Volume 1 – Arco 1
Capítulo 29: Herança Sob a Terra - Parte 2
Com uma velocidade sobrenatural, a estátua avançou em direção a Trrira, o som das pedras raspando contra o gramado gelado. Trrira sentiu o pânico tomar conta dela, mas, no fundo, havia algo mais — uma chama de determinação, de raiva. Ela se inclinou, a espada de espinho pronta para a ação. Mas o pavor quase a paralisou.
No último segundo, algo dentro dela despertou. O medo deu lugar à fúria, ao instinto de sobrevivência. O tempo parecia desacelerar, e o mundo ao seu redor ficou mais denso, mais pesado, enquanto seus olhos se fixaram na estátua que avançava. Seus músculos estavam tensos, prontos para a ação. A espada de espinho, um reflexo do poder que brotava da terra, brilhou com intensidade.
Trrira se agachou e girou para trás em em um movimento de 360 graus, cada músculo contraído com precisão, as mechas soltas de seus cabelos voaram ao redor de seu rosto como se fossem parte de sua própria essência. Toda a força de seu corpo concentrou-se em sua perna direita — a tensão subindo das costas, passando pelo abdômen, pelos quadris, até explodir no momento exato em que a perna se esticou com brutalidade, e, com um grito primal. O chute atingiu a estátua com tamanha violência que o impacto ressoou pelo cemitério como uma pancada surda e densa. A criatura de pedra foi lançada no ar, sumindo na névoa espessa acima.
Tudo ao seu redor parecia ter se desfeito, o silêncio pesado substituído por uma onda de energia pulsante. Trrira permaneceu ali, ofegante, as vinhas da espada ainda vibrando em sua mão, sentindo o poder de seus próprios poderes transbordando.
Ela sabia que ainda não havia acabado. O cemitério não a deixaria ir tão facilmente. Mas, naquele momento, Trrira sentiu o poder da natureza correr por suas veias, e ela sabia que não importava o que acontecesse — ela não se renderia.
Trrira voltou à posição de equilíbrio, os pés firmes cravados no chão como raízes profundas, a respiração completamente fora de controle, subindo e descendo em espasmos irregulares que queimavam o peito. Ela ergueu o rosto devagar, e seus olhos, brancos e vazios, pulsavam com energia mágica pura, atravessando a névoa espessa como se ela fosse apenas um conceito inútil. Não havia hesitação ali; seus sentidos pareciam recalibrados, transformados em algo mais preciso, mais cruel, como sensores vivos rastreando cada fragmento de pedra ainda suspenso no ar, cada movimento invisível acima dela. Tomada por uma coragem que não parecia vir da mente, mas de um instinto verde e antigo, ela se agachou, largou a bolsa e o celular no chão sem qualquer cuidado, cravou os pés no solo e saltou com tanta força que o solo trincou, abrindo rachaduras secas enquanto seu corpo atravessava a névoa como um projétil lançado pela própria natureza.
Lá em cima, no ar, Trrira encontrou a estátua no auge da ascensão, o corpo girando no ar com precisão quase cirúrgica enquanto a espada de espinho se estendia, alimentada por vinhas que brotavam e se retorciam em resposta direta à sua vontade. O corpo dela girou no ar em um arco violento, o tronco torcendo primeiro, depois os ombros e por fim os braços, como um chicote sendo estalado. Trrira gritou junto com o movimento, um grito rasgado, primitivo, mais próximo de um animal defendendo território do que de uma garota assustada. As vinhas da espada se contraíram num espasmo vivo, engrossando, rangendo, e quando o espinho cortou a pedra, o som ecoou seco e agudo, metálico, como dois talheres de ferro se chocando com força demais, um tilintar assassino que rasgou o silêncio do cemitério. E a lâmina viva atravessou a estátua com agressividade total, triturando o rosto de pedra antes de despedaçar o torso em uma explosão de fragmentos. Os pedaços se espalharam em todas as direções, rodopiando no ar antes de cair como uma chuva pesada e cruel, esmagando lápides, rachando o solo e levantando nuvens de pó e estilhaços, enquanto o eco daquele impacto ainda vibrava no ar, como se o próprio cemitério tivesse sentido o golpe.
Trrira caiu logo depois, os joelhos dobrando no impacto, liberando uma onda de choque que empurrou a névoa para longe por alguns segundos, revelando a desolação completa ao redor. A espada permaneceu firme em suas mãos, coberta de poeira e seiva verde, enquanto ela encarava os restos espalhados, ofegante, tentando entender que força monstruosa havia despertado dentro dela naquele instante.
O alívio morreu rápido demais. Quando Trrira ergueu o olhar, ainda com os olhos brancos queimando energia, percebeu as outras estátuas espalhadas pelo cemitério, todas agora voltadas para ela, alinhadas em um silêncio ameaçador, como predadores pacientes. Um calafrio percorreu seu corpo quando entendeu que aquilo não era reação, mas espera, uma armadilha lenta e calculada. Ela girou devagar, escaneando cada canto, sentindo o verde sob o solo se agitar em resposta ao perigo iminente, apertando o espinho com mais força enquanto o som de pedra se partindo começava a ecoar ao redor, uma a uma despertando.
— Então era isso… vocês estavam só me observando, calculando cada passo, achando que eu ia quebrar ou correr quando entendesse o tamanho da merda — rosnou, a voz baixa, carregada de fúria e adrenalina, o corpo inclinado para frente, pronto para explodir em movimento. — Mas agora é tarde demais pra arrependimento. Se quiserem meu sangue, vão ter que arrancar pedaço por pedaço, porque eu não vou cair aqui de joelhos. Que se atrevam.
Alguns minutos já haviam se passado, e o cemitério parecia outro lugar depois da passagem de Trrira. Ela se agachava diante de um dos túmulos com calma absoluta, pressionando as mãos contra o chão frio e úmido, sem sinal de pressa ou desgaste real. Atrás dela, espalhadas em um arco grotesco, jaziam as estátuas reduzidas a destroços irreconhecíveis: torsos partidos, asas quebradas, cabeças rachadas em ângulos impossíveis, tudo esmagado com uma facilidade quase ofensiva. Os olhos de Trrira ainda carregavam resquícios da energia mágica, esbranquiçados e intensos por alguns segundos antes de voltarem ao normal, enquanto ela marcava mentalmente os túmulos já verificados, sentindo o verde sob a terra responder à sua presença como um velho aliado.
Ela se levantou devagar. Musgos e vinhas começaram a crescer onde seus dedos haviam tocado o solo, se espalhando como veias vivas ao redor das lápides, contornando nomes apagados, engolindo rachaduras antigas, marcando território. O som suave das plantas se movendo parecia engolir o último eco das estátuas quebradas, e Trrira respirou fundo, sentindo que aquilo fora fácil demais, quase decepcionante. Se aquilo era o sistema de defesa do cemitério, então Rowena Cinder estava muito mais próxima do que queriam admitir — e, seja o que fosse que tentava escondê-la, claramente ainda não tinha entendido com quem estava lidando.
Mas, sempre que Trrira virava as costas, os túmulos insistiam em se mover de lugar, rangendo baixo, quase debochados, como se o próprio cemitério estivesse rindo da tentativa dela de impor lógica àquele caos antigo. Trrira parou, fechou os punhos e respirou fundo, sentindo o ar ao redor se aquietar de forma antinatural, como se a terra, as raízes e até os microrganismos invisíveis aguardassem uma ordem. A frustração queimava sob a pele, mas não era mais desespero; era combustível. Algo maior crescia dentro dela, uma força ancestral, paciente e selvagem, pulsando no mesmo ritmo das raízes enterradas sob seus pés. Ela fechou os olhos por um instante, sentindo a fitocinese se expandir como uma rede viva, e quando ergueu a mão até a altura do rosto, os dedos vibravam com energia pura, pronta para ser moldada.
Os lábios de Trrira se moveram com firmeza enquanto o encantamento era pronunciado em voz baixa, não como um pedido, mas como uma ordem. O ar ficou imóvel, pesado, e a magia respondeu sem resistência, fluindo com naturalidade quase assustadora. Seus olhos ficaram completamente brancos novamente, vazios de íris ou pupilas, refletindo apenas luz e intenção, enquanto uma pequena rosa cor-de-rosa brotava em sua palma, viva, pulsante. Um sorriso curto e satisfeito surgiu quando ela se abaixou e colocou a flor no chão, observando-a se multiplicar rapidamente, formando uma linha orgânica que serpenteava para fora do cemitério, ignorando lápides, muros e mentiras de pedra, guiando-a com precisão cruel até a borda esquecida daquele lugar.
Sem hesitar, Trrira seguiu o rastro vivo, pulando a cerca enferrujada com facilidade, o corpo leve e decidido, as botas mal tocando o chão antes de se lançar em direção à trilha que levava à floresta adjacente. As rosas avançavam até pararem diante de uma única cerejeira morta, retorcida, imensa, erguendo-se como um cadáver vegetal esquecido pelo tempo. Sob suas raízes expostas, quase abraçado pelo tronco seco, repousava um túmulo solitário, afastado de tudo, deliberadamente escondido. O peito de Trrira apertou quando ela parou diante da árvore, sentindo ao mesmo tempo alívio e irritação por perceber que o cemitério inteiro fora uma distração grosseira, uma armadilha para afastar curiosos do ponto real.
As rosas cessaram o crescimento, formando um pequeno campo vivo ao redor da árvore. Sem perder mais tempo, Trrira ajoelhou-se no chão, esmagando flores sob os joelhos sem qualquer remorso, e pressionou ambas as mãos contra a terra. Suas mãos foram envolvidas por energia verde pulsante, fazendo raízes, folhas secas e galhos próximos se moverem, se torcerem e se fundirem, moldando-se rapidamente em uma pá improvisada, sólida e funcional. Enquanto cavava, o coração batia forte, não por medo, mas pela certeza de que estava violando algo que jamais deveria ser tocado. O cemitério, agora distante, parecia observá-la em silêncio, mas ela não ousou olhar para trás, focada apenas no som úmido da terra cedendo até que o caixão de madeira escura, velho e estranhamente intacto, finalmente emergisse.
Ela desceu no pequeno buraco segurando a bolsa, suspirou fundo e apoiou as mãos na cintura, avaliando o caixão com desconfiança crescente. Tentou forçar a tampa com força bruta, os músculos tensionados, mas a madeira não cedeu um centímetro sequer, resistente demais para algo que deveria estar apodrecendo havia anos. Trrira franziu o cenho, inclinou a cabeça e falou em voz baixa, carregada de ironia e irritação, como se Rowena pudesse ouvi-la através da terra e do tempo.
— Sério, Rowena, você se enterrou longe de todo mundo, fez o cemitério virar um labirinto idiota e ainda trancou o próprio caixão por dentro, como se esperasse visita; isso não é genial, é paranoico pra caralho, mas claramente funcionou melhor do que devia.
Irritada consigo mesma por ainda sentir aquela tensão rastejando sob a pele, Trrira respirou fundo, forçando o corpo a desacelerar enquanto a fitocinese voltava a se concentrar nas pontas dos dedos. Os olhos dela permaneceram completamente brancos, ausentes, brilhando com intensidade quase clínica, e quando ergueu a mão direita, uma única folha surgiu no ar, girando lentamente antes de acelerar de forma absurda. O verde vivo se alongou, endureceu, vibrando até se transformar numa lâmina vegetal giratória, uma serra perfeita guiada por microgestos precisos do pulso. O som foi limpo, agudo, quase elegante, enquanto a folha cortava a tampa do caixão com facilidade ofensiva, abrindo em poucos segundos um retângulo exato, sem lascas, sem esforço. Ela segurou o pedaço de madeira cortado, jogou para o lado com desdém e encarou o interior escuro.
Lá dentro, o esqueleto de Rowena Cinder repousava em silêncio absoluto, envolto em trapos que um dia talvez tivessem sido um vestido, agora reduzidos a fibras mortas grudadas aos ossos. Trrira parou por um instante mais longo do que pretendia, sentindo um arrepio subir pela espinha enquanto seus olhos voltavam lentamente à cor normal. A presença daquele corpo não era apenas física; havia algo errado, denso, como um eco preso entre os ossos. Mesmo assim, ela se inclinou e começou a vasculhar o interior do caixão, forçando-se a ignorar a textura seca e quebradiça sob os dedos até tocar algo sólido e frio, escondido sob os trapos.
Com cuidado, ela puxou o objeto, revelando um jarro de barro antigo, pesado, coberto por padrões geométricos irregulares que não correspondiam a nenhuma simbologia que ela reconhecesse. O material parecia velho demais para ainda estar inteiro, mas intacto, como se tivesse sido preservado por algo além do tempo. Trrira girou o jarro nas mãos, franzindo o cenho, sentindo um leve formigamento subir pelos braços enquanto murmurava, mais para si mesma do que para o silêncio ao redor.
— Um jarro enterrado com você, longe de todo mundo, protegido por um cemitério inteiro e por estátuas assassinas, só pra ficar aí quieto como se fosse normal... sério, Rowena, você não era só estranha, você era completamente fora da curva, e eu tô começando a entender o porquê.
Ela guardou o jarro na bolsa e voltou a vasculhar o caixão, o incômodo no peito aumentando à medida que seus dedos encontravam outra superfície sob os restos de pano. O objeto era áspero nas bordas, frio ao toque, levemente curvo, e quando ela o puxou para fora, revelou uma máscara cinza-azulada, coberta por espirais profundas que pareciam pulsar discretamente, como se respirassem. Trrira sentiu os olhos se iluminarem de curiosidade e cautela ao mesmo tempo, o tipo de artefato que gritava perigo silencioso. Sem pensar duas vezes, envolveu a máscara com cuidado e a guardou ao lado do jarro, sentindo que aquilo ainda não era tudo.
A inquietação cresceu, insistente, quase dolorosa, como um chamado abafado vindo de dentro da terra. Prendendo a respiração, Trrira mergulhou o braço mais fundo no caixão, ignorando o desconforto ao tocar ossos frágeis e tecidos apodrecidos, até que sua mão encontrou algo inesperadamente frio e liso. Ela puxou devagar, revelando uma esfera opaca de rubro profundo, como sangue coagulado preso sob vidro grosso. No instante em que seus dedos fecharam ao redor do objeto, um espasmo violento percorreu seu corpo, subindo em espiral pelos braços até explodir na nuca, arrancando-lhe o ar dos pulmões. Seus olhos verdes foram tomados por um vermelho intenso e antinatural, e sua boca se abriu sem permissão, soltando um som grave, rouco, quebrado, como um grito sufocado que jamais chegou a existir.
As visões vieram sem aviso, batendo contra sua mente como marteladas brutais, imagens fragmentadas e desconexas que não pediam permissão para entrar.
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