Volume 1 – Arco 1

Capítulo 16: A Primeira Lâmina - Parte 3

Estava tudo quieto demais.

E se tem uma coisa que você aprende lá dentro, é que silêncio nunca dura.

Primeiro, um estalo seco — como se o internato tivesse respirado errado.

Depois, fissuras surgiam no teto, as paredes se abriram, o chão se fraturou. 

E em segundos o corredor inteiro estava trincado, o teto fragmentado, as paredes se fissurando e o chão rachando como se a terra quisesse engolir a escola inteira.

Caos. Rápido. Imparável. Sufocante.


Alunos corriam sem direção, entre tropeços e empurrões, o pânico crescia, misturado ao estrondo do concreto cedendo. Alguns tropeçavam, outros se empurravam desesperados — professores tentavam organizar, mas suas vozes eram engolidas pelo estrondo. 

No andar de cima, entre o pânico coletivo que varria os corredores, uma única figura não correu. Enquanto dezenas de adolescentes despencavam em direção às escadas, tropeçando uns nos outros na ânsia de escapar, ela permaneceu de pé — silenciosa, quase alheia ao caos. Os chifres de cervo que despontavam de sua cabeça a destacavam como uma presença estranha, quase etérea, uma alma calma em contraste brutal com a histeria à sua volta. O chão tremeu, rachaduras se espalhando como veias escuras sob seus pés, mas ela apenas fechou os olhos por um instante, inspirando devagar.

Ao abrir os olhos, nenhum traço comum: brancos, sem pupilas, translúcidos como vidro antigo, refletindo correntes invisíveis que se contorciam pelo prédio. A magia pulsava como um organismo doente, viva e profana, empurrando a escola em direção ao abismo. A garota ergueu as mãos com uma lentidão quase ritual, e seus chifres brilharam em tons suaves de verde, roxo e dourado, firmando-se contra aquela correnteza de destruição. Só então, entre os estalos e o eco do desespero, alguém murmurou seu nome — Faelynn.

Atrás dela, dois colegas que haviam saído correndo de outras salas pararam de repente após chamarem seu nome. Nenhum deles ousou respirar alto. Seus olhos vidrados refletiam o brilho intenso dos chifres roxo-dourados. A aura rosada de suas mãos iluminava o corredor, traçando as fissuras do teto e das paredes como linhas de fogo, como se ela estivesse costurando a própria escola com pura energia mágica.

Com um gesto firme, Faelynn travou os dedos no ar, como se estivesse segurando as correntes invisíveis que rasgavam a estrutura. Cada fissura congelou no lugar por um segundo, o chão parando de rachar. A poeira caiu em silêncio repentino, suspensa pela tensão mágica. O peso da escola inteira parecia empurrar contra seu crânio; a dor explodiu em sua mente, latejando como se lâminas estivessem pressionando dentro de sua cabeça. Ela cerrou os dentes, os olhos tremendo, mas não cedeu.

O fluxo das rachaduras, no entanto, não era passivo — parecia responder, lutar contra ela. As linhas no chão vibravam, tentando avançar, quase como se algo profundo estivesse empurrando para romper. Faelynn arfou, os joelhos tremendo, mas manteve os braços erguidos. O ar ao redor dela ondulava, como calor no verão, e o estalo do concreto cessou por completo.

Lá embaixo, alguns professores ergueram o olhar, surpresos pelo súbito silêncio no teto. A poeira ainda caía em pequenas partículas brilhando sob a luz quebrada, mas as rachaduras haviam parado de se espalhar. Entre os alunos aterrorizados, poucos notaram a mudança — mas aqueles mais atentos sentiram que algo, ou alguém, segurava a escola com pura força de vontade.  

Faelynn respirava ofegante, cada segundo pesado, o sangue pulsava em seus ouvidos, mas ela não soltou. Ela sabia que, se largasse, talvez fosse o fim não só do andar em que estava, mas de toda a escola.


É... não é que ela salvou a escola, no fim das contas.

O poder dela... parou as rachaduras. E por algum motivo, saber como aquilo aconteceu me deixou sem fôlego. Talvez essa garota desconhecida seja mais poderosa do que imaginamos. Assim como eu, eu acho... de algum jeito.

Muitos levaram os créditos naquele dia. Eu, Faelynn, Anaru, Firefy, Glomme, Trrira... todos aplaudidos por impedir mortes, destruição ou um caos ainda maior. Mas ninguém nunca vai sentir exatamente como foi estar lá, no meio daquilo, sabendo que cada segundo poderia ser o último. Que aquilo foi só uma fração do que poderia ter acontecido.

Quanto ao Gumer... meu deus, Gumer. Ele desmaiou depois de quebrar parte da escola. Hanvasa analisou a situação e disse que ele teria desmaiado de qualquer jeito, que pelo visto, aquele surto era temporário, e que o ataque dele contra a escola — aquele que poderia ter destruído tudo — aconteceu porque o tempo dele estava acabando, foi proposital. Mas naquele instante, olhando para ele caído, eu não conseguia pensar em nada além de culpa, medo e... raiva de mim mesma por não ter conseguido fazer mais.

Eu fiquei lá, olhando pra bagunça, para os pedaços de azulejo espalhados, para os rostos cansados dos professores e colegas. Tudo parecia menor, insignificante, diante do que poderia ter acontecido. E ainda assim... sobrevivemos.

E é estranho, sabe? Sobreviver e sentir que nada vai ser igual nunca mais. Que foi real, e isso assusta. Que a gente nunca vai esquecer esse dia, nem o cheiro da poeira, nem o som dos escombros caindo, nem o olhar dele... que estava pronto pra nos deter.

A adrenalina ainda corre, mesmo agora. E eu sei que não importa quantos créditos a gente leve... o medo e a certeza de que estamos mexendo com algo grande vão ficar com a gente para sempre.

E o internato enfrentou tempos difíceis; as aulas foram suspensas por três semanas. Após um aluno ter enlouquecido sem explicação. Outro aluno desapareceu misteriosamente minutos antes. Rumores tomaram conta dos corredores, e a escola nunca mais foi a mesma.

O impacto deixou marcas em todos. Gumer, mesmo sendo o centro do caos, foi quem mais demorou a se recuperar. O corpo dele estava intacto, mas ninguém via o rastro persistente da força profana que o dominara. Ele só abriu os olhos dias depois, dopado de remédios, em um quarto frio de clínica psiquiátrica, sem conseguir distinguir o que era memória e o que era delírio.

Ártemis, que raramente deixava alguém ver fraqueza, teve de engolir o orgulho. Uma clavícula quebrada não parecia nada diante do que poderia ter acontecido, mas a imobilidade a irritava como se fosse pior do que dor. Trrira, por sua vez, saiu com a lombar deslocada; cada movimento lembrava a fragilidade que ela odiava admitir. Ficou dias se apoiando em cadeiras e mesas antes de conseguir andar ereta de novo.

O caso mais grave foi o de Glomme. O goblin-humano passou por várias cirurgias delicadas no rosto, o que para qualquer outro teria sido irreversível. Mas a resistência mística de seu sangue fez diferença: costuras que deveriam deixar cicatrizes eternas cicatrizaram rápido demais, e a regeneração mágica tratou de recompor feições que pareciam perdidas. Ainda assim, os médicos comentavam em sussurros — fosse ele totalmente humano, não teria sobrevivido.

Firefy, no entanto, quase não pareceu ter estado lá. Como fada, a ligação dela com a cura era tão profunda que na mesma noite o corpo se fechou, a pele voltou a brilhar e as asas não tinham sequer arranhões. Enquanto todos ainda estavam entre camas e talas, ela já caminhava em sua casa, intacta.

Anaru também não precisou passar dias em hospital. Os cortes que a derrubaram naquela noite se fecharam rápido, como se o corpo tivesse pressa em apagar a derrota. Restou só a lembrança amarga de ter desmaiado diante de todos.

Quando os dias pesados terminaram, Gumer, Trrira e Glomme receberam alta oficialmente. Ártemis voltou antes, mesmo mancando de dor, recusando qualquer internação prolongada. Firefy já estava perfeita desde o início, como se nada tivesse acontecido, e Anaru saiu sem cicatrizes visíveis, mas com feridas no orgulho que não cicatrizavam tão fácil.

Depois que deixaram o hospital, Gumer enfrentou uma nova realidade. Ele foi transferido da escola para receber aulas particulares em uma clínica para doentes mentais, afastado de qualquer outro jovem. O tratamento psicológico tornou-se uma imposição; era necessário lidar com a "doença" que achavam que o atormentava. Gumer se sentia preso, odiando cada sessão de terapia e cada lição que passava, mas, no fundo, sabia que não tinha outra escolha. A sensação de solidão o acompanhava enquanto os dias se arrastavam, e ele se perguntava se algum dia poderia voltar a ser quem era antes.

Enquanto isso, Trrira enfrentava uma batalha própria. Em constantes discussões com seus pais, ela se via em um impasse. Eles queriam transferi-la para uma escola normal, sem qualquer tipo de magia ou perigo, para que pudesse focar na carreira que planejavam para ela. Para eles, as habilidades mágicas não era um futuro lucrativo; estavam determinados a moldar o futuro da filha de acordo com suas próprias aspirações. Trrira não conseguia entender como eles podiam ser tão insensíveis às suas vontades. Ela queria continuar a aprender sobre seus poderes, sonhando em se tornar uma grande heroína, mas cada argumento que tentava apresentar era abafado por suas expectativas. A frustração crescia dentro dela, e a sensação de impotência a deixava angustiada, sem saber como lutar por sua própria felicidade. Assim como Gumer, Trrira se via sem escolhas, presa nas decisões que os outros tomavam por ela.

E durante o fechamento da escola, a vida de Ártemis virou um turbilhão. Sua família estava desesperada, especialmente o pai, decidido a tirá-la de Velmoria — como os pais de Trrira haviam feito. Ninguém parecia enxergar que ela ajudou a salvar o lugar, só viam o perigo, o caos, o estrago.

Mas Ártemis não cedeu. Enfrentou o pai, dizendo que aquele era o seu caminho. Que coisas estranhas sempre aconteciam em lugares estranhos, porque essa era a natureza de Alfhenia. Ela precisava que confiassem nela, porque acreditava que podia mudar o destino da família — tirar todos da pobreza e provar que tinha nascido para algo maior.

E, mesmo em meio ao medo, suas palavras deixaram claro: ela não ia embora.


Depois do fiasco com o Gumer, o clima na cidade de Michilli mudou — mas nem todo mundo chorava pelos mesmos motivos. A internet inteira virou um teatro. Todo mundo fingindo estar abalado, mas no fundo era só curiosidade e fofoca. E entre os que não sabiam se choravam ou riam, estavam Misha, Quinn e Icegren — três que odiavam estar fora dos holofotes.

Quinn, especialmente, estava furioso. Repetia o tempo todo que devia ter estado lá. Que se tivesse entrado na enfermaria, teria “acabado” com o Gumer, aquele “Bambi de merda”, como ele dizia. Pra ele, aquele caos todo tinha sido uma oportunidade perdida — a chance perfeita de se vingar do cara que o tinha eliminado no jogo do ano passado, com aquele golpe sujo que deslocou seu ombro e o deixou de fora por semanas. Desde então, Quinn sonhava em uma revanche. Mas o destino — ou talvez só azar — tirou isso dele. E agora todo mundo falava do acidente, das rachaduras, dos poderes, dos “heróis que salvaram a escola”. Nenhum deles era Quinn.

Misha e Icegren, por outro lado, tentavam fingir que não ligavam, mas era mentira. Elas sabiam que quando as aulas voltassem, os “salvadores” seriam ovacionados. Era assim como o sistema funcionava — a escola ia usar os heróis do acidente pra limpar a própria imagem. Entrevistas, anúncios, patrocinadores, discursos sobre bravura... iriam transformar caos em espetáculo, desastre em marketing. Todo mundo fingindo que o caso estava resolvido. E claro, Gumer seria o vilão perfeito — o “aluno instável”, o “perigo controlado a tempo”, os “salvadores” iam ser tratados como lendas, e elas, as Caçadoras, iam despencar no ranking. Ninguém se lembrava de quem ficava de fora. Ninguém celebrava quem não aparecia nas fotos.

No fundo, o que doía nelas não era inveja — era medo de se tornarem irrelevantes. Era insuportável. Caçadoras esquecidas, deixadas de lado, eclipsadas por quem levou os créditos. A raiva era silenciosa, mas constante. Um tipo de dor que não sangra, mas arde — a ferida do esquecimento.

Elas precisavam voltar pro centro dos holofotes, pras telas, pros anúncios. O público de Michilli esquecia rápido, e se não fizessem algo, seriam só nomes de rodapé no próximo boletim escolar. Até porque em Hiden, ninguém se importa com quem você é — só com quem está sendo falado nos microfones. 

E naquela escola, fama e poder valem mais do que qualquer lição de moral.

Então, mais de duas semanas se passaram sem que o tempo fosse notado. Os dias se estendiam lentos, alternando entre nuvens e breves raios de sol. O vento fresco passava calmamente, e as noites, silenciosas, eram marcadas apenas pelo som distante da natureza.

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