Volume 1 – Arco 1
Prólogo: Os Últimos de Thérias
Dizem que foi em 1969 do tempo humano. Uma data sem sentido para nós, mas que carrega a cicatriz de um mundo inteiro. Foi quando o céu de Thérias se rasgou em silêncio, e as estrelas deixaram de brilhar. Vieram do vazio, em máquinas de ferro e luz, viajando em naves com asas que cortavam o espaço como lâminas, vindos de um planeta não tão distante chamado Alfhenia. Eram humanos, embora já não parecessem mais como tais, pois trocaram o que era natural por aço, e a compaixão pelo cálculo.
Thérias era uma joia perdida no cosmo — um planeta de campos escarlates, rios violetas e florestas de pedra onde as árvores cantavam com o vento. Era um lar. Nosso lar. E nós, os Therianos, éramos parte dele como o sangue é parte do corpo.
Éramos uma espécie primitiva aos olhos dos invasores, talvez. Andávamos descalços, falávamos com os ventos, bebíamos da névoa nas manhãs frias. Nossos corpos eram altos e finos, moldados pelas eras e pelas rochas. Pele de tom musgo, olhos negros como o vazio do espaço, bocas largas que sabiam sorrir e cantar. Vivíamos em tribos, cada uma com sua pedra sagrada, cada uma com seu líder e seus anciãos. Dançávamos sob luas gêmeas, contávamos histórias ao redor de fogueiras azuis, e nos guiávamos pelas palavras dos ancestrais.
Tínhamos uma língua — Kaldorak — antiga como o tempo e falada por muitos além de nós. Mas não precisávamos de muitas palavras para viver em paz. Bastava a terra. Bastava o outro. Bastava o silêncio entre uma batida do coração e outra.
E então, eles vieram.
As naves não pediram licença. Cortaram o céu com violência, como garras de um deus estrangeiro. Os mais novos choraram. Os mais velhos, com olhos endurecidos pela memória, correram aos templos de pedra e retiraram as lanças feitas de cristal vermelho, relíquias de uma era antiga. Juro por tudo o que ainda vive em Thérias, eles tentaram. Mas como lutar contra o fogo quando se tem apenas madeira?
A ordem vinda do alto foi clara: “Esmaguem todos.” E foi exatamente isso que fizeram. As naves pousaram sobre aldeias inteiras. Casas de folhas e pedra viraram pó. Ossos estalaram sob os pés dos invasores. O sangue dos nossos escorreu pelos campos como chuva quente. O chão gritou. A floresta se calou. E nenhum espírito respondeu.
Alguns tentaram fugir, correndo para as florestas escuras, para as montanhas distantes, para cavernas onde os ventos não saem. Outros lutaram até o fim, com pedras nas mãos e gritos no peito. Houve um menino, dizem, que ficou de pé diante de uma nave com nada além de um cajado. Gritou palavras em Kaldorak. E foi esmagado sem que ninguém ouvisse.
A colonização foi rápida e brutal. Thérias foi dividida, esvaziada, explorada. Construíram minas onde antes havia templos, instalaram torres de extração onde os anciãos meditavam em silêncio. Os Therianos foram caçados como pragas, exterminados pouco a pouco, até restarem apenas sussurros nas cavernas. E então, quando o planeta já não tinha mais o que dar, os humanos o abandonaram, como se larga uma fruta já apodrecida.
Passaram-se quatorze anos. As florestas morreram. Os rios secaram. As pedras perderam o brilho. Thérias tornou-se um túmulo. Poucos de nós sobreviveram. Uns se esconderam nas cavernas onde a luz nunca chega. Outros vagaram sozinhos pelas planícies desertas, alimentando-se de raízes, cascas e até, em desespero, de si mesmos. Houve dor. Houve loucura. Houve silêncio.
Mas não houve esquecimento.
Trinta e seis anos após o massacre. Era 2018, no tempo dos humanos. Já éramos sombras do que fomos. Corpos murchos. Vozes fracas. Almas cansadas. Eles encontraram algo. Enterradas sob pedras frias numa mina esquecida, as carcaças adormecidas das naves humanas. Enferrujadas. Rangentes. Vivas, quase. Em poucos dias, mesmo sem pleno entendimento da linguagem das máquinas, eles as despertaram com mãos sujas de sangue ancestral e um desejo de justiça que não conhece tréguas.
Khelos, o líder, era um guerreiro marcado por cicatrizes antigas. Tha’ran, a anciã, guardiã do saber esquecido, e mais meia dúzia de therianos. Juntos, diante das máquinas adormecidas, fizeram um juramento: não importava o quão fracos estavam, nem o quanto haviam perdido. Ir até o mundo dos invasores era sua última chance de fazer o universo lembrar o que fora feito ao seu povo.
Eles não desejavam mais paz. Desejavam ser ouvidos. Desejavam justiça.
A tecnologia era estranha, distante. Não sabíamos como ativá-la. Não falávamos a língua dos assassinos. Mas aprendemos. O desespero ensina. A raiva, mais ainda. Ou talvez apenas acreditávamos com força suficiente para que elas nos obedecessem. Sabíamos que elas podiam nos levar até Alfhenia. E isso bastava. Nossos dedos, rachados e feridos, trabalharam por dias sem parar. Alguém disse que não tínhamos chance. Que nossas lanças quebradas jamais atravessariam o ferro deles. Tha’ran apenas respondeu: “Talvez. Mas morrer calado é pior.”
E assim, nas sombras de um planeta morto, enquanto o universo seguia em frente como se nada houvesse acontecido, os últimos Therianos preparavam sua última jornada.
Eles haviam nos esquecido. Mas nós lembramos de tudo.
Poucos dias foram necessários para que as velhas naves se tornassem o último refúgio dos Therianos, aqueles que restaram de um povo quase esquecido.
Tínhamos medo, é claro. As máquinas podiam explodir, falhar, nos consumir. Mas a morte já caminhava entre nós, e era melhor enfrentá-la voando do que apodrecer no chão saqueado dos nossos. Subimos nelas um a um, em silêncio. Kalin foi o primeiro a tocar os comandos. Tremia. Mas quando o motor respondeu, ouvi um som que já não reconhecia: esperança.
Voamos. Rasgamos o céu noturno de Thérias com ferro antigo e coragem nova. Não sabíamos onde pousar, nem como lutar, mas levávamos conosco um juramento: os humanos pagariam. Eles não destruíram apenas nossas cidades — mataram nossa história, nossa alma. E era isso que levávamos de volta até eles: o peso de tudo que haviam esmagado.
Mas cometemos um erro. Alfhenia não era apenas lar de humanos. Lá viviam entidades forjadas pela magia do cosmo, humanos mágicos, forças que nenhum de nós jamais entenderia. Éramos poucos, famintos, sem dons, apenas carne e fúria atravessando o vazio.
Não sabíamos o que nos esperava. Mas seguimos mesmo assim, porque não havia mais caminho de volta.
Éramos os últimos de Thérias.
E partimos para fazer o universo lembrar.
Às vezes, penso que...
Não.
Pensávamos.
Éramos um só. Um povo, uma dor. Mas o tempo, mesmo ele, separa tudo.
Hoje, não há mais "nós". Há eles, viajando entre mundos. Há ela, que viverá o que nenhum de nós viveu.
E há eu — apenas o eco. Apenas a lembrança.
Thérias morreu.
Alfhenia floresce.
E no ponto onde esses dois destinos se tocam... a história, enfim, começa.
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios