Volume 1 – Arco 1
Capitulo 3: Boas-Vindas do Caralho
Segunda-feira, 18 de fevereiro. Chegou sem barulho. Nenhum despertador tocou. Nenhuma panela tilintou na cozinha. A casa parecia ter entendido sozinha que hoje não era dia de fazer barulho — como se o silêncio tivesse sido combinado entre as paredes e os móveis, pra não atrapalhar ninguém... ou pra não acelerar o tempo. Eu acordei antes de todo mundo, fiquei olhando pro teto por um tempo ridículo, e me perguntei quantas pessoas no mundo acordam com esse tipo de dor estranha no peito, que nem febre, nem falta de ar — só um peso que não tem nome.
O carro estacionou diante do Centro de Embarque Mágico, uma estrutura colossal — alta, quase translúcida, feita de vidro encantado e colunas curvas que pareciam respirar.
Ártemis desceu primeiro, puxando a mala com esforço, sentindo o peso não só da bagagem, mas do passo que dava. O vento da manhã era leve, mas cortava como se o ar estivesse diferente. Adym correu atrás, tropeçando no próprio pé, e segurou firme na manga da blusa da irmã como se fosse impedir que ela fosse. Armon pegou o restante das malas, bufando, mas com o olhar fixo demais no chão, enquanto a mãe se aproximava devagar, e, como sempre fazia, tentou domar os fios rebeldes do cabelo de Ártemis com os dedos trêmulos. O toque dela era delicado, mas nervoso, como quem segura algo precioso que sabe que vai escorregar dos dedos.
— Espera... deixa eu só... — murmurou, ajeitando a gola torta da blusa. — Pronto. Agora sim. Agora você tá... perfeita.
Depois de um longo abraço e beijos carinhosos, Ártemis se afastou. Com passos lentos, o coração batendo como um tambor surdo no peito, atravessou as portas de vidro que se abriram sozinhas à sua aproximação. Lá dentro, o saguão principal se erguia imenso e cintilante, com plataformas flutuantes, filas ordenadas e painéis mágicos que projetavam os nomes das escolas, horários, e sinais que mudavam de cor a cada segundo. Mas Ártemis não parou para admirar. Seguiu pelas setas mágicas que se acendiam à sua frente, atravessando o saguão com o som dos próprios passos.
Ártemis passou por duas portas de segurança, apresentou os documentos a uma funcionária com rosto sério e olhos gentis, e então continuou por um corredor cada vez mais cheio. O som do saguão foi ficando para trás. Ela andava com firmeza, mas as mãos tremiam. O corredor levava à Sala de Portais — um universo à parte.. Ao redor, portais feitos de pedra encantada giravam lentamente, deslizando por trilhos arcanos no chão.
Ártemis andou até o portal que carregava o brasão da sua escola — um estrela entrelaçado por galhos de espinheiro, entalhado na pedra cinza prateada. A aura do portal oscilava em tons frios, como uma bruma que se recusava a se dissipar. Ela parou diante dele, fechou os olhos por um segundo, segurou a alça da mochila com força, e então entrou.
Não era só um portal. Era a linha entre quem eu fui... e quem eu vou ser.
Só que eu ainda não sei quem é essa pessoa do outro lado.
O mundo se distorceu.
Não era como voar, nem como cair. Era como se o corpo passasse por dentro de uma onda que o desintegrava por um instante e o reconstituía do outro lado. Um frio percorreu sua espinha, a visão embaçou, e então, de repente, estava de novo com os pés no chão — pedra clara e sólida sob as solas dos tênis.
À sua frente, uma escadaria longa levava até um pátio aberto ao céu azul intenso. Ao fundo, o castelo. Enorme, cinzento, com torres tão altas que sumiam nas nuvens, parecia estar respirando — as janelas se estreitando como olhos desconfiados, as torres eretas como espinhas enrijecidas. Ártemis teve a incômoda sensação de que ele a observava por dentro, farejando sua insegurança.
Havia dezenas de alunos circulando pelo pátio, alguns rindo, outros praticando estilos de luta, outros apenas se reunindo em grupos pequenos. Todos pareciam saber exatamente onde ir, o que fazer, quem eram. Ártemis subiu devagar, sentindo o peso das pernas, tentando acompanhar o ritmo dos passos ao redor, mas claramente fora de sintonia. O uniforme ainda amassado, os cabelos presos de qualquer jeito, a mochila torta nas costas — ela se sentia um borrão entre as figuras nítidas.
A multidão empurrava em todas as direções, e antes que percebesse, já estava sendo levada pelos portões altos — sem saber se era ela quem andava ou se estava sendo simplesmente carregada pelo fluxo impiedoso de gente apressada.
O corredor principal ficou estreito com tanta gente. A luz que entrava pelos vitrais coloridos desenhava padrões no chão de pedra polida, e o som de vozes misturadas ecoava por todos os lados. O cheiro ali era de pergaminho antigo, poeira encantada e cera de vela.
Ela andava apressada, tentando acompanhar o fluxo, mas cada passo parecia hesitante demais, como se o chão pudesse mudar sob seus pés a qualquer momento. As paredes eram altas, frias, e o corredor estreito só tornava o espaço mais sufocante.
Cadê a placa dizendo pra onde eu vou?
Mas o que encontrava eram uniformes impecáveis, cabelos perfeitamente alinhados e sorrisos afiados demais.
Estava tão concentrada em não parecer perdida que nem viu de onde veio o empurrão. Só sentiu o impacto — forte, direto, bem no ombro — e o corpo batendo contra a parede de pedra com um baque seco.
— Ah, que saco. Dá licença, né? — disse uma garota de cabelo preso num coque alto e firme, os olhos castanhos brilhando com impaciência. — Viu a vibe da garota? Parece que teleportou do brejo.
Ártemis piscou, confusa pela dor e pelo tom.
— Essa aí ganhou sorteio no fundo de quintal, certeza. Escola mágica do caralho virou caridade agora? — disse um garoto, rindo com a cabeça jogada pra trás, enquanto se apressava.
A garganta de Ártemis queimava. Não era só pela dor no ombro — que latejava num ponto específico, quente e pulsante. Era a vergonha. A raiva. A vontade de devolver na mesma moeda... e o fato de saber que não conseguiria. Ainda não.
Ela tentou manter o queixo firme, mas os olhos já ardiam. Fingiu que ajeitava a alça da mochila só pra não encarar ninguém.
Foda-se. Respira. Só respira. Eles não te conhecem. Eles não sabem o que você é. Só tão vendo o que querem ver.
Seguiu adiante, devagar, tropeçando em si mesma até enxergar uma porta lateral, pequena, semiaberta. Empurrou com o ombro e entrou, sem pensar duas vezes, como quem foge de um tiroteio emocional.
O quartinho era abafado, pequeno, com cheiro forte de sabão velho, pedra úmida e pano esquecido. Havia vassouras empilhadas, baldes se arrumando sozinhos, panos mágicos flutuando preguiçosamente no canto — tudo mergulhado numa luz solar que escapava por uma janelinha suja no alto da porta.
Ela encostou-se na porta e deslizou até o chão, o ombro ainda doendo, a mochila largada ao lado como um pedaço esquecido de si mesma. Abraçou os joelhos com força, o queixo afundado nos braços. O coração batia alto, como se tivesse corrido por quilômetros. Só que ela não correu. Só caiu. De novo.
Se todo mundo aqui é assim, eu tô fodida. E nem é que eu queria ser bem recebida. Eu só queria não ser chutada na entrada.
O peito subia e descia num ritmo irregular. Os olhos apertados. O silêncio do quartinho era denso, abafado. Mas, pela primeira vez desde que atravessou aquele portal maldito, ela sentia que ninguém estava olhando. Ninguém estava esperando nada dela.
Só o vazio. E, por um momento, isso era melhor do que o olhar de gente que já tinha decidido quem ela era.
Merda de começo. Que merda de começo.
Ela respirou fundo, mais uma vez, e fechou os olhos.
Só me dá um minuto. Só um. Depois eu me levanto. Eu sempre levanto.
Mas Ártemis mal sentiu o ambiente. O olhar dela grudou direto na figura sentada no canto, perto de uma prateleira torta com baldes encantados empilhados: uma garota de pele escura, cabelo cacheado, o uniforme impecável e uma expressão de quem também não esperava ser encontrada ali. Seus olhos, grandes e escuros, arregalaram-se de imediato, congelando Ártemis no lugar.
Assim que os olhos das duas se encontraram, o mundo pareceu segurar o fôlego por um segundo.
O livro caiu no chão com um estalo seco. Em um movimento fluido, ela se levantou com uma agilidade precisa, quase ensaiada. O corpo assumiu uma postura defensiva instintiva: pés afastados no chão de pedra, um pouco curvada para frente, mãos erguidas num gesto sutil e o peso distribuído pelo corpo. Os olhos semicerrados cravaram em Ártemis com desconfiança feroz. Ela não parecia assustada, mas... atenta. Muito atenta.
O coração de Ártemis disparou, mas não de medo — de choque. E também de vergonha.
— Cacete... — a voz dela saiu fraca, quase um sussurro esganiçado. — Que susto do caralho — continuou Ártemis, mais baixo. — Tá um inferno lá fora. Eu nem vi que tinha alguém aqui.
Do lado de fora, o som abafado de passos apressados, gritos e risadas vulgares continuava. Alguém gritou um palavrão, outro respondeu zombando. A escola parecia um ninho de abelhas furiosas.
A garota manteve a postura firme por mais alguns segundos, observando Ártemis de cima a baixo. O peito subia e descia rápido, como se estivesse decidindo ali mesmo se expulsava a intrusa ou deixava passar.
— Você é nova. — disse, com um tom baixo e direto. As mãos baixaram devagar. Um suspiro escapou, e ela se agachou para pegar o livro do chão. Bateu na capa com a palma da mão para tirar a poeira imaginária e voltou a se sentar no mesmo canto de antes. — Pode ficar aí, se quiser. Só... não faz barulho. — disse, sem encarar Ártemis diretamente, já mergulhando de novo nas páginas.
— Você se esconde aqui com frequência? — perguntou Ártemis, num tom leve, quase brincalhão.
A outra garota ergueu os olhos por um segundo, depois voltou ao livro.
— Não me escondo — respondeu seca. — Só prefiro lugares silenciosos.
Ártemis assentiu com um sorriso tímido.
A garota, dessa vez, soltou um ruído discreto que Ártemis quase não entendeu se era um riso ou apenas um suspiro impaciente. Mas foi suficiente.
— Eu sou Ártemis, aliás. Meio esquisito, eu sei. Nome de deusa, mas juro que sou bem mais legal que ela.
A garota não respondeu de imediato. Virou uma página. Os olhos ainda no livro — Trrira. — disse ela por fim, sem levantar a cabeça.
— Oi, Trrira. É com dois erres, né? Ou eu ouvi errado?
— É.
— Bonito. Nunca ouvi antes. Diferente — Ártemis não pôde evitar o sorriso. Por um instante, o peso que sentia nos ombros pareceu mais leve.
Um silêncio confortável se instalou. Do lado de fora, o som abafado do caos adolescente — passos apressados, risadas, gritos. Ali dentro, só elas, um cheiro forte de limpeza e uma conexão que começava a se formar no meio do nada.
Ártemis ainda tentava se acomodar no chão, encostada na porta, quando o mundo desabou atrás dela.
Um estrondo. Pá! E logo depois, dor.
— AI, FILHO DA PUTA! — o grito explodiu na sala quando a porta foi violentamente empurrada e acertou em cheio a parte de trás da cabeça dela.
No mesmo segundo, um corpo voou para dentro da sala como se tivesse sido arremessado por um canhão. Era um garoto. Gigante. Musculoso. Os pés não acompanharam o peso do próprio corpo e ele tropeçou direto na mochila de Ártemis.
— Ai, caralh...!
Baque seco. O chão de pedra gemeu sob o impacto do corpo dele. Ártemis ainda estava com a mão na cabeça, olhos semicerrados, tentando entender o que acabara de atingir seu crânio. Ela virou o rosto devagar, furiosa, e encontrou o garoto estatelado no chão aos seus pés, como um pacote de carne mal entregue.
Do lado de fora, uma gargalhada abafada ecoou pelo corredor, debochada e distante. Em seguida, passos apressados sumindo.
A porta se fechou com um baque grave e solitário, como se o universo tivesse batido o ponto e decidido deixá-los ali sozinhos no caos.
Trrira já estava de pé de novo, séria, com os braços cruzados, observando a cena como se fosse apenas mais um capítulo entediante do dia.
— Desculpa, desculpa, desculpa! — disse o garoto, a voz grave e arrastada. Ele se ergueu rápido, um pouco desequilibrado, e passou a mão pelos próprios cabelos cacheados, sacudindo-os num gesto exagerado, meio torto, como se tentasse voltar à pose.
Ártemis levantou-se de um pulo, ainda pressionando a lateral da cabeça, o olhar faiscando de raiva.
— Você quase quebrou meu crânio, otário! — rosnou. — Que tipo de rinoceronte humano cai pra dentro de uma sala ATIRADO assim?
— Ei, ei, calma, moça da paz — ele disse, abrindo um sorrisão largo, mais engraçado do que convincente. — Eu fui empurrado, beleza? A culpa não é minha se minha existência pesa uns... sei lá, oitenta quilos a mais que essa porta.
— Sério? Que ótimo. Quase deslocou meu cérebro, seu idiota! — disparou, erguendo uma sobrancelha e encarando ele com indignação teatral. — Você costuma cair em cima das pessoas ou hoje foi só um teste de resistência da minha cabeça?
Ele riu, sem o menor sinal de vergonha.
— Desculpa mesmo, de verdade. Eu mato aqueles desgraçados depois. Eu juro. Escreve aí. Com sangue.
— É melhor que mate mesmo — resmungou ela, voltando a se sentar bufando no chão, agora com as pernas esticadas. — Eu ainda tô ouvindo sinos de Hogwarts aqui.
Primeiro dia. Primeiro galo na cabeça.
Acho que agora sim: tô oficialmente matriculada.
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