçoado a gente.

Ártemis tentou captar as palavras de Marry, mas a fala embolada e a comida atrapalharam a compreensão.

— O quê? Pode repetir? — perguntou Ártemis, quase desesperada.

Antes que Marry pudesse responder, ela parou de repente e fez uma expressão desesperada, colocando a mão na boca, como se fosse vomitar.

Ártemis fez uma careta de nojo e, em um piscar de olhos, as duas já estavam no banheiro.


— Você está bem aí dentro? — perguntou Ártemis, do lado de fora da cabine onde Marry vomitava.

— Não, não estou bem! — respondeu Marry, irritada, sua voz abafada pela porta.

Ártemis ficou surpresa com o tom grosseiro.

— Olha, eu só quero ajudar.

Marry saiu da cabine, ainda pálida e ofegante, apoiando-se na pia enquanto lavava o rosto.

— Eu sei — disse Marry, sua voz um pouco mais suave, mas ainda carregada. — Mas não posso te dar nada. Esse assunto… Só de falar disso já me dá ânsia.

Ártemis suspirou, frustrada, percebendo que precisaria ser ainda mais cuidadosa para conseguir qualquer informação de Marry.

Ártemis colocou os papeis na pia e cruzou os braços, olhando para Marry com olhos suplicantes.

— Por favor, Marry, eu preciso entender o que está acontecendo. Gumer está mal! Ele precisa de ajuda, e você é a única que pode me explicar isso.

Marry, ainda esfregando o rosto molhado com as mãos, bufou, visivelmente estressada.

— Eu já disse que não sei! — retrucou Marry, sua voz elevada ecoando no banheiro. — Não adianta ficar me pressionando!

— Mas você sabe alguma coisa! Você falou que vê o Gumer nos sonhos, tem algo conectando vocês. Isso é mais do que qualquer um sabe! Por que não pode simplesmente falar?

Marry virou-se de repente, encarando Ártemis com raiva.

— Porque não quero! Você acha que é fácil? Reviver essas coisas toda noite, sentir como se minha cabeça fosse explodir? — Sua voz falhou por um momento, mas logo voltou com força. — Eu já tenho meus próprios problemas, Ártemis. O que você quer de mim?

Ártemis respirou fundo, tentando manter a calma, mas não conseguiu mais segurar.

— O que eu quero? Eu quero que você pare de ser egoísta! — gritou ela, apontando para Marry. — Você sabe que pode ajudar o Gumer, mas só pensa em si mesma.

Marry se afastou, andando até as cabines, surpresa com a explosão, mas logo rebateu, ainda mais irritada.

— Egoísta? Você não faz ideia do que eu passo! Não sabe nada sobre mim ou sobre o que essa ligação está fazendo comigo!

— Então me conta! — interrompeu Ártemis, sua voz trêmula de indignação. — Você só reclama e reclama, mas não me deixa entender o que está acontecendo! Eu não sou sua inimiga, Marry!

Marry ficou em silêncio por alguns segundos, apertando os punhos enquanto encarava Ártemis com os olhos cheios de mágoa e cansaço.

— Eu não confio em você — sussurrou Marry, com a voz carregada de dor.

Ártemis piscou, como se tivesse levado um golpe.

— O quê?

Marry desviou o olhar, segurando-se para não chorar.

— Você é insistente demais. Me força a lembrar coisas que me machucam. Como posso confiar em alguém assim?

Ártemis ficou paralisada, suas emoções oscilando entre raiva e tristeza. Depois de alguns instantes, ela balançou a cabeça e se afastou.

— Sabe de uma coisa, Marry? Talvez você esteja certa. Talvez eu esteja insistindo demais. Mas, pelo menos, estou tentando fazer algo para ajudar o Gumer. Enquanto você… só fica se escondendo atrás dos seus traumas como se fosse a única pessoa no mundo com problemas! Todo mundo aqui tem alguma coisa com que lidar, mas você… você se tranca, foge, e ainda acha que pode simplesmente afastar todo mundo com sua atitude de vítima!

Marry, que já estava a ponto de explodir, virou-se para Ártemis com os olhos brilhando de raiva.

— A-é? Você é muito ridícula. Não sabe a hora de parar, não respeita limites! Você acha que ser insistente vai te fazer parecer uma heroína, mas só te torna irritante. Ninguém aguenta a sua necessidade desesperada de se meter na vida dos outros!

Ártemis deu um passo à frente, sentindo o sangue ferver.

— É você quem passa a vida fingindo que é vítima, como se o mundo fosse o problema, mas a verdade é que você só pensa em si mesma. Nunca estende a mão para ninguém, nunca faz nada além de se alimentar da pena dos outros, enquanto apodrece sozinha. E pior, você ainda suga tudo ao seu redor, arrastando todo mundo para o mesmo buraco miserável onde você escolheu viver. É isso que você é, Marry, um peso morto, um fardo insuportável que só destrói tudo o que toca!

— NÃO! — gritou Marry, sua voz reverberando com uma força assustadora.

O grito de Marry foi como uma explosão. Os espelhos atrás de Ártemis se estilhaçaram em mil pedaços, os fragmentos caindo no chão com um som ensurdecedor. Ártemis soltou um grito de susto e instintivamente levou as mãos aos ouvidos, tentando bloquear o zumbido que parecia perfurar sua cabeça.

Enquanto Ártemis cambaleava, tentando se recuperar, Marry deu um último olhar de desprezo.

— Não me procure mais — disse ela, a voz fria e cortante.

Sem esperar uma resposta, Marry abriu a porta com força e saiu do banheiro, deixando Ártemis sozinha no meio do caos.

Ártemis abaixou as mãos lentamente, ainda atordoada pelo som. Ela olhou ao redor, vendo os cacos espalhados pelo chão e os espelhos destruídos. Mas ao olhar as folhas desenhadas na pia, sentiu-se mais leve, sorrindo meio convencida que conseguiu o que queria.


Marry caminhava pelo corredor enquanto as paredes rachavam ao seu redor, com finas fissuras se espalhando como cicatrizes vivas. As vibrações aumentavam, fazendo pequenos pedaços das paredes caírem. As luzes piscavam, criando sombras enquanto o ambiente parecia refletir sua raiva. Absorvida pelas emoções, ela não percebeu o estrago ao redor até parar e tentar recuperar o controle, apertando as mãos e fazendo as rachaduras pararem. Ao continuar sua caminhada, o corredor atrás dela mostrava os sinais do caos que ela mal conseguia controlar.


No dia seguinte - 13 de Março de 2019

Ártemis caminhava pelo corredor segurando uma cesta de pudins em mãos. Quando avistou Marry, que seguia apressada em direção ao quarto, Ártemis acelerou o passo, tentando alcançá-la.

— Marry, espera! Eu trouxe pudins pra gente conversar.

Marry não diminuiu o ritmo, seu rosto virado para frente, ignorando completamente a presença de Ártemis.

— Por favor, Marry, me escuta! Eu fui uma idiota ontem. Eu só... — Ártemis continuou, mas Marry ergueu as mãos em um movimento rápido e mágico.

De repente, o corredor ficou estranhamente silencioso. Ártemis abriu e fechou a boca, mas não conseguia ouvir o som de suas próprias palavras. Ela olhou ao redor, confusa, percebendo que até o som de seus passos havia desaparecido.

Marry continuou andando em direção ao quarto como se nada tivesse acontecido. Ártemis, frustrada, correu para acompanhá-la, gesticulando e tentando falar, mas o silêncio persistia.

Ao chegar à porta de seu quarto, Marry fez outro movimento com as mãos, e o som voltou abruptamente. Ártemis sentiu o impacto da mudança no ambiente e tentou novamente:

— Marry, você precisa me ouvir! Eu quero me desculpar! 

Marry se virou apenas o suficiente para olhar Ártemis por cima do ombro, seus olhos carregados de frieza.

— Eu não quero suas desculpas, e não quero você perto de mim nunca mais. 

— Você não pode simplesmente me ignorar! — rebateu Ártemis, o tom subindo. — Eu vou falar com você, sim, queira ou não!

Sem responder, Marry abriu a porta, entrou, e a fechou com força. Ártemis ficou parada por um momento, o sangue fervendo de indignação.

— Marry! Abre essa porta agora! — gritou, batendo com força na madeira. — Você vai me ouvir, sim!

Do outro lado, o poder de Marry reverberou com uma intensidade avassaladora. Uma onda de choque vermelha percorreu a porta, fazendo-a tremer violentamente. Ártemis recuou instintivamente, protegendo-se com os braços, como se a porta fosse a atingir.

Ela ficou ali, respirando fundo, o coração acelerado. Por um momento, considerou desistir, mas então olhou para a cesta de pudins. Um sorriso cheio de malícia surgiu em seus lábios.

— Ah, é assim? — murmurou para si mesma.

Com movimentos rápidos e decididos, começou a abrir os potes e esfregar os pudins na porta de Marry. O doce amarelo grudava na madeira, escorrendo em fios pegajosos.

Quando terminou, largou a cesta vazia no chão, satisfeita com o resultado. 

— Boa sorte limpando isso, sua maluca.

E seguiu seu caminho.

Um último pudim pendurado na porta escorregou e caiu no chão com um som abafado, finalizando o ato de vingança.



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