Volume 1 – Arco 1

Capitulo 16: Há Muito, Eu Fui Tiruli - Parte 2

À noite, quando todos dormiam, Tiruli às vezes se permitia chorar. Não soluços altos, mas lágrimas silenciosas que escorriam enquanto ele encarava a cama de cima. Ele sentia saudades de quem ele era quando estava com Selis. Uma versão de si mesmo que era autêntica, feliz, sem máscaras. Agora, preso entre o peso de esconder quem era na escola e a dor de um amor perdido, Tiruli se sentia cansado.

Ainda assim, ele não deixava de ser grato por tudo que tinha. Seus pais, o apoio deles, sua inteligência, seus sonhos. Mas havia um vazio que nada parecia preencher. Uma cicatriz invisível que ele carregava, enquanto tentava, dia após dia, ser forte em um mundo que não parecia disposto a aceitá-lo como ele era.


Nos Caçadores, Tiruli sentia-se como uma sombra entre gigantes. Os meninos e as meninas do grupo pareciam sempre tão ocupados entre si, formando alianças e demonstrando seus poderes, que Tiruli era visto apenas como uma peça menor no grande tabuleiro. Havia uma hierarquia não declarada dentro do grupo, e ele sabia exatamente onde estava: na base. 

Icegren, uma das figuras mais proeminentes, era uma força dominante entre os Caçadores. Popular, autoritária e uma das únicas que tinha coragem de bater de frente com Quinn, ela dividia o papel de líder com ele. Apesar disso, era igualmente mandona e irritante, mas não tão insuportável quanto o próprio Quinn. Sua personalidade forte fazia com que ela fosse respeitada – ou temida – por todos, mas Tiruli não sentia nenhuma conexão verdadeira com ela. Icegren era fria em seus julgamentos, e Tiruli sabia que, para ela, ele não passava de um peão insignificante.

Sempre ao lado de Icegren estava Ahelys, sua sombra inseparável. Ahelys era exibida e, apesar de menos cruel que Icegren, parecia constantemente imitá-la. Ela fazia questão de seguir as ordens de Icegren, apoiando cada decisão dela como se fosse uma extensão de sua vontade. Era impossível para Tiruli se aproximar de uma sem enfrentar a barreira da outra.

Do outro lado do grupo, Quinn dominava o cenário com sua presença imponente. Ele sempre estava acompanhado de Makkolb, seu braço direito, tão detestável quanto o próprio líder. Ambos exalavam uma aura de superioridade que esmagava quem estivesse por perto. Tiruli se esforçava para manter uma relação pacífica com eles, principalmente porque eles eram os líderes não oficiais dos Caçadores. Mas, no fundo, ele sabia que, para Quinn e Makkolb, ele não passava de um acessório dispensável.

E então havia Misha, uma enigma ambulante. Poucos no grupo realmente a conheciam além de Quinn, mas ela carregava consigo uma irritante mistura de mistério e arrogância. Misha parecia avaliar todos ao seu redor com um olhar crítico, quase predatório. Ela desprezava fraqueza – ou o que ela interpretava como tal – e Tiruli, com sua aparência inocente e comportamento introvertido, não atendia às suas expectativas. Mesmo sendo poderoso, ele não transmitia a confiança que Misha admirava, e isso era suficiente para que ela o ignorasse ou o tratasse com desdém.

Apesar disso, Tiruli se mantinha perto de Quinn e Makkolb. Eles compartilhavam momentos que, para quem olhasse de fora, poderiam parecer laços de amizade: banhavam juntos no lavatório, dormiam no mesmo dormitório, dividiam piadas e treinavam como um time. 

À noite, quando o dormitório ficava em silêncio, Tiruli muitas vezes sentava na cadeira junto à escrivaninha, tentando entender por que ainda permanecia. Por que continuava ao lado de pessoas que o faziam sentir tão pequeno? Ele dizia a si mesmo que era por estratégia, por conveniência, mas no fundo sabia que não era só isso. Havia uma parte dele que ansiava por pertencer, por encontrar aceitação, mesmo em um grupo que lhe trazia mais dor do que alegria.

Tiruli segurava as lágrimas, tentando ser forte, mas a dor estava lá. Uma ferida invisível que crescia cada vez mais, alimentada pela rejeição e pelo vazio.

Apesar de se manter em silêncio na maior parte do tempo, Tiruli enxergava os podres e o que poucos no grupo ousavam admitir. Ele sabia sobre o antigo relacionamento de Quinn e Icegren – um segredo que todos no grupo conheciam, mas ninguém mencionava. Era quase uma regra não escrita: falar sobre isso era um convite para ser expulso ou, pior, enfrentar a fúria de Quinn ou Icegren. 

Tiruli também sabia dos cultos que Misha liderava, rituais estranhos que exaltavam Naelbazarath, a entidade que Misha venerava como o centro de sua vida. Para ela, Naelbazarath era uma força absoluta, quase divina, que ditava todas as suas escolhas e crenças. Ele sabia muito bem o tipo de "religião" que Misha pregava: tóxica, cruel e profundamente preconceituosa. Naelbazarath era uma justificativa para Misha abominar minorias e raças híbridas. E, sendo ele mesmo alguém que já havia enfrentado preconceito por sua sexualidade, Tiruli sabia que não podia confiar em alguém como ela.

Era um mistério por que Misha, com toda a sua devoção a Nael e suas crenças contra híbridos, não desprezava Icegren. Afinal, Icegren era uma híbrida não criada pelas "mãos sagradas" de Nael. Talvez  porque Icegren fosse tão poderosa quanto ela, ou talvez porque Misha, fascinada pela grandiosidade de Icegren, reconhecia nela uma igual. E titãs não se rivalizam — eles coexistem, cientes de que sua força está acima de qualquer disputa trivial.

Tiruli também sabia que a relação entre Icegren e Ahelys era mais de conveniência do que amizade. Ahelys era manipulada. Ela suportava o domínio de Icegren porque sabia que, sem essa aliança, sua vida na escola seria ainda mais difícil. Tiruli percebia a hesitação nos olhos de Ahelys, as pequenas pausas antes de concordar com Icegren, os momentos em que sua fachada quase caía. Ela tolerava tudo isso para evitar o bullying e a exclusão.

Havia outra camada nessa dinâmica que incomodava Tiruli: a relação de Ahelys com Quinn. Ela permitia que ele a tocasse em público, tentando desesperadamente criar a imagem de que era sua namorada. Mas todos viam através disso. Na escola, Ahelys era vista como nada mais do que um objeto, uma "meretriz" de Quinn, alguém que ele exibia como um troféu, mas nunca respeitava. Pois Quinn sempre andava cercado de várias garotas pela escola, especialmente aquelas que pareciam manipuláveis e frágeis, exatamente o que Icegren fora um dia no passado — e o que Ahelys ainda demonstrava ser, presa à própria fraqueza por não buscar evoluir.

E então havia Makkolb. Tiruli o desprezava profundamente. Makkolb era tudo o que Tiruli temia em uma pessoa: um imitador barato de Quinn, alguém que tentava desesperadamente ser como ele, mas mesmo assim se rebaixava para Quinn, como um lobo que reconhecia a força de seu alfa. Ele enxergava Quinn como seu superior. Mas diferente de Quinn, Makkolb era cruel de uma forma mais direta, um assediador de garotas que usava sua posição no grupo para intimidar. E Quinn não apenas sabia disso, como muitas vezes incentivava o comportamento, mesmo que não agisse da mesma forma.

Tiruli era silencioso, mas ele observava tudo. Ele sabia de cada segredo, cada podre que o grupo escondia sob a superfície. Sabia da inveja que toda a escola sentia de Quinn e Icegren – da força, da popularidade, da beleza imponente que os fazia parecer intocáveis. Sabia o quão sujos e podres eram Misha e Makkolb, mesmo que eles tentassem esconder sob uma fachada de poder e superioridade. Sabia que Ahelys sofria mais do que deixava transparecer e que seu lugar ao lado de Icegren era apenas uma máscara para evitar o isolamento.

Tiruli não gostava do grupo. Não confiava neles. E, no entanto, estava ali, ouvindo e vendo tudo, carregando o peso de tantos segredos que não ousava revelar. Talvez fosse medo. Talvez fosse a necessidade de se defender, temendo que, em algum momento, o grupo se rebelasse contra ele.

Mas, por enquanto, ele permanecia ali, convivendo com o desprezo silencioso, suportando o fardo de ser invisível, enquanto cada detalhe sujo do grupo dos Caçadores se acumulava em sua mente, como um veneno lento e constante.


Mas a ingratidão do grupo só deixava Tiruli mais forte, pois desde sempre Tiruli foi um estrategista nato. Silencioso, atento e extremamente calculista, ele sabia como usar sua aparente "invisibilidade" a seu favor. Por trás de sua postura introspectiva, escondia-se uma mente afiada e perigosa. Ele era um observador. Cada conversa, cada gesto, cada segredo murmurado nos corredores do internato escolar era cuidadosamente registrado por ele, armazenado como uma arma viva. Era assim que Tiruli sobrevivia. Ele transformava sua posição de excluído em poder, acumulando informações sobre aqueles que o menosprezavam e os destruindo de dentro para fora.

O ápice de sua vingança ocorreu no começo do ano anterior, 2018, quando ele finalmente derrubou os "Reis", um grupo elitista que comandava os alunos da escola com arrogância e crueldade. Os Reis eram compostos por garotos e garotas que pareciam intocáveis. Eram ricos, populares, e manipulavam as regras da escola como bem entendiam. Mas, por trás da fachada de perfeição, eram apenas pessoas desprezíveis – arrogantes, preconceituosos e cruéis, que faziam bullying com qualquer um que não se encaixasse nos seus padrões. Tiruli foi um de seus alvos preferidos logo após chegar na instituição.

Mas ele suportou. Não retaliou imediatamente. Ele esperou. Durante meses, ele observou-os em silêncio, fingindo ser o garoto inofensivo que todos viam. Quando o momento certo chegou, Tiruli atacou. Usando as informações que havia coletado, ele revelou os segredos mais sujos do grupo para toda a escola. Fotos, conversas, traições, mentiras – tudo veio à tona em uma enxurrada de escândalos que abalou os pilares da reputação deles.

O impacto foi devastador. Em questão de dias, os Reis caíram. Eles perderam o controle, o respeito e, finalmente, o espaço dentro do internato. Um por um, deixaram a escola, incapazes de lidar com a vergonha e a humilhação pública. Tiruli, pela primeira vez, sentiu o gosto da vitória. Ele havia derrubado aqueles que pareciam intocáveis, e ninguém suspeitava de sua participação. Pelo menos, era o que ele pensava.

Mas Quinn descobriu. Sempre astuto, Quinn juntou as peças e percebeu que o verdadeiro responsável por derrubar os Reis havia sido Tiruli. Contudo, em vez de confrontá-lo, Quinn tomou uma atitude inesperada. Ele se aproximou de Tiruli. Compreendendo o potencial de alguém tão calculista e implacável, Quinn o convidou para formar um novo grupo – Os Caçadores. No início, eram apenas os dois. Quinn era o corpo, forte e brutal, enquanto Tiruli era a mente, esperto e inteligente, a estratégia por trás da força. Juntos, equilibravam a violência com a astúcia.

Por um breve período, Tiruli sentiu algo próximo de amizade. Apesar de saber que Quinn não era confiável, ele gostou de não estar sozinho. Mas isso não durou muito. Quinn, sempre ambicioso, acabou dando mais atenção ao Makkolb, cujo temperamento cruel e força bruta eram mais alinhados com sua visão do grupo. Depois, veio Icegren. Inocente, submissa e fraca, e como Namorada de Quinn, ela rapidamente assumiu um papel de destaque nos Caçadores. O namoro entre eles consolidou sua posição como co-líder.

E Tiruli? Ele foi deixado de lado. Aos poucos, tornou-se irrelevante dentro do grupo que ele ajudou a construir. Sua inteligência e estratégia, que outrora foram essenciais, agora eram ignoradas. Ele permanecia nos Caçadores, mas não era mais parte central do grupo. Quinn não precisava mais dele para fortalecer os Caçadores; ele precisava apenas de sua força e inteligência para vencer competições e manter a aparência de um time invencível.

Para Tiruli, isso era um golpe duplo. Ele já havia experimentado o que era ser rejeitado pelos outros, mas agora, dentro dos Caçadores, sentia-se ainda mais isolado. Ele sabia que Quinn o via apenas como uma ferramenta, assim como Icegren e os outros. Mas o que doía mais era que, desta vez, ele não havia sido apenas uma vítima. Ele havia ajudado a criar esse monstro.

Agora, Tiruli permanecia quieto, observando. Ele sabia que, como antes, sua "invisibilidade" poderia ser sua maior arma. Mas, ao mesmo tempo, uma dúvida corroía sua mente: valia a pena começar de novo? Derrubar os Caçadores seria fácil para alguém como ele, mas e depois? Seria ele condenado a viver eternamente como uma sombra, destruindo aqueles que o rejeitavam, mas nunca encontrando seu lugar no mundo?

Enquanto caminhava pelos corredores da escola, sua mente trabalhava incessantemente, como sempre. Ele não deixaria sua dor transparecer. Não daria esse prazer a Quinn, Icegren, ou qualquer outro. Mas, no fundo, a solidão era um fardo que ele carregava com dificuldade. E, mesmo em sua inteligência brilhante, ele não sabia se havia uma solução para isso, mas usava a ela para evoluir, mesmo que sozinho.



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