Volume 1 – Arco 1

Capítulo 7: O Lado de Dentro

No quarto, Leonarda estava largada no alto da beliche esquerda, virada de lado, o rabo balançando de leve, num ritmo distraído. Parecia uma gata preguiçosa observando a vizinhança — mas o olhar seguia atento. Um sorriso se formava devagar no canto da boca, como se ela já soubesse o que vinha.

Perto da escrivaninha, Misha estava de pé diante do espelho grande. A luz realçava o brilho artificial do cabelo que ela alisava com uma chapinha mágica — um fio de magia azul pulsava ritmado, alimentando o aparelho como se tivesse sangue próprio.

Ao ouvir a porta se abrindo, ela parou abruptamente. Virou com um estalo seco no pescoço, como uma boneca quebrada. Ficou apenas olhando. O rosto não dizia nada. Mas os olhos? Afiados. Cortantes. Dois estiletes que queriam rasgar sem encostar. Um segundo. Dois.

— Quem são vocês? — perguntou ela. E antes que alguém respirasse, disparou de novo, como uma patrulha. — E o que fazem aqui?

Ela deu um passo à frente, os ombros eretos, o peito estufado de uma autoridade que só existe na cabeça de quem nunca foi contestado. Postura de quem acha que domina o ambiente com um levantar de queixo.

Ártemis não piscou.

Em vez disso, jogou o peso do corpo em uma perna só, o quadril sutilmente de lado, os braços se cruzando devagar, com gosto, como quem se acomoda pra assistir briga de bar.

— Esse é o nosso quarto também, sabia? — A voz saiu carregada de um deboche macio. Um sorrisinho torto subiu junto com as palavras, lento, venenoso.

Misha desviou os olhos lentamente pras malas bagunçadas nas camas de baixo. O cenho dela se franziu como se tivesse encontrado mofo. Depois olhou pra Leonarda — que, no mesmo segundo, encolheu o corpo e virou o rosto pro lado, fingindo que estava interessadíssima no teto. A graça tinha evaporado. E rápido.

Trrira sentiu a pressão da tensão como se o ar tivesse engrossado. O desconforto subiu quente pelas costas e empurrou os pés dela pra frente, fazendo-a se aproximar de Ártemis quase sem pensar. Ela respirou fundo e tentou falar — só uma sílaba, só um começo — mas Misha ergueu a mão sem sequer olhar, como quem afasta um inseto.

— Cala a boca, vai. Já deu, negrinha de cota. Só pela cor já dá pra ver que não é do time que pensa, né?

Foi como um soco no meio do estômago. A garganta de Trrira formigou. O queixo tremia, mas ela mordeu o lábio até sentir gosto de ferro. Ela só conseguia encarar o chão, como se as palavras da Misha tivessem virado pedra dentro do peito. Sentia que não era só a pele dela que estava sendo atacada — era o lado de dentro

O silêncio caiu seco, feito tapa.

Ártemis deu um passo à frente, o maxilar trincado, os olhos faiscando. Mas Misha não parou. Os olhos mirados em Ártemis com um desprezo escancarado.

Ártemis parou. Só parou. Por um segundo, o quarto pareceu pequeno demais pra conter o que crescia dentro dela. O corpo inteiro ficou duro. As mãos se fecharam devagar, como garras.

— Repete — a voz de Ártemis saiu baixa, rouca, como um trovão que ainda não estourou. — Vai. Repete essa merda. Só mais uma vez.

Misha sorriu. Sussurrou, inclinando o rosto com o tom doce de veneno.

— Otária. Você não vai tocar em mim. Não tem coragem. Sabe que se encostar um dedo, eu te arrebento tanto que vão precisar montar seu corpo em partes. Você não tem chance comigo, sua idiota.

Ártemis deu um passo, só um — e o quarto inteiro pareceu prender a respiração. Mas ela parou. Só ficou ali, cara a cara com Misha, os olhos semicerrados, sentindo a respiração de ambas.

— Eu não vou te tocar, não. Porque você vale pouco demais — a voz saiu cortante. — Mas escuta bem, boneca. Se você soltar outra dessas pra cima dela, eu não vou precisar encostar. Eu vou acabar com você do jeito mais lento, mais frio, e mais sujo que alguém já inventou.

Respira. Só respira. Não dá corda. Se ela abrir a boca de novo... foda-se. Eu arrebento essa Barbie do inferno.

O sorriso de Misha sumiu. Não por medo. Mas porque, por um segundo, ela entendeu: Ártemis não estava blefando. Ela cruzou os braços, o maxilar tenso.

— Tenta... Enquanto vocês estiverem aqui, quem manda sou eu, entenderam? — Misha cuspiu a frase com um meio sorriso nojento. — Quer dormir em paz? Então aprende as regras, e guarda tua malandragem de favela pra outro canto. Aqui não é teu terreiro.

— Você não vale o estrago que eu faria — respondeu Ártemis, os olhos formigando.

Antes que Ártemis abrisse a boca novamente, a voz de Leonarda ecoou lá de cima, hesitante mas firme:

— Gente... calma aí. Tá todo mundo cansado, né? — se inclinou um pouco, tentando soar pacífica. 

Misha virou o rosto devagar pra cima em direção a Leonarda, os olhos semicerrados, o queixo levemente inclinado. A expressão dela não tinha nada de gentil — era puro desdém entalado em veneno.

— Cala. A. Boca — falou, firme, só pra ela ouvir. 

Seco. Cru. Nem gritado, nem irritado. Só... cortante.

O quarto inteiro encolheu. O rabinho de Leonarda parou de balançar. Ela deitou de novo, dessa vez com o corpo encolhido, os olhos fixos no teto como se procurasse algum buraco pra desaparecer.

Misha voltou o olhar pra frente com a mesma frieza.

Ártemis bufou, sem tirar os olhos dela.

— Olha, a gente só quer dormir, beleza? — disse com a voz arrastada, insolente. — Não viemos causar problema. Mas já que você curte um recado... tá dado. Agora só deixa a gente passar, caralho.

Misha arqueou uma sobrancelha. Um sorriso pequeno, venenoso, subiu pelos lábios como uma praga rastejando. Ela parecia saborear a tensão como vinho envelhecido.

Trrira, calada, virou o rosto. Mas as mãos tremiam. E os olhos dela... tinham lágrimas. Não de fraqueza, mas de raiva engasgada. Daquelas que ardem por dentro, porque não podem sair.

E o quarto, de novo, caiu num silêncio sufocante. Um silêncio que gritava.

— Passa. Só não finge que eu não avisei, profana — murmurou, girando nos calcanhares com um ar satisfeito, como quem sai de um duelo vitoriosa. 

Ártemis foi até a cama com os passos firmes, marcados, mas sem fazer escândalo. O corpo tenso como mola, mas o rosto... calmo. Quase demais. Deitou com um suspiro seco, puxando a coberta de qualquer jeito.

Misha sorriu e voltou pro espelho, retomando o movimento de alisar os fios como se nada tivesse acontecido. Mas dava pra ver no brilho do olhar dela que estava satisfeita. Gostava de testar. De marcar território. E de saber que alguém respondeu à altura.

Trrira a seguiu. Deitou-se rápido, o corpo encolhido, e manteve os olhos abertos por alguns segundos. Só depois relaxou — ou fingiu que relaxava. O alívio estava ali, mas era mais físico do que mental. A mente continuava alerta.

Leonarda, ainda em cima, continuava olhando pro teto. Não dizia nada. Nem ria mais. Só respirava curto, como se ainda esperasse alguma coisa explodir.

Quando as luzes finalmente se apagaram, Misha foi a última a deitar.

O quarto caiu num silêncio pesado, tenso como um corredor de hospital. Ninguém se movia. A raiva de Ártemis era quase palpável — mas nem ela parecia saber o que fazer com tudo aquilo. Os olhos ardiam, as mãos tremiam de leve. Era como se tivesse levado um soco na alma... mas preferia mastigar caco de vidro a dar o gosto de uma palavra àquela escrota.

E lá fora, o mundo seguia girando.

Porque enquanto as mágoas adolescentes ardiam num dormitório abafado, do outro lado do céu, algo muito mais antigo e perigoso rasgava o silêncio do espaço.

No alto das montanhas de Zhalmir, cravada entre as nuvens e os feixes mágicos da atmosfera superior, a Base de Vigilância Planetária de Hiden chamada Comando Sentinela de Hiden (CSH) vibrava em silêncio. Salas repletas de monitores, feitiçarias de detecção e sistemas híbridos de tecnologia e magia mantinham olhos constantes sobre os céus do mundo. Nada passava despercebido — nem mesmo aquilo que tentava se esconder.

A sirene rompeu o silêncio às 03h44.

Um alarme baixo, quase tímido no início, piscando em vermelho sobre o mapa da zona 7H. Os operadores do turno noturno se inclinaram para frente, despertando da rotina.

— Objeto detectado — anunciou um dos analistas, aproximando os dedos de uma tela mágica translúcida. — Vetor descendente, lento demais pra ataque… mas vindo de fora da órbita habitual.

O holograma se projetou ao centro da sala. Uma nave ovalada, metálica, coberta de desgaste e ferrugem, surgiu flutuando com lentidão espectral. Ela parecia antiga — não só velha. Perdida. Carcomida por milênios de poeira cósmica e batidas contra o tempo.

— Isso é... um modelo da era do Restauro? — murmurou uma das técnicas, ajustando o foco sobre o letreiro lateral. As inscrições estavam quase apagadas, mas ainda legíveis: um código alfanumérico que pertencia ao sistema de registro do próprio planeta Alfhenia. — Isso devia estar desativado há mais de quarenta anos...

— Essa merda foi dada como desaparecida em 1983 — confirmou outro agente. — Mas... como ela voltou?

As vozes começaram a se sobrepor, e a tensão na sala aumentou. Leitores vitais piscavam em tons de verde opaco: havia vida a bordo. Sinais fracos, instáveis, alguns quase extintos. Pulso errático, oxigênio mínimo, radiação absorvida no tecido de forma crônica. O tipo de dano que não vinha de uma guerra — vinha do abandono.

— Estão vivos — constatou um dos especialistas. — Mas... ferrados. Não há armamento ativo. Sem escudos, sem torres de plasma, sem propulsão auxiliar. Isso não é um ataque.

— Isso parece... uma carcaça flutuante — sussurrou alguém. — Uma arca... quebrada.

O clima gelou. Cada novo dado lançado na tela parecia confirmar o impensável: aquilo era uma nave local, de origem alfheniana, sumida por décadas em uma região proibida do espaço profundo. E agora... retornava, agonizante.

— Comandante Mherdan — chamou um dos líderes, já ligando para o núcleo de decisões. — Temos um protocolo cinza. Possível retorno de equipamento nacional, presença viva detectada, mas sinais de contaminação e fuga.

O rosto da comandante apareceu num painel vertical, projetado em luz fria. Ela estava séria. O tipo de ser humano que não aprendia a sorrir, nem mesmo durante comemorações militares. Seus olhos eram estáveis. Gélidos.

— Não temos tempo pra diplomacia — disse, firme. — Ameaças retornando em estado instável não são exceções. São precedentes perigosos.

— Mas a nave não tem armamento...

— Qualquer falha de leitura pode custar vidas. Se for um vetor de contágio, uma armadilha... ou pior... um pedido de socorro — ela parou, encarando os dados. — Mas mesmo assim... nossos heróis agem primeiro.

A comandante Mherdan permaneceu em silêncio, olhando para a mesa holográfica onde as informações se acumulavam como uma pilha de cinzas frias. De um lado, os protocolos básicos: evacuação, contenção, monitoramento. Do outro, o fantasma daquela nave agonizante, rumo direto a um ponto crítico do planeta.

— Temos outros agentes — disse uma voz hesitante ao seu lado, uma jovem oficial tentando sugerir cautela. — Poderíamos chamar reforços com capacidades diversificadas. Estratégia, diálogo, magia defensiva...

Ela levantou a mão, cortando o fluxo antes que a conversa se alongasse.

— Reforços? — a comandante repetiu, a voz baixa, carregada de gelo. — Não temos tempo para estratégias. Nem espaço para hesitação. Essa missão precisa de quem corta o ar. Quem sobrevoa o problema e o destrói antes que ele chegue ao solo.

Os olhos dela se fixaram na lista holográfica.

— Briaaron e Eldaly. Dois voadores. Dois letais. Sem frescura.

— Mas eles ainda estão no meio de outra operação — contrapôs a oficial.

— Que se vire. Prioridade máxima. Hiden primeiro.

Um clique distante soou na sala. A comandante puxou uma chave antiga, com detalhes em prata e obsidiana — um artefato simbólico que havia passado por gerações de comando. Ela encaixou a chave em uma ranhura oculta na mesa, girando devagar.

Um leve zumbido mágico percorreu a sala, selando o protocolo.

— Códigos de emergência acionados. Heróis convocados.

Nível máximo de contenção. Não era uma missão simples. Era uma missão suja. Uma das que ninguém queria comentar depois.

Lá fora, o céu era cortado por uma linha de fumaça e fogo. A nave arrastava seu próprio caixão incandescente acima das nuvens, como uma cicatriz viva costurando o fim de uma era. Não havia brilho. Não havia poder. Apenas neblina e cinzas, como uma alma enfraquecida voltando pra casa. Seu voo era instável, como se cada metro fosse puxado pela dor.

Na sala, as projeções de impacto começaram a ser exibidas.

— Dez minutos para sobrevoar Runakys... onze minutos para entrada visual em campos de concentração mágicos. A trajetória é linear, sem ajustes.

— Isso não é acidente — murmurou alguém, já sem conseguir conter a voz trêmula. — Isso tá indo pra lá.

Ninguém disse nada.

Porque todos sabiam que não importava mais.

A comandante Mherdan andou até o painel final. A sala inteira ficou em silêncio. Nem os teclados mágicos tilintavam mais. Até os feitiços de temperatura pareciam hesitar.

Ela ergueu o queixo. Digitou o código de segurança com firmeza. O selo girou três vezes.

E então ela disse:

— Código Violeta.

Um clique.

Um peso.

Um mundo inteiro prendendo a respiração.

— Autorizada a interceptação imediata.

— Sem aproximação. Sem escuta. Sem perguntas.

Fim da linha.

Fim do capítulo

...

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