Volume 1 – Arco 1
Capítulo 8: O Chamado que Desabrocha
O quarto estava imaculado, mas o ambiente denso de tensão pairava no ar, um quarto pálido com apenas uma cama e uma mesa no canto. Firefy estava sentada ao lado de Gumer. Ele segurava as mãos dela com força, os olhos marejados de lágrimas enquanto soluçava, deixando o peso de sua dor transparecer em cada movimento.
Firefy olhava para ele com uma expressão de profunda dor e compaixão, sentindo a angústia dele se infiltrando em seu peito. Seu coração apertava a cada palavra que ele dizia, mas ela tentava, com toda a sua força, encontrar uma maneira de dar-lhe conforto.
— Vai ficar tudo bem, Gumer — disse ela, a voz trêmula.
Mas Gumer balançou a cabeça, sua mandibula ainda fragilizada. O olhar vazio e distante, como se estivesse perdido em um pesadelo sem fim.
— Não... Não vai ficar bem, Firefy... Eu não tenho uma doença. Alguém fez isso comigo. — Ele estava desesperado, os olhos vidrados em um lugar distante, como se olhasse para um espaço onde ninguém mais podia ver.
Firefy, com o coração apertado e completamente sem saber o que fazer, olhou fixamente para ele.
— Quem... quem fez isso com você, Gumer?
Gumer olhou para ela, seus olhos cheios de dor e uma tristeza insondável.
— Eu não sei... Mas a voz... Ela sempre vem. Me perturba. O monstro... Ele me devora toda noite... E o Sangue, Fye... Ele queima meus pés...
Firefy, sentindo o peso das palavras dele, ficou em silêncio por um momento, observando-o enquanto ele lutava para se manter forte, sua mente sendo dilacerada por aquilo que ele estava vivendo. Ela não sabia o que fazer, mas sabia que ele estava em um estado muito além de qualquer doença humana.
— Como é esse monstro, Gumer?
Ele arregalou os olhos, um pavor profundo tomando conta dele.
— Você não vai querer ver ele... ele... ele... Ele vem toda á noite, e... Ele me devora. O Sangue... O... Ele queima os meus pés... — Gumer tremia, seu corpo encolhido na cama, o medo estampado em cada músculo.
Firefy segurou ainda mais forte a mão dele, tentando transmitir um pouco de calor e esperança.
— Tem mais alguém? Tem mais algo que você viu?
Ele olhou para ela com um olhar profundamente atormentado.
— A garota... fantasma. Ela me observa dentro do quarto. Ela é... vazia, invisível. O cabelo dela é curto... Ela bebe o Sangue. E... ela está sendo comida viva... pelo poder. Ela se recusa a ter um monstro dentro dela...
Firefy sentiu a respiração falhar, um nó se formando em sua garganta enquanto ela processava tudo o que ele estava dizendo. Não era apenas um pesadelo, não era só uma doença... Era algo muito mais profundo e sinistro.
— Eu vou ajudar você, Gumer. Eu vou tirar isso de você. Só... me diz o que fazer. Como eu posso ajudar?
Gumer olhou para ela, seus olhos ainda cheios de medo, mas também de uma esperança tremida. Ele respirou fundo, como se tomasse coragem para falar o que mais temia.
— A alma de Satrak... Você precisa encontrá-la e destruí-la. E... Você precisa ajudar a garota também. Ela... Ela não merece isso.
Firefy ficou em silêncio por um momento, absorvendo o peso das palavras de Gumer. Ela sabia que sua missão não seria fácil, mas ele havia lhe dado a chave. Ela apertou ainda mais a mão dele.
— Eu vou fazer isso, Gumer. Eu prometo que vou destruir... Satrak. E vou ajudar a fantasma. Vai ficar tudo bem. — Sua voz era suave, mas cheia de convicção, como se estivesse assumindo um compromisso com ele, com ela mesma e com todos os outros que estavam sofrendo.
Eles se encararam por um longo momento, e então Firefy se inclinou para frente, envolvendo Gumer em um abraço apertado. O calor de sua presença parecia trazer um pouco de alívio para ele, e ele se deixou ser abraçado, chorando silenciosamente.
— Eu vou voltar para você, eu prometo... — disse ela, antes de se afastar, sentindo uma mistura de tristeza e esperança. — Cuide de si, Gumer. E quando tudo isso acabar, eu vou estar aqui.
Ela se levantou, com os olhos ainda lacrimejando, mas com a certeza de que sua missão estava apenas começando. Gumer, olhando para ela, deu um sorriso fraco, mas sincero, antes de ela sair do quarto.
Firefy se despediu de Gumer e saiu da clínica, com a mente cheia de planos e uma única missão: acabar com Satrak e ajudar a garota fantasma, qualquer que fosse o custo.
18 de março de 2019 - Segunda-feira
Glomme chegou atrasado no internato escolar e logo reparou Ártemis e Firefy reunidas em uma das mesas do pátio. Ele se aproximou, se sentou com elas e percebeu que conversavam com seriedade.
— Oi! Estávamos falando sobre o Gumer e as visões que ele tem tido. Precisamos nos concentrar em encontrar uma coisa chamada "Alma de Satrak", além de entender quem é uma tal "garota fantasma" — disse Firefy.
Glomme tentou acompanhar a conversa e comentou casualmente:
— Bom... Falando em garota, souberam que uma menina teve um ataque de raiva na semana passada, e todas as colegas de quarto dela pediram transferência.
— Meu deus, quem é essa garota? — perguntou Ártemis, curiosa.
Glomme coçou a cabeça, hesitante.
— Acho que o nome dela é... Mary... ou talvez Marry? Marry, isso.
— Não é aquela garota que vive espiando todo mundo? — perguntou Firefy, erguendo as sobrancelhas.
Ártemis arregalou os olhos, visivelmente surpresa.
— Ela espia as pessoas? Isso é muito estranho.
— Pois é, dizem que ela aparece do nada e só fica observando — completou Glomme, balançando a cabeça devagar.
Firefy pareceu ligar os pontos, seu olhar se tornando mais concentrado.
— Pera... A... A garota das visões do Gumer... ele disse que ela fica observando-o no quarto. E se talvez... seja essa Marry... A fantasma.
— Parece que ela não sai do quarto desde então — disse Glomme.
Depois de um silêncio breve, Firefy se virou para Ártemis com uma ideia.
— Ártemis, você poderia tentar falar com ela. Quem sabe consiga alguma informação.
Ártemis fez uma careta e recusou de imediato.
— Falar com ela? De jeito nenhum, Firefy. E se ela for... perigosa? Não quero um encosto me perturbando também.
— Por favor, Ártemis, é pelo Gumer. Leva alguma coisa doce, tipo pudim. todo mundo gosta de pudim — insistiu Firefy, tentando convencer a amiga.
Ártemis suspirou, ainda com receio, mas acabou assentindo.
— Tá bom, eu posso tentar.
Firefy sorriu ao ouvir a decisão de Ártemis, seu entusiasmo evidente.
Glomme deu um aceno confiante, a expressão resoluta em seu rosto. Ele estava determinado a fazer o que fosse necessário para ajudar.
Firefy respirou fundo, seus olhos se estreitaram com uma determinação inabalável. Não havia espaço para dúvidas ou hesitações. Eles iriam salvar Gumer, custasse o que custasse. Ele não merecia o que estava passando, e ela não descansaria até vê-lo livre daquilo.
O grupo trocou olhares de apoio, cada um sentindo o peso da missão que tinham pela frente.
10 de Março de 2019 - Domingo
8 dias e 9 horas atrás
A madrugada parecia lenta, como se o mundo tivesse decidido descansar em silêncio. O relógio na parede já marcava a quarta hora da manhã, mas nada parecia ter mudado desde o último olhar. O frio lá fora se intensificava, e a escola, agora imersa em sombras, exalava uma calma profunda. As luzes fracas dos corredores lançavam sombras longas e vazias, como se a própria noite estivesse se estendendo sem pressa.
No quarto de Marry, tudo parecia tranquilo. As três colegas de quarto dormiam profundamente, mas Marry, com seus poderes aguçados de audição, percebeu algo estranho. A porta do dormitório se abriu lentamente, e o som suave do rangido da madeira foi o suficiente para fazer Marry se alertar. Ela olhou para as outras garotas, que continuavam dormindo, alheias ao que estava acontecendo. Ela foi a única a ouvir.
Marry ficou em silêncio, pensando no que poderia ser. Ela se forçou a relaxar, achando que poderia ser o vento ou qualquer outro som natural. Mas, quando se deitou novamente, fechou os olhos para tentar dormir.
De repente, seus olhos se abriram novamente, e o brilho vermelho que iluminou seu olhar refletia um terror profundo. A voz começou a invadir sua mente, surgindo como um sussurro ameaçador. As palavras se entrelaçavam com suas memórias mais dolorosas: sua infância marcada por maltratos, bullying na escola, e a dor de ser constantemente agredida e assediada pelos “amigos” que se diziam próximos. Ela havia aguentado tanto tempo, sofrendo calada, esperando que tudo passasse.
A voz continuou, relembrando-lhe os momentos mais sombrios de sua vida, a crueldade de sua família, que nunca se desculpou por seus erros. Sua infância marcada por abusos emocionais, as humilhações constantes, os dias sem fim de sofrimento. Ela entrou para o internato, acreditando que lá ela poderia finalmente escapar de tudo isso, mas, aparentemente, a dor a acompanharia onde quer que fosse. E agora, a voz não parava de se intensificar, trazendo à tona cada detalhe insuportável, que fazia o coração de Marry se apertar.
Ela chorava, paralisada na cama, o corpo congelado pela magia da voz que invadia sua mente. Marry tentou se mover, mas suas mãos e pés não respondiam. De repente ela se viu em um quarto infinito, escuro e vazio, um cenário de terror com o sangue tocando seus tornozelos. A voz continuava, sem piedade, espalhando mais e mais crueldade em sua cabeça. A dor era física e emocional, e ela estava sozinha, imersa em seu próprio sofrimento.
E então, algo começou a mudar. Uma fumaça vermelha começou a tomar forma, surgindo do nada e envolvendo Marry, se movendo ao redor dela com a força de um vórtice de vento. Ela gritou, seu corpo paralisado dentro daquele turbilhão de fumaça, mas, surpreendentemente, o vórtice não era algo externo. Era a própria Marry quem o estava criando, suas mãos erguidas como se controlassem a magia que estava tomando conta de seu corpo.
A fumaça se tornou mais densa, mais vibrante, e Marry, com olhos completamente vermelhos, começou a absorver a energia que se movia ao seu redor. Ela flutuava no ar, sentindo o poder crescendo dentro de si, e seus pés e mãos brilhavam intensamente em tons de vermelho enquanto a magia a envolvia. A fumaça mágica que ela criava, ao invés de ser um fardo, começava a se infiltrar em seu corpo, como se estivesse sendo assimilada por ela, o quarto infinito se desfazia, se fundindo com a fumaça enquanto tudo era absorvido por ela.
Mas, ao contrário do que parecia ser um momento de controle absoluto, a sensação mudou rapidamente. Marry sentiu uma dor esmagadora, como se a magia estivesse corroendo-a de forma descontrolada. Sua mente, tão assombrada, estava cheia de confusão. A fumaça dentro dela começou a se agitar, e, com um último esforço, ela foi projetada de volta para a cama, caindo sobre o sangue imaginário, acordando repentinamente em sua cama.
Marry se contorceu, seu corpo febril e estremecido, enquanto uma dor lancinante tomava conta de seu ser. Ela estava coberta de suor, e sua respiração estava ofegante, quando finalmente conseguiu descer da cama, caiu no chão, gritando de dor no estomâgo, um grito profundo e desesperado que parecia ecoar pelo quarto vazio.
Suas colegas de quarto acordaram assustadas com o barulho e a visão de Marry no chão. Duas delas correram para fora do quarto em busca de ajuda, mas uma ficou ali, olhando para Marry, sem saber o que fazer. Marry, com dificuldade, tentava manter o controle da magia que ainda pulsava dentro dela, lutando para não deixar que o vórtice de fumaça a dominasse novamente.
A respiração de Marry estava pesada, e ela conseguiu, aos poucos, se acalmar, com o suor escorrendo pela testa. Ela se sentou no chão, olhando para o teto, tentando restaurar a calma em sua mente. A fumaça ainda estava lá, contida dentro dela, mas por quanto tempo conseguiria mantê-la sob controle? Ela não sabia. Tudo o que sabia era que a voz, os traumas e a dor dentro dela continuariam a ser uma presença constante, até ela encontrar uma maneira de se livrar de tudo isso.