Volume 1 – Arco 1
Capítulo 18: Festa dos Doentes
Ele disse que o rei demonio tá dentro dele. O Diabo.
Eu acreditei. Não porque sou boba — mas porque eu amo ele. E quando você ama, você reconhece quando a dor é de verdade. Senti a mão tremendo, o olho vazio, o aperto no meu dedo como quem tá pendurado num penhasco. Tava no ar. No quarto. Em mim.
Pensa, Firefy. Respira.
Só disse o necessário pra eles. Pedi também pra devolverem o celular ao Gumer. Falei pra deixarem ele sair. Pra deixarem ele ir no festival da colheita, amanhã. Ele precisa lembrar que existe vida fora daquela caixa branca. Precisa de risada, música alta, amigos, abraços...
E com certeza eles ouviram tudo pelas câmeras, pelos microfones escondidos — devem achar que fiquei louca igual a ele. Ou vão taxar Gumer de mais insano ainda. Talvez até tentem mergulhar ele em água benta agora. Por isso eu preciso descobrir de que Diabo ele estava falando. Porque, se ele tiver razão... se realmente quiserem usar Gumer como hospedeiro, ninguém lá dentro vai perceber até ser tarde demais.
Eu só sei que, se continuarem trancando ele, vão acabar matando o pouco que sobrou do Gumer.
E eu não vou deixar. Vou fazer tudo por ele. Tudo. Mentir, implorar, quebrar regra, comprar briga com quem for. Nem que eu vire o alvo do demônio.
Se alguém tiver que cair, que seja eu.
Ele, não.
Michilli sempre costura destinos tortos ao mesmo tempo — Enquanto ela decidia o que sacrificar, um espelho devolvia um garoto a si mesmo, e, mais longe, uma voz nascida da fome prometia não calar.
Glomme, pela primeira vez em muito tempo, feliz — ou pelo menos tão feliz quanto alguém que passou a vida inteira odiando a própria aparência pode ser. Ficava parado diante do espelho, quase sem piscar, como se precisasse confirmar que o que via era real. Passava os dedos devagar pelo nariz, pelas bochechas, pelo queixo, sentindo cada traço. As lágrimas desciam silenciosas, quentes, porque finalmente ele podia enxergar algo que gostava. Algo que não o fazia se encolher de vergonha.
Durante toda a infância e adolescência, cada reflexo era um castigo. Depois de anos de piadas, socos, empurrões e risadas às suas custas, ver o próprio reflexo era sempre um castigo. Tudo isso o ensinou que beleza era uma moeda que ele nunca teria. A própria pele verde, as orelhas pontudas, cada traço "anormal" que marcava seu rosto — ele sempre odiou. A sociedade dizia que não era bonito, que não era aceitável. E ele acreditou nisso durante anos.
Mas agora... agora era diferente. Lindo, segundo ele mesmo. Com o rosto reconstruído, ele via pela primeira vez um rosto "normal", alinhado aos padrões de beleza que sempre o rejeitaram. Ainda odiava a cor da pele, ainda zombava das orelhas, mas era um começo. Um milagre. Glomme não percebia o quão absurdo era romantizar o acidente da escola, aquele mesmo que quase o matou. Mas na cabeça dele, tudo valeu a pena. O sofrimento antigo, o medo constante, até mesmo os hematomas e a dor.
Havia uma ironia amarga no ar: o rosto que o quase matou agora o fazia sentir-se vivo. Ele pensava — com um sorriso triste — que talvez devesse ter estrangulado o próprio rosto na parede há muito tempo. Cada cicatriz escondida era uma lembrança de que a dor também constrói. E, pela primeira vez, Glomme entendeu que não era um novo rosto o que ele queria — era permissão pra se olhar sem nojo. E pela primeira vez, Glomme não queria se esconder. Queria existir. E ser visto.
E no fundo, ele sentia raiva da própria vida e da sociedade que o ensinou a se odiar. Raiva de como as pessoas tinham o poder de definir sua autoestima, de fazer dele alguém invisível ou ridicularizado. Ele sabia que beleza era um privilégio que ele só havia conquistado por acidente — ironicamente, quase pela própria morte. Ainda assim, ao tocar o próprio rosto, sentia gratidão, porque finalmente podia se enxergar, mesmo que só agora, mesmo que ainda com cicatrizes internas. Um começo de amor-próprio, nascido da dor e da injustiça que carregou por tanto tempo.
Anaru vivia à margem, entre a fome e o desprezo da própria tribo. O fechamento da escola a deixou ainda mais presa a esse mundo limitado: a tribo não tinha recursos para tantas bocas, e ela não podia ficar ali por muito tempo. Cada olhar, cada palavra de seus pais a lembrava de que fraqueza não era permitida — mesmo que eles nem suspeitassem do poder mágico que corria em suas veias. A vida a forçava a sobreviver sozinha, e ela aprendeu a fazê-lo de forma silenciosa, precisa e invisível.
Às vezes, ela chorava até a garganta doer, o rosto sujo de terra e lágrimas, sem saber o que doía mais: a fome ou o abandono. Seu estômago roncava alto e quando o desespero apertava demais, quando a solidão a consumia, ela usava um de seus poderes; o canto hipnótico — tão antigo e secreto quanto sua própria respiração — para atrair animais e se alimentar escondida. Era sua pequena heresia, um segredo precioso que a tribo não poderia tocar.
Mesmo no silêncio imposto, Anaru sentia a vida crescendo dentro de si. Cada sacrifício, cada noite de solidão, cada lágrima — tudo isso era parte de uma construção mais ampla: ela não apenas sobrevivia, mas se tornava alguém que a tribo jamais imaginaria. Se algum dia o mundo quisesse ignorá-la de novo, teria que tapar os ouvidos, porque Anaru se tornaria barulho. Um som que não se cala, uma presença que não desaparece.
No mesmo instante em que o silêncio de Anaru ganhava peso, Michilli virava a esquina e mostrava outra face — barulhenta, brilhante, inconsequente.
Na mansão de Quinn, o sol ainda queimava o fim da tarde e o calor se misturava ao cheiro de álcool, perfume e suor. A música explodia pelos alto-falantes, o grave vibrava nas janelas, e a piscina refletia as luzes coloridas que piscavam em ritmo frenético. Gente demais, corpos demais, risadas soltas e vozes roucas se misturando num frenesi que fazia a casa inteira parecer viva.
No meio do tumulto, na cozinha, Quinn dançava só de cueca preta, o elástico torto na cintura, o corpo o corpo suado brilhando com o calor do fim da tarde. Os músculos do abdômen se contraíam a cada movimento, e o cabelo desgrenhado colava na testa, empapado de bebida. Um colar de prata batia contra o peito a cada passo, enquanto ele girava, rindo alto, completamente alheio ao caos que ele mesmo alimentava. Makkolb, com a camisa aberta, ria ao fundo, encostado na bancada, observando tudo com prazer. Tiruli, mais quieto, segurava uma garrafa de água e fingia estar ali por acaso, os ombros tensos, o olhar fugindo das cenas mais explícitas como se estivesse preso em um pesadelo que não queria admitir.
Misha entrou na cozinha com o passo firme e o rosto endurecido. O cabelo preso num coque torto, mechas soltas colando no pescoço suado. Assim que viu Quinn dançando no meio da confusão — cercado por garotas suadas, quase nuas, com copos tombando e risadas escorrendo das bocas — o maxilar dela enrijeceu. A cena era um caos de risadas bêbadas, corpos se esfregando, garotos sem camisa gritando como animais soltos — era um clipe pornô filmado no inferno, e Misha o assistia ao vivo.
— Pelo amor de Deus, Quinn… que nojo — ela disse, fazendo uma careta e jogando o cabelo pra trás com um movimento brusco. — Ele acha que é o rei do mundo. Um palhaço bêbado cercado de gente que finge gostar dele. É nojento, é patético, é... é tudo que ele não devia ser!
Ele nem olhou. Nem escutou. Continuava dançando, o corpo suado, o copo girando na mão. Ria de alguma coisa que uma garota disse no ouvido dele. Misha revirou os olhos e cruzou os braços. Se aproximou da geladeira, o salto deixando rastros suaves no chão quente da cozinha. Enquanto pegava um copo e servia uma bebida, os olhos nunca se afastavam do caos à frente.
Ela deu um gole, torceu o copo na mão, os olhos vasculhando cada canto da cozinha. Garotos sem camisa empurravam garotas contra balcões, mãos deslizando pelas coxas, quadris se apertando, bocas se encontrando com força; beijos quase agressivos, mordidas provocativas, gemidos que saíam pela garganta e se colavam ao ar denso. Misha sentiu o estômago revirar, a raiva latejar, mas também aquela centelha irritante de curiosidade involuntária — e odiava isso.
— Não, não... — murmurou, cerrando o maxilar, o nariz torcido de desgosto, os olhos cravados em Quinn, que se exibia como rei daquele circo de corpos, rindo alto, quase nu, mãos escorregando por braços, ombros, costas suadas.
Ela se virou devagar, os saltos batendo firme no chão, a respiração curta e pesada. Cada passo carregava desprezo, raiva e o fascínio proibido que teimava em percorrer sua espinha. A música alta, os gritos e as luzes coloridas ficavam para trás,
Misha desceu o corredor, o corpo suado grudando levemente na roupa impecável, respirando rápido, tentando processar o que tinha acabado de ver na cozinha. A música lá atrás ainda batia forte, pulsando nas paredes, nos corpos se esfregando e rindo, e mesmo com todo o asco que sentia, não conseguia evitar que algo dentro dela despertasse. Ela se repreendia mentalmente, lembrando das coisas que acreditava, mas era impossível ignorar a tensão, a excitação que subia pelo corpo sem permissão, um misto de repulsa e curiosidade que fazia o coração disparar e a mente girar em perguntas que ela não queria admitir.
No meio do caminho, um garoto encostado na parede chamou sua atenção. Ele parecia esperar por ela ou por alguém, o sorriso confiante e um olhar que parecia reconhecê-la mesmo sem nunca tê-la falado. O coração de Misha acelerou, uma mistura de alerta e excitação subindo pelo corpo. Ela desviou o olhar rapidamente, mas não conseguiu evitar um leve sorriso — e, por um instante, pensou que talvez pudesse provar pra si mesma que não era só uma virgem chata, que podia ser mais, ser mais Quinn. Ele devolveu o sorriso, aproximando-se devagar, cada passo calculado, respirando o mesmo ar quente e pesado do corredor.
Quando a porta do banheiro se abriu, ela entrou rapidamente com ele. O garoto a segurou pelo quadril, aproximando-a e pressionando o corpo contra o dele, colocando-a sobre a pia, enquanto se inclinava para beijá-la. O calor do corpo dele e o cheiro de bebida misturado com perfume a fizeram tremer por dentro, provocando uma reação que ela não queria admitir. Os beijos e sussurros começaram doces, mas logo tomaram uma curva cruel e pesada, palavras embriagadas de arrogância que a deixaram enojada. O estômago de Misha revirou e ela empurrou o garoto com força, as mãos suadas e o rosto marcando cada emoção: repulsa, raiva, incredulidade e, de algum modo, desejo contido.
— Tá de sacanagem, né? — murmurou ela, os dentes cerrados, a voz firme apesar da adrenalina e do suor. — Sério. Você acha mesmo que alguma garota vai engolir essas merdas que você tá falando, caralho? Que piada... um idiota tentando se mostrar.
Ele deu um passo à frente, zombava, claramente embriagado, desafiando-a com um sorriso malicioso. Para ele, nenhuma garota teria a ousadia de empurrar alguém como ele, e acreditava que ela merecia apanhar por isso. O sorriso dele, antes arrogante, começou a vacilar quando percebeu que os olhos de Misha mudaram; eles brilhavam com uma intensidade amarelada, e uma luz ardente começou a irradiar de suas mãos, lenta, firme, imponente. Misha respirou fundo, sentindo o poder pulsar, a fúria, a moral e a luxúria se misturando dentro dela, sem arrependimento.
— Que... o que é isso, porra? — ele perguntou, a voz trêmula, percebendo que sua confiança evaporava.
Ele achou que ela iria machucá-lo e tentou se aproximar para batê-la, ela apenas agachou-se, a energia crepitando entre os dedos. Tocou nele rapidamente, e num instante, o corpo do garoto se desfez em partículas cintilantes, como pó espalhado pelo ar, enquanto a luz de Misha aumentava, consumindo o espaço entre eles. Respirou fundo, os olhos ainda ardendo com cada emoção contida, e observou, até que tudo o que restava dele era uma pilha de pó reluzente no chão e no ar, como glitter dourado espalhado.
Misha respirou fundo, a fúria ainda pulsando intensamente em seus olhos, sem vestígios de arrependimento ou pena. Ela sabia exatamente o que fazia e acreditava que ele merecia o destino que acabara de receber. Com um último movimento firme das mãos, o brilho ardente nelas aumentou, fazendo o pó brilhante do que restava do garoto desaparecer, dissolvendo-se no ar como se ele nunca tivesse existido.
Sem uma palavra, Misha saiu do banheiro, respirou fundo, sentindo o calor do corredor e o eco das batidas da música. Cada passo era calculado, firme, como se a simples aparência de normalidade pudesse apagar a destruição que acabara de exercer. Seus olhos estavam sérios, mas nada traía o brilho que alguns segundos atrás iluminava suas mãos; o pó do garoto havia desaparecido, levando consigo qualquer vestígio do que aconteceu, mas não apagando a fúria e a adrenalina que pulsavam em seu peito.
Ela entrou novamente no salão, mergulhando no caos da festa como quem respira debaixo d'água, deixando o som, as luzes e os corpos se chocando ao ritmo da música engolirem sua presença. Por fora, parecia apenas mais uma jovem cansada; por dentro, a mistura de nojo, desejo e poder ainda ardia, tornando cada passo e cada olhar um exercício de controle sobre si mesma.
Mas sem ter percebido, no canto do teto perto ao banheiro, a câmera ainda registrava cada movimento que haviam feito antes de entrar no toalete com aquele garoto, um detalhe silencioso, quase imperceptível, guardando para si a lembrança do brilho ardente e da destruição que Misha havia causado. Ela não viu, não percebeu; mas aquela sombra tecnológica aguardava, silenciosa, pronta para tornar visível o que ela acreditava impossível de ser revelado.
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