Volume 1 – Arco 1
Capítulo 17: O Quarto Branco
Domingo do dia 10 de Março de 2019. Gumer acordou de mais um pesadelo gritando, suado e trêmulo, ainda chamando por Firefy enquanto os médicos corriam para segurá-lo. Os olhos dele se moviam freneticamente, tentando agarrar algo que não existia, perdido entre o sonho e a realidade. Aos poucos, os médicos o amarraram na cama, tentando impedir que se machucasse, enquanto ele respirava fundo, o peito subindo e descendo em desespero.
Mas não era só os pesadelos que o destruíam. Faziam quase três semanas que ele mal tinha contato com o mundo: quartos brancos, mesas vazias, e alguns jogos de tabuleiro que eram inúteis sozinho. Ele implorava pelo celular, qualquer forma de conexão, gritando que ia enlouquecer daquele jeito. E embora não falasse sobre os sonhos estranhos em que morria explodido ou afogado em sangue, eles o assombravam cada noite.
Às vezes, os gritos ecoavam pelos corredores e ele não sabia se vinham dos outros ou da própria garganta. O espelho do banheiro era coberto por um pano branco — disseram que era pra segurança dele, mas Gumer sabia que o reflexo não era o mesmo desde a noite do acidente. Havia algo nos olhos dele que observava de volta, algo que sorria quando ele não sorria.
Ele tentava o máximo parecer normal, não deixar que achassem que estava doente, que sua mente estivesse quebrando. Mas a cada dia ficava mais difícil. Surtos surgiam sem aviso, gritos pedindo para tirarem os chips no pescoço que desabilitavam seus poderes, ataques de pânico quando ninguém olhava. A vida que o obrigavam a levar era impossível. Ele queria ver Firefy, o pai, qualquer um que pudesse lembrá-lo de que ainda havia vida fora daquele quarto branco.
Não era que ele tivesse nascido assim. Ele tentava acreditar que ainda era humano, mas os olhares clínicos dos enfermeiros o desmontavam. Cada toque era uma experiência, cada pergunta era uma dissecação. E no fundo, Gumer sabia que o que mais o assustava não era o confinamento, mas o fato de que talvez eles estivessem certos — talvez algo dentro dele estivesse mesmo apodrecendo, e ele só não queria admitir.
19 dias se passaram desde que Gumer foi confinado no internato psiquiátrico, e o mundo continuou girando lá fora, quase sem esperar por ele. No sábado do dia 16 de março, faltava apenas um dia e algumas horas para a escola reabrir, para que um mês desde o começo das aulas se completasse, e para que aquele lugar — o internato que Ártemis havia pisado pela primeira vez — voltasse a engolir a rotina de todos, sem que ninguém soubesse exatamente o que ainda se escondia ali.
Pela manhã, no condomínio onde Firefy morava, dois agentes do internato chegaram discretamente. Haviam sido enviados para conversar com ela, ou melhor, para que ela ouvisse e ajudasse a orientar Gumer, depois dos sonhos perturbadores que ele tinha tido. A semana inteira de silêncio e afastamento havia feito com que qualquer interação com ele se tornasse urgente; os agentes sabiam que cada momento era crucial para compreender o que realmente havia na mente de Gumer.
Horas se passaram, e o ar do quarto parecia pesado, como se o medo tivesse massa. Firefy hesitou na porta, os dedos trêmulos no batente, antes de dar o primeiro passo. Cada som era ampliado: o estalar do piso, o farfalhar da roupa dela, o som abafado da respiração dele. Gumer, encolhido, parecia feito de cacos humanos — um corpo que lembrava o que é ser gente, mas uma mente que já tinha estava indo embora. Firefy entrou hesitante, e ao vê-lo sentado, sentiu o peito apertar, correndo para abraçá-lo. Ele se levantou devagar, quase desconfiado, e retribuiu o abraço com a mesma intensidade, o corpo dele tremendo, lágrimas escorrendo, como se naquele gesto pudessem desaparecer os monstros que carregava dentro de si.
— Gum... — murmurou, a voz embargada entre o choro e a urgência. — Eu tô aqui, me escuta, eu tô aqui agora. Eu senti tanto a tua falta. Eu precisava te ver. Eu não aguentava mais fingir que tava tudo bem.
Quando ela o abraçou, Gumer congelou por um instante, como se o toque reacendesse algo esquecido. O corpo dele cheirava a álcool e metal, o cheiro estéril de hospital e pavor. E então ele desabou. O peso do choro fez o peito dela vibrar, e ela sentiu as unhas dele cravarem nas costas — um pedido mudo pra que o mundo parasse só por um instante.
O abraço durou longos minutos, corpo colado, respirando o medo e o alívio um do outro, até que, com um suspiro pesado, se separaram e sentaram lado a lado, ele segurando suas mãos como se o mundo dependesse disso. Firefy observava o rosto dele com atenção, o olhar fixo, procurando algo que talvez nem existisse mais. O desespero dele parecia irradiar calor, se infiltrando nela até que o peito começasse a latejar.
Firefy colocou as mãos no rosto dele por um instante, os polegares afastando o suor das têmporas enquanto tentava prender a própria voz dentro da garganta, e Gumer evitou encará-la de frente, como se aquele gesto simples tivesse peso demais para um corpo cansado demais. Nenhum dos dois sabia o que dizer primeiro; então, respiraram juntos, devagar, tentando combinar ritmos, como quem ensaia coragem antes do pulo.
Os enfermeiros saíram em silêncio, fechando a porta devagar. O estalo seco da maçaneta foi o som mais alto do quarto. Ela respirou fundo e tentou começar com leveza, perguntando se ele estava confortável, se precisava de algo, se queria comer. Mas Gumer a interrompeu antes mesmo que ela pudesse terminar.
— Eu não sou louco, Fye — disse ele, a voz baixa, mas firme, as mãos suadas voltando apertar as dela como se temesse perdê-las. — Eu não tô doente, nem cansado, nem perdido. O que tem aqui dentro, o que vive aqui comigo, não é meu. Cada dia que passo nesse quarto é um inferno. Eu fico dias sem dormir pra tentar fugir, mas ele sempre volta, sempre encontra um jeito de entrar, mesmo quando eu penso que não tem mais nada pra ele destruir.
Firefy apertou as mãos dele com mais força do que pretendia, e a expressão no rosto traiu um pânico que tentava esconder com postura; ela assentiu devagar, como se estivesse traduzindo uma língua nova enquanto cada palavra dele empurrava um pouco mais de realidade garganta adentro. O ar esfria, a pele arrepia, e só o toque deles impede que a sala escureça de vez. As lágrimas vieram sem permissão. Era difícil aceitar que alguém tão vivo pudesse estar se desfazendo por dentro tão rapido. Mas havia verdade na voz dele — um tipo de desespero cru que não se inventa. Ela tentou se recompor, limpou o rosto com o dorso da mão, e respirou fundo antes de falar.
— Espera, calma, Gumer... Isso é... é muita informação de uma vez, eu nem sei por onde começar — disse ela, a voz trêmula, olhos arregalados, respirando fundo para não se perder, segurando as mãos dele com mais firmeza, tentando organizar os pensamentos que giravam como uma tempestade. Ela inclinou o tronco, aproximando o rosto até sentir o hálito quente e irregular dele, e contou três respirações completas antes de falar de novo; o silêncio entre as contagens foi o lugar onde ela reuniu a coragem que faltava. Gumer a observou de soslaio, como se olhar direto pudesse quebrar alguma coisa que ainda os mantinha juntos. — Quem é "ele"? Quem tá fazendo isso com você, Gumer? Me explica devagar, por favor, eu preciso entender, eu não consigo assim, de uma vez só.
Ele tremeu, encolhido, olhos perdidos no teto, suor escorrendo pelas têmporas, respirando com dificuldade. A voz dele saiu quase num sussurro, fragmentada e dolorosa, e cada palavra parecia queimar no ar.
— Satrak — ele murmurou, e o nome parecia doer ao sair. — O Diabo. Ele me observa quando eu fecho os olhos. Às vezes fala, às vezes só ri. Ele conhece coisas que eu nunca disse, e me mostra o que acontece quando eu tento lutar — Gumer desviou o olhar, o queixo tremendo. — Eu sinto ele dentro de mim, Fye. É verdade. Ele respira comigo.
Aquelas palavras batiam na cabeça dela, reverberando como marteladas, e Firefy sentiu o chão sumir sob os pés, a realidade se curvando para algo impossível. Como? Como o Diabo poderia estar dentro dele? Ele era um hospedeiro? Uma vítima? Ou aquilo era só a loucura falando, uma verdade distorcida que escapava de qualquer compreensão humana? Ela piscava devagar, tentando absorver, tentando encaixar cada detalhe num mapa que não existia, enquanto o corpo dele tremia e as mãos dela seguravam as dele com força quase desesperada. Cada segundo parecia mais longo, mais sufocante, e as perguntas se multiplicavam dentro da cabeça dela sem que uma única resposta pudesse acalmá-la.
— Eu... eu não tô entendendo, Gum — disse ela, a voz trêmula, os olhos fixos nos dele, tentando decifrar algo que parecia impossível de compreender. — Como... como o Diabo está dentro de você? Isso... isso é possivel? Me ajuda a entender, porque eu não consigo pensar direito com isso tudo acontecendo de uma vez, e-eu... eu não sei como lidar com isso.
Ele tremeu ainda mais, a respiração dele se descompassava, o peito arqueando num ritmo descontrolado. As veias do pescoço saltavam, e Firefy viu o pavor estampado ali — real, cru, sem espaço pra dúvida. Ele segurava as mãos dela com tanta força que parecia temer desintegrar caso soltasse. A sala girava. A fé dela e a sanidade dele deslizavam juntas, como duas cordas prestes a se romper.
— Eu... não sei... — murmurou ele, a voz baixa e quebrada, cada sílaba carregada de dor. — Eu não sei se estou sendo consumido ou se... se ele só está... vivendo dentro de mim. Mas todas as noites ele vem, todos os dias me devora por dentro, e eu não posso fazer nada. Eu não sei se vou aguentar... eu não sei quem ele é... mas ele está aqui, e não vai embora.
— Toda noite é igual. Ele aparece. Não é um lugar, é só escuridão, sangue por todos os lados, e cada passo que eu tento dar só me afunda mais — continuou Gumer, a voz baixa, quase arrastada. — Ele não tem olhos, mas me observa. É alto, pálido, como se fosse feito de ossos e sombras, com chifres que se encontram acima da cabeça e símbolos no corpo todo. Tem até um véu branco que se arrasta pelo chão, e tudo ao redor parece se mover com ele, como se o mundo inteiro estivesse respirando junto, entende?
Os passos dos enfermeiros no corredor lembraram a eles que o mundo continuava do lado de fora, mas por alguns segundos o tempo foi um bicho domesticado na palma das mãos; Firefy respirou fundo, recolocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e escolheu palavras que não a trairiam amanhã, quando o medo mudasse de forma.
— Entendo... Eu-eu vou com você até o fim da linha, Gumer... — disse Firefy, sem tremer. — Mas eu preciso que você venha comigo também. Se o Diabo te puxar, você me chama. Se o Diabo mentir, você me olha. Se o Diabo prometer poder, você ri na minha cara e lembra quem você é. Eu não salvo ninguém sozinha. A gente sai daqui junto.
— Tá — respondeu Gumer, e o “tá” vibrou como se fosse muito maior do que duas letras. — Se eu sumir, você grita meu nome, ok? Se eu rir sem motivo, você me cutuca. Se eu calar, você me pergunta de novo. E se eu disser que não dá, você me lembra que hoje deu. Hoje deu.
Eles se levantaram devagar, os joelhos estralando no silêncio, e ficou um segundo a mais do que precisava com a mão no ombro dele, como se testasse a realidade uma última vez antes de voltar para o corredor frio; Gumer acompanhou o gesto com um meio-sorriso torto, que não se sustentava sozinho, mas existia.
A maçaneta girou um centímetro como se a sala respirasse por metal, e uma voz do outro lado anunciou medicação de rotina; Firefy ergueu a mão num gesto mudo de “um minuto” e voltou os olhos para Gumer, porque nada podia ser mais rotina do que lembrar alguém de que ele não estava sozinho.
— Eu vou voltar, Gumer — disse ela, a voz baixa, firme, carregada de promessa e esperança. — Eu vou ajudar você com tudo que eu puder, de todo jeito que eu for capaz. Você não tá sozinho nisso, e eu vou ficar aqui, de verdade, até o fim. Cuide de si até eu voltar, e quando tudo isso acabar, eu estarei aqui...
Ele conseguiu contribuir apenas com um sorriso fraco, mas genuíno, enquanto Firefy virou-se para a porta, cada passo ecoando na sala silenciosa, deixando para trás a presença dele, o medo e o peso do desconhecido, mas levando consigo uma determinação inabalável. Quando Firefy saiu da sala, as mãos ainda tremiam, e ela jurou que o ar atrás dela ficou mais frio. Por um instante, antes da porta se fechar, achou ver o reflexo de algo nas paredes — uma sombra alta, disforme, como se o próprio quarto respirasse. Mas não olhou duas vezes. A fé dela era tudo que restava, e se permitisse duvidar, o medo a engoliria também. Ela saiu da clínica, a mente ainda girando com tudo o que ouvira, mas com a certeza de que sua missão estava apenas começando, que não importava o quão impossível fosse, ela faria tudo para ajudá-lo, custasse o que custasse.
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