Volume 1 – Arco 1

Capítulo 19: O Coração da Colheita

O fim de tarde se arrastava em tons de laranja e violeta, e o jardim da casa de Glomme começava a se dissolver na penumbra. O sol, baixo demais, filtrava-se pelas copas e lançava faixas douradas sobre o gramado. O ar já carregava o frescor da noite que chegava, e o vento leve levantava o cheiro doce da terra úmida. Ele estava ali, de pés firmes, arco mágico nas mãos, de olhos semicerrados, Glomme moldava flechas de mana bruta a partir do silêncio. A energia nascia primeiro no peito, depois escorria pelos ombros, antebraços e dedos, até condensar num brilho verde que chorava faíscas. A corda do arco vibrou quando ele puxou, e a flecha etérea se solidificou o suficiente para obedecer. Disparou. Um estalo seco, alvo riscado. Outra flecha, outra respiração contada: quatro tempos para entrar, dois para segurar, quatro para sair. Algumas cravavam no centro, outras raspavam e morriam no gramado, apagando-se como vaga-lumes esmagados. Ele não xingava quando errava; reposicionava os pés, soltava a tensão dos ombros e corrigia a linha do cotovelo.

A parte favorita era o processo — o instante em que a mana deixava de ser ideia e virava peso real no mundo. O arco cantava metálico e, quando o disparo era perfeito, havia uma vibração doce que subia pelo punho e se instalava no osso. A pele formigava, os pelos do braço arrepiavam, e o cheiro quase ozônico da energia recém-queimada ficava preso no ar. O nariz coçava, insistente, e a cicatriz pinçava quando ele sorria sozinho depois de um acerto limpo. Errava também, evidente, e nesses segundos o corpo todo avisava: joelho esquerdo adiantado, punho torcido, foco escapando. Ele ajustava, repetia, respirava até a mira estabilizar de novo.

Quando começou a fluir, o vento virou cúmplice. As mangas tremiam, o cabelo curto bagunçava no alto da cabeça, e cada gesto escrevia um risco luminoso no ar, um rastro verde que se partia em poeira brilhante e pousava devagar no gramado. As árvores ao fundo balançavam num ritmo que parecia responder ao pulso dele, não ao do clima: sincronia discreta, nada místico demais, só corpo e ambiente conversando sem palavras. O arco, quente nas mãos, já fazia parte do braço; a mana obedecia como se sempre tivesse sido dele. O mundo recuou um passo e, por um minuto inteiro, a única coisa que existia era a linha da mira e o som do próprio coração.

— Gloooomme... querido, meu amor, vem pra dentro, filho... precisamos conversaaar — a voz da mãe cruzou o campo inteiro, doce, quase um canto atravessando o vento. — O jantar tá pronto, e seus tios estão na sala!

A vibração do disparo seguinte morreu antes de nascer. A conexão afrouxou sem estalo, como um sonho que acorda por inteiro. Ele abriu os olhos de vez, sentiu a energia escoar dos dedos e se quebrar em ciscos de luz. Por um segundo, o jardim pareceu se retrair — o vento parou, as folhas quietas, o silêncio se espalhando até o coração dele. Então ele respirou fundo e virou o corpo já em corrida, os pés cortando a grama, o peito ainda vibrando da adrenalina do treino. A casa o esperava, as luzes mais quentes, o cheiro de comida escapando pela porta. E o coração — ainda embalado pelo treino — trocou de compasso: não mais mira e vento, mas o tipo de conversa que muda o desenho do dia.

Anoiteceu como em qualquer outra noite em Michilli — calma, bonita e silenciosa. Alguns tentavam dormir, mas a mente insistia em vagar. Gumer olhava o teto branco do quarto e sentia o corpo vibrar por dentro, Firefy virava na cama, ouvindo o próprio coração bater rápido sem saber por quê. Michilli parecia calma, mas quem já tinha visto a cidade desabar sabia: silêncio demais é sempre aviso.


Domingo do dia 17 de Março de 2019. E ao amanhecer, o sol trouxe consigo mais do que luz — trouxe o peso leve e inevitável de um dia que mudaria tudo, sem retorno possível. Os telhados reluziam sob o sol, e o ar cheirava a pão quente e flores cortadas — a mistura típica das manhãs antes do Festival da Colheita. As ruas estavam cheias de movimento; sinthras-voadores cruzavam os céus pendurando faixas coloridas, enquanto velocistas passavam correndo. A cidade acordava em uníssono, como se cada respiração fosse parte de um mesmo ensaio.

Os saltadores, sempre exibidos, se impulsionavam para alcançar os pontos mais altos, amarrando bandeiras e lanternas nas torres, competindo para ver quem deixava o enfeite mais brilhante. Nos becos, artistas pintavam murais temporários, misturando pigmentos com magia, fazendo as paredes pulsarem em cores que mudavam com a luz. Os mercados fervilhavam de vozes e cheiros — carne assando, frutas cortadas, mel fervendo. O som dos preparativos era quase uma melodia caótica, feita de risos, marteladas e música improvisada.

Michilli era um mosaico vivo de espécies e culturas, cada um contribuindo com o que podia: fadas alinhavam fitas nas árvores, trolls e híbridos empurravam barris de cerveja, e humanos discutiam preços de flores com sinthras jardineiros. Era uma cidade onde tudo se misturava, e naquele dia, essa mistura parecia dançar. Mas ainda assim, por trás da alegria, havia uma cautela discreta — acima do som e da cor, os milionários assistiam das varandas como deuses entediados observando mortais. Desde o massacre político da década de 1920, nenhum deles ousava se misturar à multidão em eventos. 

As torres do governo permaneciam fechadas, suas bandeiras balançando devagar no vento, como se recordassem silenciosamente os dias em que os corpos se enfileiravam nas praças e do sangue que se espalhava pelas escadarias do parlamento. Mesmo assim, Michilli sorria. O festival ainda não começou, mas o ar já vibrava com promessas — o tipo de energia que antecede o caos, o tipo que anuncia que, ao cair da tarde, a cidade não seria mais a mesma.

Conforme as horas se passavam e festival da colheita se aproximava. As ruas cheiravam a flores recém-colhidas e perfume demais, as casas exalavam riso. Pelas janelas, dava pra ver famílias se arrumando, crianças correndo, e o cheiro de perfume misturado ao de comida. Glomme, Firefy, Ártemis, Tiruli, Leonarda e Anaru se preparavam com suas famílias, prontos pra noite que prometia encher a cidade de luz. Os professores também marcariam presença — o diretor Aelzy, a vice-diretora Hanvasa e parte do corpo docente do internato também compareceriam, seguindo a tradição de participar do festival ao lado das famílias. E entre todos, Gumer, finalmente liberado, se juntava à cidade em festa, com o sorriso que há dias ninguém via.

O entardecer caiu sobre Michilli como um suspiro dourado, tingindo as janelas e os telhados de cobre. As luzes começaram a acender uma a uma, e o som da cidade mudou — o ritmo dos preparativos se transformou em música, o barulho em riso, o caos em festa. As ruas estavam tomadas por multidões; famílias inteiras desciam as avenidas decoradas, crianças riam e corriam, enquanto o ar se enchia do cheiro doce de comida, fumaça e flores.

As barracas lotadas se estendiam por várias quadras, vendendo de tudo — frutas cristalizadas, pão quente, bebidas mágicas que mudavam de cor, brinquedos encantados que flutuavam por segundos antes de cair nas mãos das crianças. Os fogos começaram cedo demais, riscando o céu com cores indecisas, mas ninguém parecia se importar. Cada explosão arrancava aplausos e gargalhadas. A cidade inteira pulsava sob a promessa da noite.

No centro, professores chegavam em grupos, alguns com filhos e parceiros, outros sozinhos, cansados mas sorrindo. Alguns vinham de mãos dadas com colegas, outros observavam o palco sendo montado com o olhar atento de quem já conhecia o ritual. A música começava a se misturar às vozes — corais infantis, instrumentos de rua, tambores e flautas criando um mar de sons desordenados, mas harmônicos à sua própria maneira. Era o início do festival, e parecia impossível não sentir o coração bater junto ao som das celebrações.

O festival crescia em som e cor, e no meio do tumulto de Michilli havia dois rostos familiares que, ali, não precisavam fingir nada. A música cobria os pensamentos, e a cidade parecia permitir que cada um se tornasse o que realmente era — sem máscaras, sem os papéis impostos pela escola, sem o peso dos olhares.

Leonarda estava sentada no chão, as pernas cruzadas, um cachorro-quente desequilibrado na mão e um sorriso que ocupava o rosto inteiro. Ria alto, o corpo balançando com a gargalhada dos tios — híbridos felinos como ela — que zombavam de todos ao redor, dos ricos enfeitados até os casais que tentavam posar de perfeitos. Ela não era a garota barulhenta que usava o humor como armadura. Ali, ela era só uma garota feliz, simples, que se permitia rir sem pensar se estava sendo "demais". Sua alegria era verdadeira, ingênua até, e o brilho nos olhos vinha de algo raro: ela estava em paz.

Do outro lado do festival, Tiruli andava entre as barracas com um grupo de amigos. As luzes refletiam nas lentes do copo que girava nas mãos, e o rosto dele parecia mais leve do que em qualquer outro lugar. Ria, dançava, errava o passo e ria mais ainda. Nada nele lembrava o garoto que andava com os Caçadores, sempre quieto, sempre observando o perigo. Ali, ele era um garoto normal, com pais incríveis e um coração que só queria existir. Sem rótulos, sem ameaças, sem precisar provar coragem.

Dois jovens que, na escola, escondiam o que eram — Leonarda atrás da teatralidade, Tiruli atrás da neutralidade — agora dividiam a mesma cidade iluminada, o mesmo céu em festa. Nenhum dos dois se via, mas ambos, de maneiras diferentes, estavam finalmente sendo o que o mundo nunca deixava: eles mesmos.

O centro do festival fervia em luz e barulho, e no meio do som dos instrumentos e do cheiro de comida, três figuras se destacavam pela alegria que irradiavam. No meio daquela confusão bonita, Glomme, Firefy e Ártemis se abraçavam próximos ao palco, rindo, as asas de Firefy batendo devagar como se acompanhassem o ritmo da música. O trio posava para fotos com o céu alaranjado atrás deles, as mãos cruzadas, o calor dos corpos se misturando à vibração da multidão.

Firefy comentava que havia pedido para deixarem Gumer ir ao festival, mas não teve resposta desde ontem. Apesar da incerteza, o brilho dela não se apagava, ela queria acreditar que, de algum modo, ele estava bem, e porque aquele momento era para ser feliz. Eles estavam juntos, e isso bastava. 

Glomme ria alto, o som leve e sincero que sempre fazia Firefy relaxar. Enquanto Ártemis segurava o celular com firmeza, ajeitando os três num abraço desengonçado. E por um instante, parecia que nada ruim podia ferir aquele momento. Sem Gumer, sem Trrira, mas ainda assim juntos — três jovens tentando viver um pouco de liberdade antes que a realidade voltasse.

Ártemis jurou que eles iriam se divertir, e se algo desse errado, ela se responsabilizaria — o que, claro, seria um segredo entre eles, já que todos os pais estavam por ali, sorrindo e sem saber o que seus filhos aprontavam.

O clima era leve, elétrico, cheio daquela alegria adolescente que vem do simples fato de existir. A festa já tomava o festival por inteiro — o chão tremendo com as batidas, os cheiros misturados de suor, bebida e comida, e o riso fácil que atravessava o ar. Horas se dissolviam entre danças, abraços e selfies tortas, os três mergulhados naquele delírio coletivo que fazia o mundo parecer infinito. Mas então, entre uma música e outra, quando o ritmo pareceu prender a respiração por um segundo, o som mudou. Um murmúrio atravessou a multidão, um eco confuso de surpresa e choque. Risadas se transformaram em exclamações, e pessoas começaram a se virar para a entrada do festival. Algo — ou alguém — tinha parado o fluxo da festa por um instante.

Firefy sentiu antes de ver. O celular vibrou em sua mão, uma mensagem curta de Gumer piscando na tela: “Tô aqui.” O coração dela disparou. Olhou ao redor, o som da música parecendo distante demais, e começou a procurá-lo entre as pessoas, desviando de famílias, luzes e vozes. Até que o viu. Gumer. Acompanhado do pai e da madrasta. 

O mundo pareceu parar por um instante. Ártemis soltou o ar devagar. Firefy levou a mão à boca, os olhos marejados. Tiruli, quando reconheceu o rosto dele foi o primeiro a reagir. Largou tudo e correu, o rosto tomado por uma mistura de surpresa e emoção. Ele atravessou a multidão, os olhos marejando, tropeçando nas próprias pernas, até se jogar nos braços de Gumer, o choro preso na garganta finalmente rompendo. Firefy bateu as asas com força, o ar quente rodopiando em volta dela, e voou alguns metros, descendo rápido, fechando as asas antes de abraçá-los.

Ártemis vinha logo atrás, tropeçando, nervosa. Ela ficou parada, a alguns passos de distância. Observava em silêncio, o coração batendo estranho, sem saber se devia se aproximar. Havia ternura demais naquela cena, e ela não sabia onde se encaixava. A luz do palco refletia nos olhos dela, e por um instante, entre aplausos e risadas ao fundo, ela pareceu menor — tímida, deslocada, como se o abraço coletivo não fosse um lugar para ela. Ficou ali, olhando, com aquele meio sorriso incerto que só quem sente saudade sem direito à posse é capaz de dar.


Éehh... eles se abraçaram.

E eu fiquei ali, sorrindo, tipo quem finge que tá tudo bem.
Porque, bom... é bonito de ver, sabe?
Eles são amigos há anos, se entendem só no olhar, têm um tipo de carinho que parece antigo — e eu gosto disso.
De ver eles juntos. De ver algo que funciona.

Mas, ao mesmo tempo... dói um pouquinho, sabe...
Eu conheço eles há o quê? Um mês.
Sou a peça nova tentando se encaixar num quebra-cabeça que já está completo.

E é ok, de verdade.
Não tem nada de errado nisso.
É só que, às vezes, eu sinto que o grupo já é deles, e eu tô só ali, flutuando por perto.

Então eu fico quieta.
Esperando meu momento.
Mas, até lá... sou só o encosto feliz por ver que o resto do mundo ainda sabe se abraçar.

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