Volume 1 – Arco 1

Capitulo 5: Olhos de Presa

Dormitórios.

A parte onde a gente descobre se vai conviver com uma alma gêmea, uma psicopata passivo-agressiva ou alguém que escova os dentes cuspindo no espelho.

Ansiosa pra saber em qual versão do inferno caí.

Quarto número alguma-coisa. Quatro camas. Duas ocupadas. 

Muitas malas.

Clássico sinal de que a competição por território já começou.

Deveria ter trazido bandeirinhas pra marcar o meu lado do beliche.

Ártemis e Trrira abriram a porta do quarto devagar, já acostumadas a pisar com cuidado em territórios alheios. O ambiente tinha a luz morna da tarde entrando pela janela entre os beliches, um cheiro indefinido de mofo misturado com perfume barato que denunciava presença recente.

O lado direito do quarto estava impecável demais. As roupas dobradas como em vitrine, a cama de cima esticada como se ninguém ousasse deitar ali sem permissão. Até o espelho parecia limpíssimo demais. Era como aquele espaço também estivesse sob controle. 

Elas se entreolharam, um pouco apreensivas, e começaram a ajeitar as bolsas nas camas de baixo, com a atenção dividida entre o espaço e o que as esperava ali.

Foi quando ouviram um riso — um som alto, rouco e meio debochado que ecoou pelo quarto, quebrando o silêncio.

Lá em cima, no beliche esquerdo, estava uma garota. Deitada de lado, apoiada num cotovelo, com o cabelo preso em um penteado "pigtails" e a blusa do uniforme impecavelmente ajustada. Ela abanava a mão num gesto teatral, fazendo um "tchauzinho" exagerado, com um sorriso que misturava provocação e diversão.

— Finalmente chegaram, meninas! — a voz dela vinha com aquele tom meio de atriz de comédia, cheio de ironia e uma pitada de sarcasmo. — Achei que iam me deixar aqui sozinha, me sentindo uma estrela de cinema esperando os paparazzi.

Ártemis deu um salto pra trás, meio dramática, com a mão na boca.

— Caraca, porra! — o som saiu abafado, jogando a cabeça para trás e apoiando-se na beliche atrás. — Tá de sacanagem, mano.

Trrira, discreta, cruzou os braços e arqueou uma sobrancelha, mas seu canto da boca cedeu a um sorriso quase imperceptível. Não falou nada, mas a expressão dizia tudo — aquela chegada caótica já tinha um quê familiar.

A garota saltou do beliche com uma agilidade impressionante, aterrissando no chão como um gato que não quer fazer barulho, mas não se contém de tanta animação.

— Eu sou a Leonarda — anunciou, jogando os braços para o alto, como se estivesse no palco de um show. — E essa é a nossa base secreta! Não se enganem, tá? Aqui é território de guerra, mas também tem muita zoeira. Vocês vão ver.

Ela se aproximou, circulando o quarto com um passo meio saltitante, olhos brilhando de malícia e alegria.

— Mas, sério — continuou, parando de repente, encarando as duas com aquele olhar que mistura "tô avisando" com "seja esperta". — Cuidado com a Misha. A menina pode parecer um anjinho, mas tem um talento especial pra deixar as coisas... interessantes. Tipo, nada desaparece sem ela saber, nada mesmo.

Leonarda riu alto, aquela gargalhada fácil, que contagiava o espaço.

— Ah, e outra coisa — falou, mudando o tom pra algo mais conspiratório, aproximando-se de Ártemis com um sorriso maroto. — Se quiserem sobreviver aqui, melhor aprender a rir das merdas que vão acontecer. Porque, olha, vocês vão rir — ou chorar — mas nunca vão se entediar.

Ela fez uma pausa dramática, sentou num sofá improvisado de malas do lado da porta e deu aquele sorriso enorme, com um brilho meio louco nos olhos.

— Agora, me desculpem, que eu tenho um monte de coisas pra bagunçar antes do café. Mas, ó, vamos ser amigas, hein? Vocês duas tão precisando de alguém pra equilibrar essa vibe meio dramática.

Com um último aceno teatral, Leonarda se virou para saída, olhou para a porta, onde do lado de fora estava Gumer, encostado na parede com uma cara meio estranha, quase indecifrável.

Leonarda engasgou meio envergonhada, abaixou o rosto rápido, como se de repente a "personagem" que ela encenava ali dentro não fosse mais necessária.

Gumer sorriu, conhecendo aquele truque. Sabia que Leonarda era mais do que aquela atriz barulhenta — era só um jeito de se proteger.

Sem dizer nada, ela saiu apressada e calada, deixando a porta escancarada para trás.

Ártemis cruzou os braços, os olhos semicerrados num misto de diversão e julgamento, olhando para a porta ainda balançando.

— Tá na cara que essa aí é atriz, viu? — falou com aquele tom meio provocador, mordaz. — Mas não aquele tipo bom não, sabe? É mais daquelas que finge até a alma. Aposto que se depender dela, a gente vai ter mais novela que descanso aqui.

Trrira ficou desviou o olhar, com um meio sorriso de vergonha alheia, balançando a cabeça.

Nesse instante, Gumer entrou devagar no quarto, com aquele sorriso torto, meio divertido, meio cúmplice.

— Ah, relaxa — disse, cruzando os braços. — A Leonarda é assim mesmo. Tá só fingindo esse personagem. Não se pode confiar muito na "gata palhaça" que ela cria, não. No fundo, ela é... bem diferente.

Ártemis virou o olhar para ele, arqueando uma sobrancelha.

— Tá dizendo que ela é uma psicopata disfarçada de comediante? — provocou, rindo.

Gumer riu também.

— Nem tanto. Só que o teatro dela é um escudo. A gente nunca sabe direito o que se passa por trás dessa fachada. Mas, se você perguntar pra mim, acho que é melhor deixar ela continuar fazendo esse show. Vai ser divertido — piscou.

Eu quis perguntar o que ele via nela — nela de verdade.

Mas ele já estava de pé. Saiu antes — parecia estar com saudade da própria gangue.

Eu e Trrira seguimos depois, meio sem saber o caminho, meio fingindo que sabíamos.

A escola era toda um grande labirinto de cheiros, vozes e paredes com runas entalhadas.
Mas o caos mesmo tava no refeitório.

Nove da manhã e já parecia impossível encontrar uma mesa livre. O refeitório estava lotado, mas ainda assim havia algo de sereno naquele espaço — talvez fosse a luz nublada filtrada pelas janelas altas, ou o barulho abafado de vozes se sobrepondo como uma onda distante. As paredes frias, cobertas de painéis com símbolos mágicos desgastados, refletiam o clima acinzentado da manhã. As mesas longas de madeira antiga. Alunos cruzando os corredores com bandejas flutuantes, grupos se espremendo em bancos apertados, vozes atravessando o ar como feitiços em conflito.

Ártemis e Trrira estavam sentadas mais ao fundo, perto da parede lateral, numa mesa que por sorte ainda estava vazia, tentando preservar um mínimo de paz. Trrira, com a blusa ainda com um botão solto, observava o movimento sem comentar muito — o olhar atento, como sempre. Ártemis, com as pernas esticadas de lado no banco e os cotovelos sobre a mesa, suspirava alto, irritada com o barulho, mas fascinada ao mesmo tempo.

Trrira soltou um som leve com o nariz, como se risse por dentro, mas sem virar o rosto. Estava concentrada demais observando tudo, ou melhor, alguém.

Foi nesse instante que Gumer surgiu no salão. Alto, de bermudas bege e meias brancas, cabelo cacheado volumoso e um certo magnetismo despreocupado. Caminhava no meio da multidão como quem atravessa uma neblina: sem pressa, mas deixando um rastro de olhares. Ao lado dele, vinha um garoto de expressão contida, a pele verde como musgo fresco, orelhas pontudas e olhos de um rosa profundo, absurdamente chamativos no contraste da pele. Carregava os livros junto ao peito como um escudo.

Trrira congelou.

Ela o viu antes de perceber que estava olhando. Os olhos dela se fixaram no tom da pele dele, no modo como ele mantinha a cabeça meio abaixada mas observava tudo ao redor. Era estranho. Era bonito.

Gumer chegou à mesa, sorrindo como quem reconhece um lugar seguro, e sentou-se com um gesto largo. O garoto de pele verde o seguiu, sentando-se mais hesitante ao lado.

Ártemis piscou surpresa, a boca entreaberta, olhando direto para Gumer — não só reconhecendo ele da cena de mais cedo, mas sendo atingida por alguma faísca estranha. O silêncio entre eles durou um segundo, mas foi denso como feitiço de paralisia.

Ela foi a primeira a quebrar.

— Você de novo? — disse, com um meio sorriso. — Eu achei que fosse uma miragem de testosterona mágica.

Trrira não conseguiu evitar um leve sorriso no canto da boca. Mas sua atenção estava mesmo era no garoto ao lado.

Gumer riu, inclinando levemente a cabeça, e respondeu:

— E você ainda tá me olhando como se eu fosse um fantasma de armário. Eu trouxe reforços — ele apontou com o polegar para o garoto verde ao lado. — Esse aqui é o Glomme. E a Firefy tá pegando chá. Deve estar chegando.

Trrira não conseguiu evitar um leve sorriso no canto da boca. Mas sua atenção estava mesmo era no garoto ao lado.

Trrira encarava Gumer com uma intensidade que quase doía. Seus olhos acompanhavam cada detalhe do rosto dele, das orelhas levemente pontudas, do tom da pele que parecia ainda mais vívido sob a luz difusa do refeitório. Era como se ela estivesse vendo uma pintura viva pela primeira vez.

— Você é... — Trrira começou, mas não terminou. Só piscou, como se tivesse se flagrado encarando demais.

Glomme, por sua vez, parecia totalmente preso à presença de Ártemis. Ele estendeu a mão com firmeza e ela apertou, sem esperar que ele continuasse segurando.

— Você tem uma pegada forte — ele comentou, meio sem jeito, mas com um sorriso discreto nos lábios. — Gosto disso.

— Eu treino — respondeu Ártemis, piscando com aquela cara de “é óbvio”. — E você... sempre apresenta com um aperto de mão ou só quando a pessoa é muito bonita?

Glomme engasgou um riso contido, mas manteve o tom certinho:

— Considero educação um hábito necessário. Mas... talvez eu tenha sido influenciado pela beleza, sim.

Gumer riu alto, batendo a mão na mesa.

— Eu avisei que ela ia te desconcentrar.

— Ele é... goblin? — Trrira perguntou, mais pra Gumer do que pra Glomme, ainda tentando entender.

Glomme respondeu direto, como se estivesse lendo um relatório:

— Sou híbrido. Grimgorth com Sinthra. Minha mãe é humana. Meu pai... é um goblin místico do Círculo do Sudoeste.

— Isso explica as bochechas fofas — Ártemis disse, quase como se fosse um comentário casual, mas claramente provocando. Ela apoiou o queixo na mão e sorriu para ele, sem se importar com o desconcerto no rosto dele.

Glomme corou — visivelmente, o verde da pele dele ganhando um tom mais escuro nas maçãs do rosto — e desviou os olhos, murmurando um "obrigado" rápido demais.

— Vocês são interessantes — ele admitiu, ainda com aquele jeito travado, mas sincero. — E diretas.

— A gente só fala o que pensa. — Ártemis deu de ombros.

Trrira ainda observava Gumer com os olhos levemente semicerrados, como se estivesse decifrando um código complexo.

Gumer olhou para ela e ergueu uma sobrancelha, mas não falou nada.

Antes que o silêncio ficasse constrangedor de novo, algo deslizou pelo ar.

Firefy chegou, flutuando lentamente, com uma bandeja nas mãos. As asas de borboleta ocupavam quase metade do espaço ao redor dela — delicadas, mas hipnóticas, com tons amarelados e negros que vibravam sob a luz. O cabelo loiro escorria pelas costas, e a pele alaranjada contrastava com o uniforme.

Ela pousou com leveza, como quem tem o tempo cronometrado com a brisa.

— Trouxe chá pra quem sobreviver à bagunça lá fora — disse, com um sorriso nervoso, colocando as xícaras na mesa.

Trrira piscou devagar, encantada com a presença dela, e Ártemis soltou um “uau” que nem percebeu ter saído alto.

— Essa é a Firefy — disse Gumer, olhando com carinho para a amiga, como quem apresenta uma joia preciosa, mas sabe que ela prefere se esconder na caixinha.

— Oi… prazer — murmurou Firefy, olhando de um em um, as asas encolhendo um pouco como se fossem sensíveis ao olhar alheio.

Glomme deu um breve sorriso para ela. Ártemis pareceu maravilhada, como se tivesse acabado de entrar em um conto de fadas meio ácido.

— Tá. Agora me diz… — Ártemis apontou com a cabeça para Gumer, depois para os outros dois — esse é o seu clube secreto de criaturas encantadas ou eu só tive sorte no café da manhã?

Todos riram, até Trrira, que abaixou o rosto fingindo ajeitar o cabelo, para não mostrar o sorriso.

Glomme olhou para elas com genuíno interesse. Eram tão diferentes, tão vibrantes… Trrira, silenciosa mas atenta, e Ártemis… tão viva, tão impossível de ignorar.

Pela primeira vez desde o Gumer, ele não quis fugir da conversa.

E, bom... se ele vai se abrir, então deixa eu fazer o mesmo.

Olha, vou ser real aqui

A Firefy é uma mistura de fada toda fofinha com alguém que manda bem sem fazer alarde.

O Glomme é tipo aquele amigo que nem sabe como lidar com o mundo, mas que você quer proteger porque ele é todo meio perdido e fofo.

E eu?

Eu gosto disso.

Não vou mentir, já tô começando a gostar dessa gangue estranha — meio barulhenta, meio acolhedora, cheia de gente que tem problema, mas também tem estilo.

Eles são todos uns tesudos muito caóticos

Até porque, no fundo, normalidade nunca teve graça mesmo.

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