Volume 1 – Arco 1
Capítulo 8: Fragmentos de Uma Espécie
O céu se abria acima como um imenso espelho negro, onde estrelas, planetas e luas pendiam silenciosos, como sentinelas ancestrais. Um planeta vermelho pulsava, lento e ameaçador, enquanto ao longe, outro, com seus anéis azuis, refletia uma luz fria que tingia as montanhas de Hiden — Não era céu, mas um abismo congelado, profundo e eterno, onde o silêncio reinava absoluto.
Ali, isolada, dominando penhascos agudos e cercada por feitiços antigos e barreiras quase esquecidas pelo tempo, estava a prisão de Rhûn — uma fortaleza cuja fama era feita de desaparecimentos e finais definitivos. Nenhum prisioneiro saía dali, e os ecos do passado pareciam chorar nas pedras frias. Briaaron e Eldaly haviam acabado de sair de uma missão cansativa, mas não tinham tempo pra respirar.
Com um movimento seco, ergueram voo ao céu cortado pela velocidade máxima e um turbilhão de vento, nuvens e faíscas mágicas. Voavam lado a lado. A velocidade máxima esmagava o ar contra seus corpos, os cabelos e mantos esvoaçavam em fúria. À frente, o continente de Hiden crescia no horizonte, frio e imponente.
— Essa coisa não é normal — Briaaron cortava o vento com voz pesada, olhos fixos no horizonte que parecia esticar. — Energia instável, sinais de feridos. Nada disso tá batendo. Isso aqui vai ser uma missão padrão.
Eldaly soltou um riso curto, quase um trovão seco.
— Missão padrão? Desde quando a gente faz missão padrão? — o olhar dela, fixo, frio como gelo, cruzou o dele. — Foda-se o protocolo. Se for pra sujar as mãos, que seja até o osso.
— Tão mandando a gente às cegas de novo — continuou ele, os punhos cerrados. — Sem dados, sem reforço, só essa porra voando no céu e a base mandando sorrir e acenar.
— Guerra suja é com a gente — respondeu Eldaly, afundando o corpo no voo. — E eu não vou ser a mocinha dessa história.
O silêncio caiu, pesado, só quebrado pelo assobio do vento. Eles cortaram o céu, sombras afiadas contra a luz fria da madrugada, prontos pra enfrentar o que viesse.
Um azul profundo, espesso, de um tom quase metálico, como se o planeta estivesse prendendo a respiração. Mas lá no alto — bem no alto — algo crescia. Uma rachadura negra, como uma veia furiosa no céu, pulsava devagar, inchando com uma luz âmbar ao redor.
Então, a primeira coisa que apareceu no céu escuro foi uma sombra colossal rasgava o firmamento, mas não voava — despencava com a fúria de um gigante ferido. A nave Nau Caída, marcada pelo fogo da reentrada, pendia como carne queimada, pedaços metálicos soltando-se em um balé macabro de ferrugem e destroços. Fissuras vomitavam fumaça, e a estrutura rangia sob a pressão, como se estivesse implorando por alívio. Atrás dela, um rastro flamejante se abria no céu, incendiando a atmosfera e desenhando um rastro de destruição que se dirigia direto para o coração de Hiden.
De cima, Briaaron flutuava. Invisível, mas em choque. Ele via tudo: a nave fragilizada, os civis amontoados dentro, os olhares desesperados. Lá dentro — além da camada de vidro enegrecido — estavam os corpos dos therianos. Feridos, encostados uns nos outros. Indistintos pela miséria. Um adolescente mantinha os braços em volta de uma figura menor, enquanto uma mulher caída num canto parecia ter desistido de respirar fazia tempo. Nenhuma arma. Nenhum grito. Nenhuma reação ao barulho. Como se já estivessem mortos.
Briaaron apertou os punhos e ativou a transmissão direta, a voz firme mesmo com a respiração pesada:
A voz de Briaaron cortou o rádio com urgência controlada, a respiração pesada mas firme:
— Visual confirmado. Isso não é combate — são civis feridos, desarmados, à deriva nessa merda de ferro. Recomendo resgate imediato. Reforço: não há ameaça, é um pedido de ajuda.
Um silêncio gelado respondeu.
— Ordem é ordem — veio o retorno seco e sem emoção. — Nenhuma negociação. Protocolo Violeta em ação. Contenção letal, sem exceção.
Briaaron sentiu o ar sumir dos pulmões, o mundo girar em câmera lenta. Gritou para o rádio:
— Vocês... estão se ouvindo?! — gritou. — Estão ouvindo o que estão prestes a fazer?! São civis. São pessoas. Há jovens a bordo. Vocês vão cometer um genocídio a céu aberto?!
Mas ninguém respondeu.
E foi nesse segundo que o som mudou.
Briaaron não conseguia se mover.
A brisa do alto já não era mais uma brisa. Era um silêncio pesado, um aviso cruel. Seus olhos fixos no céu viram, enfim, a linha se formar.
O céu se rasgou em uma fenda de luz laranja, e dela emergiu Eldaly — um cometa vivo, uma tempestade de força concentrada. Ela despencava com o corpo firme, braços cruzados sobre o peito, como se fosse um punho divino prestes a esmigalhar tudo em seu caminho. A aura ao redor dela parecia sugar a cor do ar, tingindo o negro de um laranja feroz, um brilho quente e mortal que distorcia a atmosfera e calcinava o vazio.
O impacto foi absoluto. Não houve som imediato, apenas um silêncio disforme, como se a realidade tivesse prendido a respiração antes do estalo. Quando veio, o estouro foi seco, doloroso, arrastado como uma sirene orgânica. A nave tremeu como se fosse feita de papel alumínio. E então, ela cedeu.
Uma rachadura se abriu de cima a baixo, rasgando o casco como uma ferida infeccionada. Gases tóxicos escaparam pelas frestas. Painéis voaram como lâminas incendiadas. Um segundo depois, o ventre da nave explodiu, e um rio de corpos, chamas e destroços começou a chover sobre Hiden.
Briaaron ficou paralisado no ar.
O céu se tornou um quadro apocalíptico: pedaços da nave em combustão cortando o ar como estrelas cadentes, corpos inteiros rodopiando no ar, presos à gravidade como folhas secas num furacão. Jovens, adultos, a família inteira de therianos, todos caindo — não mais abrigados, não mais salvos, não mais vivos. E entre eles... Eldaly.
Ela voava entre os destroços com os punhos fechados, mirando os alvos com precisão clínica. Um civil caía tentando segurar em algo? Ela cortava seu corpo com uma sequência de golpes tão velozes que se reduziam a borrões. Um grupo de três caía junto, abraçados? Ela atravessava os três com um único movimento, como uma lança.
Ela os executava no ar. Como se caçar corpos despencando fosse... justiça. Girava com a perfeição de uma bailarina que ensaiou sua coreografia por eras. Cada movimento era arte e mutilação. Um soco atravessava um tórax. Um chute quebrava uma coluna e fazia os ossos saltarem como molas partidas. Um corpo voava, o outro explodia, e a fumaça de carne queimada impregnava o ar com um cheiro de fim. Ela não hesitava. Não tremia. Os olhos estavam vazios, o rosto iluminado apenas pela luz infernal dos incêndios que ela própria causava. Era como se a alma tivesse sido substituída por um motor de destruição.
O cheiro da carne queimada queimava as narinas de Briaaron, o estômago revirava, mas ele não conseguia agir. O massacre seguia, impiedoso e ela não mostrava sinal de hesitação. Era uma dança de morte — perfeita, fria, devastadora. Não havia mais humanidade em Eldaly, só o motor brutal da execução.
As sombras da queda se misturavam ao fogo, aos motores partidos, aos cabos elétricos que serpenteavam em chamas. Alguns gritavam, mas os gritos se perdiam no vento. Outros só choravam, com os braços abertos, aceitando o fim. E ela continuava — metódica, impiedosa, limpa. Um tapa e um crânio girava como um brinquedo quebrado. Um chute e três vértebras saíam em disparada da coluna de um velho que segurava uma carta amassada na mão.
Briaaron sentia as veias do pescoço pulsando de ódio, mas não conseguia mover um músculo.
— Caralho, Eldaly... já chega, porra. Eles já tão mortos! — sussurrou, os olhos arregalados, o corpo tremendo. Mas não havia mais como alcançá-la. Não havia espaço para diálogo. O massacre já estava selado.
E do chão... tudo parecia belo.
Em Hiden, os civis olhavam para o céu como se estivessem assistindo a um show de fogos. Luzes em chamas riscavam o azul profundo, acompanhadas de rastros coloridos e sons de explosões abafadas. Uma queda de fragmentos dourados. Estilhaços brilhantes refletindo o sol. Um espetáculo de destruição travestido de beleza. Ninguém sabia o que estavam vendo.
Mas Briaaron sabia.
Aquilo não era defesa. Não era contenção. Era execução pública. Era genocídio autorizado com selo de virtude. E ele — o herói, o sentinela, o soldado fiel — havia ficado parado. De novo.
Seu punho fechou com tanta força que o sangue escorreu pelas laterais dos dedos. Mas ele não limpou. Não falou. Só permaneceu. Silencioso. Como uma sombra coberta de vergonha. Sem saber se por dor ou por colapso. O peito arfava. As costelas doíam. O ar estava quente demais para respirar e pesado demais para gritar.
E ele estava ali, testemunha e cúmplice, enterrado até o pescoço em um silêncio que gritaria para sempre.
Eldaly sabia. Sabia que pareciam fogos de artifício no céu. Sabendo que ninguém jamais veria os corpos que caíam como estrelas cadentes. E que o massacre seria pintado como tragédia, não assassinato.
Briaaron não conseguia olhar para ela.
Enquanto descia lentamente, os olhos embaçados e o maxilar travado, viu de relance uma movimentação no radar lateral. Algo não havia sido destruído.
A outra metade da nave.
Na pressa, ou talvez por arrogância, Eldaly havia ignorado uma das seções fragmentadas. Uma parte do casco foi cuspida para longe no impacto inicial, voando como uma peça solta, silenciosa e insignificante — mas estava inteira o suficiente para abrigar dezenas de corpos.
Ela caía agora. Longe. Muito longe.
Rodando em espiral, envolta em fumaça e faíscas, cruzando as nuvens com velocidade alarmante, como um cometa deformado. Não era uma queda planejada. Não era encenada. Era caos. E era viva.
Briaaron observou a trajetória e traçou mentalmente a linha de impacto. Seus olhos se arregalaram.
— Não... — sussurrou.
A queda apontava para uma região "populada". Estruturas específicas. O radar confirmou.
Khelos. As Escolas de magia.
E ele não teria tempo de impedir.
Briaaron sabia que não ia chegar a tempo, mas tentou mesmo assim. Seu corpo rasgava o ar numa velocidade tão absurda que o mundo ao redor parecia se despedaçar — as nuvens se esticavam como véus distorcidos, a paisagem abaixo virava uma mancha, e o som já não acompanhava mais. Ele segurou a respiração; o ar quente queimava suas narinas, e o sangue nos tímpanos parecia prestes a ferver. Voava tão rápido que a própria noção de forma e direção parecia se dissolver. Seus músculos tremiam, seus ossos vibravam com cada impulso, mas ele não parava. Porque logo abaixo dele, os destroços da nave alienígena cortavam o céu em queda livre, como um meteoro despedaçado que ainda soltava faíscas e labaredas. E lá perto... havia um internato mágico. Com crianças. Com vidas.
Quando finalmente alcançou a carcaça principal da nave, Briaaron não hesitou. Suas mãos se cravaram contra o metal em chamas. Seus pés abriram sulcos no chão antes mesmo de tocá-lo, e o peso da nave forçou os joelhos a cederem, enquanto ele empurrava com tudo o que tinha para desviar os destroços da escola logo atrás. Suor e sangue escorriam em partes iguais. Cada fragmento da fuselagem quebrada se soltava como ferro velho explodindo num balé caótico de chamas e cinzas. Ele conseguiu conter o grosso. Conseguiu impedir a tragédia principal.
Mas havia algo que ele não sabia.
O último sobrevivente já se lançara para fora da nave minutos antes, como um projétil orgânico impulsionado pelo puro desespero. O ar o cortava como navalhas, rasgando sua pele, deslocando suas juntas, enquanto ele caía em espiral direto rumo à escola mágica. A queda foi uma agonia física, um esfarelar de carne contra a gravidade, mas ele não gritou. Não implorou. Só despencou. E quando seu corpo colidiu com o telhado, o impacto foi tão brutal que o som parecia vir de dentro da própria terra — um rugido surdo que rachou vigas, paredes e colunas. O telhado se partiu em centenas de estilhaços e, num instante, ele atravessava os andares como uma bala viva: seis pavimentos sendo rompidos um após o outro, em sequência violenta. E a poeira erguia uma cortina de desespero pelo corredor ainda vazio.
Quando o corpo finalmente colidiu com o solo, não se quebrou em sangue ou ossos, mas se dissolveu em uma névoa rubra, espessa e pulsante, como se carregasse a própria essência do desespero. Uma fumaça vibrava como se tivesse vida própria. Era um vapor que não obedecia a leis naturais — não por ser mágica, mas por ser velha. Ancestral. Uma essência contaminada por tudo que havia de errado no tempo, na dor e na espécie que estava morrendo. Aquilo que um dia foi Khelos espalhou-se em silêncio pelas rachaduras das paredes, escorreu pelas frestas dos pisos, penetrou as sombras como um vírus invisível. Entrou em livros esquecidos, em canos vazios, em brechas entre tijolos e pensamentos. Infiltrou-se no lugar como uma maldição líquida, silenciosa, impossível de deter.
Não houve grito. Não houve aviso. Só uma escola que respirava normal alguns segundos antes, e que agora carregava dentro de si algo que não pertencia àquele mundo. Um último sopro de uma civilização extinta, uma herança sem nome que agora dormia sob os alicerces — aguardando. Silenciosa. Perigosa. Presente.
Durante milênios, ninguém sabia seus nomes.
Agora, também não saberão seus corpos.
Quando a nave rompeu o céu, havia uma súplica não dita costurada ao calor que queimava as nuvens. Era o grito de um povo que chegou tarde demais. Nada restava, exceto os últimos. E esses últimos... eram fracos. Feridos. Rotos. Esquecidos.
Briaaron os viu antes de todos. E viu também quando tudo terminou.
Corações não explodem com impacto — mas com silêncio.
E naquele dia, o que caiu do céu não foi uma ameaça.
Foi uma raça inteira.
E caiu como cinzas, como poeira, como fragmentos de uma espécie.
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