Volume 1 – Arco 1

Capitulo 1: Antes que o Céu se Rompa

A vingança viajava em naves antigas.

O universo é vasto. Incontável. Inumeráveis planetas giram em silêncio entre o frio e o fogo, muitos apagados antes mesmo de serem nomeados.

Mas entre esses corpos solitários, há um que pulsa com magia antiga e alma viva: Alfhenia.

De longe, é uma esfera azul e verde, cercada por luas silenciosas e vizinha de gigantes gasosos com nomes esquecidos. Suas fronteiras atmosféricas cintilam com o reflexo de seus próprios encantos, e a gravidade ali parece mais leve, como se o planeta não tivesse pressa. 

Ao atravessar sua órbita, revela-se um mundo vasto, multifacetado, sustentado por oito grandes continentes e pequenas ilhas-países — cada um com seu coração, sua história, sua forma de sonhar. 

Entre os vastos continentes de Alfhenia, Hiden se erguia como o maior do planeta, ocupando toda a região noroeste, uma das maiores e mais influentes regiões daquele mundo antigo e mágico. Ali, reinos, castelos medievais e metrópoles modernas e futuristas coexistiam, espalhados por toda a sua extensão como dois mundos paralelos que raramente se cruzavam — um lugar onde a república democrática e a monarquia constitucional ainda se entrelaçavam em uma fusão complexa e instável. 

Os castelos e cidadelas abrigavam principalmente os humanos mais humildes, vivendo em condições difíceis, onde o poder se concentrava nas mãos dos reis e senhores feudais. O governo dessas regiões era tradicional, baseado em linhagens antigas e rígidas hierarquias. As leis eram duras, o controle social intenso, e o uso da magia quase inexistente no cotidiano, sendo severamente restrito — a magia, embora presente, era restrita por decreto real: só podia ser usada com permissão formal ou em defesa do reino. Qualquer uso não autorizado era punido com prisão, exílio ou execução. Aqueles que tinham dons especiais muitas vezes escondiam suas habilidades, ou vendiam seus serviços aos nobres em troca de proteção. A fome, a fé e a obediência ainda sustentavam esse mundo. 

Já as metrópoles, cidades brilhantes e avançadas, eram centros de riqueza, tecnologia e poder, governadas por presidentes eleitos por conselhos corporativos influentes — geralmente compostos por humanos comuns. Todas habitadas pela elite, empresários, políticos, tecnomagos e sinthra-humanos muito privilegiados. Essas cidades eram habitadas por humanos, híbridos e sinthra-humanos — seres com aprimoramentos genéticos e habilidades extraordinárias. Nas metrópoles, a magia era um recurso valioso e amplamente consumido, regulado por licenças mágicas e integrado à vida cotidiana, desde o transporte até as comunicações e segurança pública. A burocracia controlava rigorosamente seu uso, mas a magia permeava as ruas, as corporações e até as indústrias.

Acima dos dois mundos, porém, havia uma estrutura ainda maior: o Governo Central de Hiden, uma instituição milenar e poderosa sediada no Distrito Rei, com autoridade teórica sobre todo o continente. Era esse governo que criava as leis continentais — regras de conduta, limites mágicos, tratados comerciais e códigos penais. No entanto, na prática, tanto castelos quanto metrópoles continuavam a aplicar suas próprias legislações locais. Cada região mantinha sistemas locais de cobrança de impostos, julgamentos e controle da população. E mesmo quando uma lei superior era oficialmente aceita, ela raramente era obedecida. Os reinos costumavam reinterpretar as regras de acordo com seus próprios interesses, burlando a autoridade central. Às vezes, faziam parecer que seguiam as normas, mas por baixo dos panos distorciam tudo — e ninguém fazia nada. Nobres e presidentes urbanos viam o Governo Central como algo distante, quase simbólico. Preferiam agir por conta própria, baseando-se mais em suas opiniões e tradições do que nas leis superiores. No fim, o poder continental existia, mas era constantemente sabotado por aqueles que fingiam obedecer.

Assim, Hiden era um continente dividido não apenas pelo espaço, mas também pela cultura, pelas leis e pelo modo de vida — onde a tradição medieval dos castelos contrastava com a modernidade tecnológica e mágica das metrópoles, e nas florestas silenciosas onde muitos seres místicos preferiam o refúgio, longe dos olhos vigilantes dos homens.

Uma dessas metrópoles se chamava Michilli.

Michilli não era feita para heróis ou vilões. Era feita de passos apressados, luzes frias, magia domesticada e vozes que se apagavam nos trilhos. E mesmo assim, era ali — naquele bairro comum, naquela casa discreta — que uma história estava prestes a acontecer.

Eu nunca a vi — mas é lá que tudo começou.

Era apenas mais uma manhã comum em Michilli —  não era a maior metrópole, nem a mais influente politicamente, mas tinha seu peso. Marcada por prédios altos, trânsito caótico e uma rotina cinzenta, mas entre cada avenida e estação de metrô, havia resquícios da magia: Nas runas entalhadas nos postes, no prédios e condomínios, nas ruas e nas escolas de magia que resistiam no meio do concreto. E os sinthra-humanos — corpos mágicos a serviço do sistema — circulando em silêncio. Era também uma das cidades com mais híbridos de toda Hiden, mesmo que, ironicamente, fosse também um dos lugares mais preconceituosos. Os homens ocupavam a maioria dos cargos de poder, e a tradição conservadora ainda se arrastava por tribunais, escolas e até pelas esquinas mais esquecidas. 

Mais adentro da cidade, em um dos bairros menores, distante do frenesi do centro, uma casa pequena e comum despertava à luz do dia, como já foi dito.

Dentro dessa casa, Ártemis, levantando-se de sua cama, quinta-feira do dia 14 de fevereiro de 2019 que parecia ser apenas mais um dia tranquilo na vida da garota. O sol da manhã filtrando-se suavemente pelas cortinas. Seu quarto era decorado com pôsteres coloridos de bandas e celebridades que ela admirava.

Vestida em um pijama branco com bolinhas, rapidamente prendeu seu cabelo em um coque despretensioso.

Dirigiu-se ao banheiro, onde lavou o rosto, sentindo a água fria despertar seus sentidos. Em seguida, andou até a cozinha, onde sua família já estava reunida à mesa, com pães frescos, frutas e suco. O aroma reconfortante da comida e o calor familiar preencheram o ambiente.

A manhã seguia com serenidade na casa dos Malfye. Árdenia se movia pela cozinha com familiar graça, preparando o café da manhã, enquanto Armon folheava papéis entre um gole de suco e uma mordida em seu pão. Adym, o irmão mais novo, comia melão distraidamente, mas seus olhos estavam cravados na irmã mais velha, atento a cada gesto dela.

Ártemis entrou na cozinha ainda sonolenta, sentindo o aroma quente do pão recém-assado e o cheiro doce das frutas cortadas. Era uma manhã como tantas outras.

Ela se acomodou devagar, puxando a cadeira de madeira com um rangido leve, e mal teve tempo de se ajeitar quando Armon colocou à sua frente um maço de cartas. Suas mãos estavam firmes, mas seus olhos... seus olhos evitavam os dela.

— Chegaram — disse ele, com a voz seca, como se cada palavra pesasse mais do que devia. — Três cartas. De escolas mágicas. Talvez... alguma resposta.

Ártemis arregalou levemente os olhos, o corpo despertando num instante. O coração bateu mais rápido. Ela olhou para os envelopes como se fossem artefatos sagrados, relíquias de algo maior que ela. Seus dedos hesitaram por um segundo, depois romperam o primeiro lacre com pressa contida. 

— Rejeição... — sussurrou ela, os olhos piscando várias vezes enquanto dobrava o papel e o devolvia à mesa. 

O segundo envelope veio logo em seguida. Suas mãos estavam mais trêmulas agora.

— Outra... negativa — murmurou, com um meio sorriso triste, fingindo que não se importava.

Mas quando segurou o terceiro, parou. O silêncio da cozinha ficou denso. Ela olhou o envelope como se sentisse algo diferente ali. Respirou fundo e rasgou.

Seus olhos fecharam levemente e correram pelas linhas escritas com tinta cor de ametista. No início, só leu em silêncio, mas conforme as palavras afundavam, sua boca se entreabriu. A mão que segurava o papel caiu levemente, e sua respiração acelerou.

— Pai... mãe... — ela engoliu em seco, a voz fraca, quase um sussurro. — Eu consegui.

Armon levantou levemente as sobrancelhas, surpreso, mas não se moveu.

— Conseguiu...? O quê?

— Eu fui aceita — ela se levantou bruscamente da cadeira, os olhos marejados. — A escola de Velmoria. Aquela. A mesma que recusa noventa por cento dos candidatos... Eles me querem lá. Eles disseram que minha afinidade elemental é rara lá... que o meu teste de escrita foi um dos mais profundos que já leram.

Ela começou a andar de um lado para o outro, segurando a carta contra o peito, a respiração acelerada.

— As aulas já começam na segunda-feira... Tem lista de materiais, entrevista com tutores... E — ela parou, a empolgação virando hesitação. — É um internato. Integral. Um ano inteiro, com apenas uma folga a cada três semanas. 

Armon franziu a testa, e seus ombros enrijeceram. Ele cruzou os braços devagar, como se estivesse se blindando.

— Um ano fora de casa? — sua voz saiu mais baixa, mas carregada. — Ártemis, você tá dizendo que vai simplesmente... sumir por um ano? Pra viver entre desconhecidos, numa escola que a gente nunca viu, com regras que nem sabemos se são seguras?

Ela piscou várias vezes, confusa com a reação.

— Pai, você sabia que era assim. Sempre soube. Todas as escolas de magia sérias são assim. Elas isolam pra intensificar o aprendizado... pra proteger os alunos. Eu li tudo. Eu estudei tudo.

Ele se levantou da cadeira, tirando os braços do peito.

— Você tem dezesseis anos. Ainda tá aprendendo sobre o mundo. Ainda precisa... de nós. E agora quer ir embora, morar num lugar estranho, cheia de sonhos na cabeça, achando que magia vai resolver tudo?

Ártemis ficou sem reação, engasgou nas próprias palavras.

Foi quando Árdenia se aproximou. Trazia a jarra de suco nas mãos, mas o olhar estava firme. Colocou-a sobre a mesa com cuidado, quase como se marcasse um limite entre os dois.

— Armon... você está falando como se ela fosse uma criança sem juízo, ela tá aqui, na sua frente, com uma conquista que não vem de sorte, mas de esforço. Você viu como ela estudou. Você viu quantas noites ela ficou acordada lendo. E você sabe, melhor do que ninguém, o que essa carta significa pra ela. 

Ele virou o rosto, tenso, como se não quisesse admitir.

— E se algo acontecer com ela? Se ela não se adaptar? Se não conseguir lidar?

Árdenia se aproximou dele, pousando a mão com delicadeza no braço de Armon.

— Então estaremos aqui. Pra buscá-la. Pra apoiá-la. Mas você quer mesmo ser o homem que impediu a filha de seguir um sonho por medo?

Silêncio. Ártemis permanecia em pé, a carta pressionada contra o peito como se fosse um escudo ou um amuleto. Ela não dizia nada, mas os olhos dela suplicavam.

Armon olhou para a filha por longos segundos. Seus ombros finalmente cederam, e o olhar endurecido suavizou-se um pouco.

— Se essa é a sua escolha... então vamos fazer isso direito. Mas quero ver tudo. Cada papel. Cada nome. E você promete que, se algo parecer estranho, se alguma coisa doer... você me liga. Na hora.

— Claro, pai — disse Ártemis, com firmeza. E pela primeira vez naquela manhã, sua voz soou inteira.

As cadeiras voltaram a ranger suavemente quando foram puxadas, e os talheres finalmente tocaram os pratos. Um ou outro comentário surgia, solto, sem força, apenas para preencher o espaço.

Os olhos evitavam se cruzar por muito tempo, e os sorrisos eram curtos, mas estavam ali — fingindo leveza enquanto cada um digeria, junto do café da manhã, os sentimentos que ainda queimavam por dentro. O cheiro de pão aquecido, manteiga e café fresco se espalhava como se tentasse convencer a todos de que aquela manhã era comum. 

Comeram. Mastigaram em silêncio. Fingiram que estava tudo bem. E, por um instante, quase parecia que estava mesmo.

Após o café da manhã, Ártemis subiu as escadas apressada, segurando uma carta contra o peito. No quarto, ela girou no tapete, os olhos brilhando, cheia de expectativa. Logo depois, Árdenia entrou com um sorriso cansado, seguida por Armon, que trazia uma caixa de livros cuidadosamente organizados. Eles começaram a preparar as malas, avaliando o que levar, especialmente os volumes pesados que precisariam ser escolhidos com cuidado.

Ártemis, ajoelhada ao lado do baú de roupas, mexia animadamente nas roupas enquanto Adym aparecia na porta, abraçando seu dragão de pelúcia, pronto para ajudar. Árdenia separava vestidos com delicadeza, e a movimentação no quarto era um misto de organização e entusiasmo silencioso.

Armon observava cada gesto da filha com atenção, notando a forma como ela dobrava as roupas e tentava encaixar os livros na mala. Pegou um caderno antigo, o primeiro onde ela escreveu encantamentos, e o colocou ao lado, permitindo que ficasse com ela.

No final, Ártemis se levantou sorrindo, puxou Armon pela mão e começou a dançar no meio do quarto, leve e despreocupada. Árdenia e Adym logo se juntaram, rindo e entrando na brincadeira. Armon tentou acompanhar os passos dela, meio desajeitado, mas a alegria no rosto de todos contagiava o ambiente. O quarto se encheu de risadas e música silenciosa, um instante de leveza e união antes dos desafios que viriam.

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