Volume 1 – Arco 1

Capítulo 2: Onde Ainda Estaremos Juntos

Algumas despedidas não esperam o momento da partida.

Elas chegam antes — disfarçadas em silêncios, em palavras que pesam mais do que deveriam, em olhares que duram tempo demais.

E naquela tarde, enquanto a cidade continuava como se nada tivesse mudado, dois irmãos já começavam a sentir a ausência que ainda nem havia chegado.

A porta estava entreaberta, deixando passar um feixe dourado de luz que cortava o quarto ao meio, como se o tempo ali dentro estivesse suspenso. As paredes estavam silenciosas, os brinquedos quietos no chão. Sentado na beirada da cama, com os pés descalços tocando o chão frio, Adym encarava o brilho do sol pela janela, mas seu olhar estava longe, perdido num lugar onde nem ele mesmo sabia entrar.

Ele mal se mexia. O rosto franzido tentava fingir força, mas os lábios apertados e os olhos marejados o traíam. Os dedos se apertavam sobre os joelhos, e o queixo tremia imperceptivelmente. O quarto, que tantas vezes ecoara risos, estava agora pesado como um segredo.

Ártemis apareceu na porta em silêncio, o corpo recostado no batente. Os braços cruzados e o rosto calmo, mas os olhos... os olhos observavam cada movimento do irmão como se quisessem decorar aquela cena. Quando ele percebeu sua presença e, sem disfarçar os olhos marejados, virou lentamente o rosto em sua direção a ela. Não disse nada de imediato. Apenas a olhou.

— Eu... eu vou sentir sua falta, sabia? Não é só porque você vai embora. É porque... você é a minha irmã — a voz saiu engasgada, quase inaudível.

Ártemis soltou o ar devagar, sem disfarçar o peso da emoção. Deu passos curtos para dentro do quarto. Sentou-se ao lado dele com cuidado, como se o colchão pudesse quebrar sob o silêncio entre eles.

— Sabe... eu pensei em fugir — disse ela, tentando forçar um sorriso. — Pensei em fingir que a carta era mentira, que a escola tinha fechado, que eles mudaram de ideia. Só pra não ter que dizer tchau pra você.

Adym não respondeu de imediato. Respirou fundo, os ombros subindo devagar. Depois virou o rosto, encarando a irmã por um segundo, os olhos grandes e molhados.

Ártemis baixou os olhos por um instante, depois olhou para o teto, suspirando.

— Eu também vou sentir, Dy — respondeu ela, a voz baixa, carregada de uma calma que tentava ser firme, mas era frágil. — Mais do que eu queria admitir. Porque a gente cresceu junto. E crescer significa ir embora, aprender a lidar com a saudade, com o medo... com o vazio que sobra quando quem você ama não está por perto. Mas eu não tô morrendo, não mesmo. Só tô... saindo para tentar encontrar o meu lugar. Lá fora. No mundo que espera por mim, mesmo que eu ainda não saiba direito o que ele quer de mim.

Ficaram assim por um instante. Sem encarar um ao outro, mas com os ombros quase se tocando. Ela ajeitou o cabelo atrás das orelhas, pensativa.

— É só... uma escola — continuou ela. — Três semanas vão passar voando. Eu sei que parece muito, mas acredite, vai passar. E quando eu voltar, a gente vai tentar recuperar tudo: o tempo, as brincadeiras, as conversas, as brigas. Porque eu preciso que você esteja lá. Porque eu preciso que você esteja aqui. Preciso que você esteja forte, mesmo quando eu não estiver pra proteger.

Adym não respondeu de imediato. Mexeu nos próprios dedos. Respirou fundo, tentando afastar o nó que se formava no peito. Ela virou o rosto e olhou pra ele com leveza.

— Eu odeio quando você tenta fazer parecer fácil — retrucou ele, cruzando os braços, a testa franzida. — Porque não é. A casa vai ficar estranha. Vai ser só eu, mamãe e papai... e eles brigam por bobagem quando você não tá por perto. Você meio que segura a paz aqui, sabe?

Ela riu com o canto da boca, abaixando a cabeça.

— Que responsabilidade, hein? Segurar a paz mundial da casa Malfye. — Ela deu um leve empurrão no ombro dele. — Talvez você tenha que assumir esse cargo agora.

— Eu?! Eu sou só o irmão caçula.

— É. Um irmão caçula que me ajudava a fazer tornados escondido no quintal. Que me cobria quando eu fugia pra ler no telhado. Que uma vez fingiu estar com febre só pra eu não levar bronca por esquecer a panela no fogo. Você não é só o irmão caçula, Dy. Você é... o meu aliado secreto.

Adym sorriu. Um sorriso tímido, quase dolorido. Ártemis sorriu, olhando aquele rosto de menino rindo com os olhos fechados.

— Crescer é complicado, né? — ela murmurou. — Você lembra de quando era pequeno? Aquele tempo em que tudo era estranho e engraçado? Em que você tropeçava nos chinelos e achava que nuvem era algodão doce? Quando a gente fazia planos bizarros de ser pirata ou astronauta e tudo parecia possível?

Ele riu, sincero dessa vez.

Ficaram em silêncio, ouvindo apenas o som abafado de um carro passando na rua.

— Crescer é uma merda — ele murmurou.

— É. Uma merda com fases bônus. Tipo essa aqui. Mas você vai passar por isso também. E quando passar... talvez entenda por que eu preciso tanto ir.

— Você quer fugir daqui?

— Não. Eu quero encontrar o que tem lá fora... antes que o mundo me diga que não posso mais tentar. Quero errar por conta própria, sabe? Quero aprender a magia que ninguém aqui me ensinaria. A gente vai se enchendo de responsabilidades, o mundo vai apertando, as coisas vão ficando mais cinzas. A imaginação some no meio do cansaço. E a gente se sente pequeno, mesmo quando tem que ser grande. E... também quero voltar e te contar tudo.

O sorriso dele murchou aos poucos. O dela também, olhando pro teto mais uma vez.

— Eu tenho dezesseis anos agora, Dy — ela continuou, virando-se para ele. — E no próximo ano, eu faço dezoito. A idade que dizem que você "vira adulto de verdade". Aí é trabalho, contas, escolhas difíceis, medos novos. E eu nem sei direito o que eu tô fazendo, mas eu preciso tentar. Preciso ver, mesmo com medo. Preciso fazer essa viagem — não só pra escola, mas pra mim mesma. Pra descobrir quem eu sou, além dessa casa, dessa rotina, no centro.

Ele a olhou de lado, com um leve sorrisinho de canto, e disse num sussurro:

— Eu não queria que você crescesse tão rápido, Mi. Nem que eu tivesse que ficar aqui, sem você. Parece que tudo vai mudar e eu não sei se tô pronto pra isso. Pra você ir embora, pra eu ficar sozinho.

— Eu também não queria — ela respondeu, virando o rosto pra ele. — Mas às vezes a gente não escolhe, sabe? E não precisa ser ruim. Só... diferente. E mesmo longe, a gente vai estar juntos no que importa.

Adym deixou o corpo cair pra trás, deitando na cama de braços abertos, como se estivesse exausto do próprio sentimento. Ela o imitou, deitando ao lado. Ficaram ali, paralelos, olhando o teto, dividindo o mesmo teto que um dia não dividirão mais todos os dias.

— Você vai ter que cuidar da mamãe e do papai — ela falou, rompendo o silêncio com uma voz mansa, mas firme. — E de si mesmo também. Porque eu não vou estar aqui pra te puxar pela orelha todo dia. Então, por favor, tenta não virar um babaca enquanto eu estiver fora.

— Eu não vou virar um babaca — ele respondeu, virando o rosto para encará-la com uma expressão desafiadora, mas um brilho de medo no olhar. — Mas vou fingir que sou filho único por três semanas só pra ver o que acontece.

— Isso significa que vai ganhar mais presentes, aproveita — ela riu, virando-se também, agora de lado, a cabeça apoiada no braço.

Adym riu de novo, mas o riso logo virou um suspiro. Ele fechou os olhos, e, com a voz quase sumindo, murmurou:

— Eu... espero conseguir sobreviver com eles sem você. Sem você por perto, a casa vai parecer mais vazia.

Ela não disse nada no primeiro segundo. Depois apenas o puxou com força para perto, envolvendo-o num abraço apertado, demorado, quente. A mão dela subiu até a nuca dele, e o rosto afundou nos cabelos desalinhados.

— Vocês vão conseguir — ela sussurrou, com convicção. — Eu sei que vão. E quando eu voltar, quero encontrar tudo inteiro. Você, eles, a gente.

Ficaram assim. Abraçados. No quarto onde tantas vezes brincaram, brigaram e fizeram as pazes. Agora, em silêncio, tentavam segurar o tempo. Mas o tempo, esse traidor, sempre escapa pelas frestas da porta, junto com a luz que entra e diz que a hora chegou.

E os dias começaram a passar.

Sexta-feira.

Parecia cedo demais pra doer. Mas doeu.

Não porque eu estivesse indo embora da cidade — mas porque era a primeira vez que eu não ia acordar aqui. Em casa. Com o cheiro do café fraco da mamãe, os passos arrastados do papai pela cozinha, a voz do Adym reclamando do despertador. Doeu porque tudo ainda estava aqui… mas não ia estar comigo na segunda.

Hoje, fomos comprar o uniforme. A mãe pegava as medidas com tanto cuidado, como se dobrar a barra da calça fosse uma despedida disfarçada. O pai organizava os documentos com aquela cara séria, mas eu via quando ele respirava fundo demais. E eu? Fingindo que era só mais uma sexta qualquer.

Mas não era.

Na volta, olhei pela janela e pensei que, mesmo voltando pra casa, eu já não estava mais ali. Minha cabeça estava dividida. Metade empolgada. Metade... tentando decorar cada detalhe.

Sábado.

A casa parecia menor hoje.

Ou talvez fosse só eu tentando me esticar dentro dos cômodos, como se quisesse abraçar tudo ao mesmo tempo. A cozinha, a sala, meu quarto, o armário de temperos da mamãe, o tapete velho que o papai insiste em manter, mesmo todo manchado. Eu olhava cada canto e pensava: “segunda eu não vou acordar aqui”.

É um pensamento besta. Três semanas. Só isso. Mas parece um século quando a gente pensa nas coisas pequenas.

Tipo o jeito que a mãe cantarola baixinho sem perceber. Ou o som do jornal sendo rasgado quando o pai se irrita com alguma manchete. Ou a maneira como Adym aparece na porta do meu quarto com cara de tédio fingindo que veio “só ver se eu tava viva”.

Hoje eu fiquei parada na cozinha por um tempo. Sem fazer nada. Só ouvindo. O som da chaleira, da torneira, da colher batendo no copo. Tudo parecia mais alto. Como se a casa estivesse tentando se gravar na minha memória.

A mãe passou a tarde dobrando minhas roupas com tanto cuidado, como se aquele tecido fosse frágil demais pra sair daqui. O pai separou livros que, segundo ele, "vão me ajudar a manter o juízo". Nem falei que ele estava exagerando. Deixei. Às vezes, exagerar é só o jeito dele de cuidar.

Domingo.

Foi o mais difícil.

A casa estava cheia de silêncio, mesmo com todo mundo por perto. Fizemos bolo, assistimos filme, rimos em alguns momentos... mas tinha alguma coisa presa no ar. Aquela vontade de fazer durar, sabe? De segurar o tempo pelo braço e pedir: “fica mais um pouco”.

Adym dormiu no meu ombro durante o filme. O pai roncava no sofá. A mãe segurava minha mão de um jeito que fazia doer — não pelo aperto, mas pela ternura.

E eu pensei: como vai ser acordar sem isso? Sem o cheiro do café torto da mamãe? Sem a panela batendo cedo demais? Sem as brigas bobas de manhã cedo ou o barulho da porta do quarto do Adym abrindo com força?

Não é a escola que me assusta. Nem a magia, nem os professores. É o silêncio. É esse intervalo em que a vida continua aqui… mas eu não tô dentro dela.

E se eu mudar demais? E se o tempo fora fizer eu esquecer o barulho da nossa casa? O jeito que a mãe me chama com o “Arti” arrastado? Ou como o pai limpa os óculos quando tá nervoso? Ou como o Adym sempre entra no meu quarto sem bater, mas finge que foi sem querer?

Hoje, deitada, fiquei olhando pro teto como se fosse a última vez. E talvez seja. Pelo menos por agora. Porque amanhã de manhã, eu vou acordar em outro lugar.

É estranho dizer adeus pra uma casa quando ela continua no mesmo lugar. Mas é isso que estou fazendo. Dando tchau pra um tempo que não volta igual. Porque, quando eu voltar, eu já não serei a mesma — e talvez esse seja o maior susto de todos.

Mas eu vou.

Com medo mesmo. Com saudade antes da hora. Com o coração apertado e cheio de tudo o que deixo aqui.

E ainda assim... vou.

Mas eu levo vocês comigo.

Nos gestos. No jeito de dobrar o lençol. Na saudade.

E prometo voltar inteira.

Sempre.

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