No quarto abafado, Naala encarava a tela do celular pela milésima vez, os olhos cansados saltando entre pesquisas inúteis. Nada. Nenhuma frase parecida, nenhum símbolo correspondente, nada que se aproximasse do que Glomme havia mostrado. Aquilo realmente parecia antigo, ancestral, talvez até esquecido demais para estar na internet. Ela já havia feito de tudo — tradutores, fóruns, mapas mentais, listas cruzadas com as possessões de Gumer e Marry. A possibilidade dos dois alunos desaparecido estarem envolvidos era real, mas continuar presa na dúvida a deixava frustrada.
Com um suspiro, colocou os fones, apertou o play e a música encheu o quarto. Sem pensar, o corpo reagiu — ela começou a dançar. Subiu nas beliches, escorregou de volta, se jogou contra a parede, girou os braços no ar, como se a dança fosse uma forma de exorcizar o cansaço e a impotência. Ria sozinha, se enroscava nos cobertores, dançava de novo, bagunçava o cabelo, puxava as mechas como se isso fosse fazer alguma ideia brotar.
Depois caiu sentada, encarando a escrivaninha. As lágrimas vieram sem pedir, misturadas com a frustração de não saber como seguir em frente. Ela havia feito tudo certo, mas parecia que tudo empacava. A música mudou e, sem forças para pensar, ela dançou de novo. Mexia os ombros, batia os pés no chão, se esgueirava até o corredor para espiar se havia alguém, depois voltava e rebolava sozinha no centro do quarto.
Até vir a faísca. A lembrança. Lira. Claro, a professora Lira! Se havia alguém que poderia saber o que aqueles símbolos significavam, era ela. Lira sabia de tudo, falava sobre hístorias como se tivesse vivido dentro delas, como se respirasse o aroma do passado. Naala sorriu sozinha no quarto, limpou os olhos com os dedos e levantou num pulo. Ela tinha uma nova pista. Não era o suficiente para resolver o mistério — mas era o suficiente para dançar de novo.
Algumas horas se passaram, e o dia avançou silenciosamente. Já era quase o fim da tarde em Michilli. Naala caminhou até a porta da recente sala de aula de Lira e bateu suavemente. Ao ser chamada com um sorriso gentil, entrou com o coração apertado, puxou uma cadeira e se sentou ao lado da professora. Lira franziu a testa ao notar a tensão no rosto da aluna, entendendo, sem que fosse preciso dizer muito, que algo sério estava acontecendo. Naala, em silêncio, ligou o celular e abriu as fotos dos símbolos desenhados.
— Onde você encontrou esses símbolos? — perguntou Lira, a voz baixa, quase um sussurro tenso.
Naala, olhou para ela, um pouco hesitante e assustada, mas cheia de empolgação, nem percebeu o peso no rosto da professora.
— No caderno... do Glomme. Ele encontrou esses símbolos através da Marry. A gente seguiu umas pistas... são coisas antigas, ancestrais mesmo! Lira, é como se ninguém quisesse que isso fosse descoberto, e agora a gen...
— Chega. — Lira interrompeu, firme. A empolgação de Naala se chocou contra a dureza do tom. Lira falou com voz grave e quase ríspida, alertando que aqueles símbolos haviam sido apagados dos registros por um motivo sério. Se alguém de fora descobrisse que alunos estavam mexendo naquilo, toda a escola poderia estar em perigo. A advertência soava pesada, carregada de um tom de urgência e ameaça velada.
Naala, contudo, não recuou diante da severidade. Sua voz ganhou firmeza, quase um clamor, insistindo que eles podiam ajudar, que precisavam entender o que estava acontecendo e por que os alunos estavam desaparecendo. Para ela, aqueles símbolos eram a chave para desvendar o mistério, e simplesmente ignorá-los não era uma opção.
Lira reagiu com um berro, a tensão evidente nos dedos que tremiam levemente, mas seu rosto permanecia frio e controlado, os olhos fixos nos símbolos como se encarassem um perigo invisível. Ela questionou se mais alguém sabia daquilo além deles, seu tom agora autoritário, como quem já decidira que aquilo precisava terminar.
Naala hesitou antes de revelar que Glomme estava profundamente envolvido na investigação, que ele descobrira uma ligação entre os símbolos, a Lua de Sangue, o Gumer e a Marry e até uma lingua ancestral. Contou que Tiruli também ajudava, e que muitos amigos de Glomme tambêm estavam juntos nessa busca.
Lira ficou atônita, seu olhar fixo em Naala enquanto assimilava a informação. Ela parecia chocada, preocupada com o envolvimento dos jovens, como se estivesse diante de algo que não podia ser tocado sem consequências.
Um silêncio pesado caiu entre elas. Naala sentiu a preocupação crescer dentro de si, sem saber qual caminho seguir.
Lira suspirou profundamente e se afastou da mesa. Seus olhos carregavam uma sabedoria sombria, como se guardassem um segredo antigo e terrível. Com voz séria, explicou que aqueles símbolos eram variantes de feitiçarias muito antigas, realmente ancestrais, ligadas a uma língua omniversal, usada em todos os infinitos cosmos, mas que havia sido banida há muito tempo em Alfhenia.
Naala absorvia cada palavra como se ouvisse um segredo. Curiosa, perguntou por que essa língua fora proibida.
Lira fechou os olhos por um momento, ponderando a revelação. Disse que a língua fora banida para impedir os sinthra-humanos de se comunicarem com outros planetas, para expandirem seu conhecimento e poder. Os humanos de Alfhenia queriam se isolar, queriam ser os seres mais evoluídos, criando suas próprias línguas, tecnologia, afastando-se de outras espécies.
Naala permaneceu paralisada, incapaz de reagir à torrente de revelações que acabara de ouvir. Aquilo não era apenas uma história antiga — era o tipo de verdade que mudava tudo. Um conhecimento esquecido, selado com medo, e agora aberto diante dela como um abismo.
Lira prosseguiu, e sua voz, antes firme, tornou-se mais baixa, mais lenta, carregada de um pesar antigo, como se as palavras que dizia não fossem apenas informações, mas cicatrizes de eras que insistiam em sobreviver no silêncio.
Ela explicou que sabia daquilo por causa de antigos relatos de Deuses que ainda ecoavam pelas linhas do tempo. Esses seres, testemunhas dos primórdios, falavam sobre a língua omniversal, mas essa linguagem se perdera. Apenas alienígenas e antigos heróis cósmicos ainda a conheciam completamente. Contudo, os heróis haviam partido, abandonado Alfhenia há séculos, e não restava mais nenhum capaz de atravessar o espaço. Os sinthra-humanos estavam agora presos à Alfhenia, isolados de qualquer contato com o exterior do cosmos.
Naala sentiu uma vertigem. A imensidão daquele universo escondido começava a pesar sobre seus ombros.
Lira a observava com atenção, medindo cada reação. Seus olhos avaliavam Naala com intensidade, como se buscasse nela uma força escondida, uma firmeza necessária para suportar o que viria a seguir. Quando respirou fundo, parecia que uma nova camada de gravidade tomaria a conversa.
Ela revelou então o que mais a preocupava: que a língua omniversal não podia ser simplesmente aprendida. Aquela língua esquecida jamais poderá voltar à superfície. Nem mesmo sua existência deveria ser conhecida. Era um idioma proibido, envolto em feitiçaria perigosa — diziam que fora usado durante o massacre em massa dos elfos mágicos. Redescobri-la não era apenas um risco... era uma ameaça. Não era algo que qualquer um poderia dominar. Era preciso algo mais para aprende-lá. Algo que Glomme, infelizmente, talvez possuísse. Disse que Glomme, por mais que tentasse ser comum, não era. Era um híbrido raro — meio-goblin, místico, descendente das antigas florestas, e portador da magia verde, a mais ancestral de todas. Sua mente funcionava em níveis que ultrapassavam qualquer capacidade humana moderna. Ele não era apenas inteligente. Ele era perigoso... pelo que podia entender, decifrar, descobrir.
Lira então revelou o que tornava tudo ainda mais desesperador. Nenhum ser com superinteligência sobrevivêra aos últimos milênios. Os governos, temerosos, haviam exterminado ou drenado os poderes de todos aqueles que ameaçavam os limites do controle. Se Glomme se aprofundasse demais, se sequer soubesse que estava tocando uma língua omniversal, estaria marcando seu próprio destino — um destino sem retorno.
Com o rosto tenso, a voz agora fria como gelo, Lira deu sua ordem final. Naala não podia contar a ninguém sobre aquilo. Nem a Glomme. Sob hipótese alguma. Se ele soubesse, se tivesse consciência do que realmente estava fazendo, ele descobriria tudo. E então estaria em risco. Naala também.
Ela não sabia responder — não com lógica, não com certeza — apenas com aquilo que restava: uma promessa. Murmurou que manteria o segredo, quase sem força na voz, ainda tomada pelo impacto da revelação. Era uma promessa sussurrada, mas selada com sinceridade profunda.
Lira a observou por um momento, seus olhos já menos duros, mas ainda carregados de vigilância e cuidado. A professora não disse mais nada de imediato, apenas indicou com um leve movimento de cabeça que era hora de ir. Sua última recomendação veio num tom baixo, direto, quase maternal: que não dissesse uma única palavra sobre aquilo a ninguém, e que se protegesse — e protegesse os outros.
E por fim, com uma expressão quase solene, Lira exigiu um juramento silencioso: Naala jamais poderia revelar que fora ela quem contara tudo aquilo. Era um pacto tácito, um fardo entregue — e impossível de devolver.
Naala se virou lentamente, os passos incertos no início, como se o chão tivesse perdido sua estabilidade. Deixou a sala em silêncio absoluto, atravessando o corredor com a mente fervilhando. Cada pensamento parecia se chocar com o próximo, formando um labirinto de dúvidas e medos. A tempestade que caía dentro dela era feita de revelações antigas, de riscos incalculáveis, e de uma verdade que agora não poderia ser desdita.
A porta se fechou atrás dela, e Naala sabia: nada mais seria como antes.
3 de abril de 2019 - Quarta-Feira
Naala encontrou Tiruli no refeitório. Ele a chamou em voz alta, e ela se aproximou, sentando-se ao seu lado. Tiruli estava ciente de como aquilo poderia parecer aos outros — estarem juntos em público passava a imagem de um casal, o que era socialmente mais aceitável do que ser visto com Glomme, por exemplo. Assim, fingir proximidade com Naala tornava tudo mais simples para ele.
Logo percebeu que algo estava errado com ela. Naala parecia inquieta, diferente. Quando ele perguntou, ela tentou disfarçar, mas Tiruli insistiu, dizendo que não podia confiar nela se ela não fosse honesta. Diante disso, ela respirou fundo e pediu que ele prometesse não contar a ninguém o que ela estava prestes a revelar — principalmente a Glomme. Tiruli prometeu, e ela contou, em voz baixa, tudo o que Lira havia revelado: a existência de uma língua omniversal proibida, os símbolos escondidos, o risco para Glomme. Tiruli ouviu em silêncio, absorvendo a informação com um semblante mais calmo do que ela esperava. Parecia chocado, mas não surpreso. Ele comentou que já suspeitava da crueldade do governo, e agora entendia o quão complexo era o mundo em que viviam.
A conversa foi interrompida com a chegada de Makkolb, que se sentou à mesa com um olhar suspeito. Tiruli ficou visivelmente tenso. Makkolb, com sarcasmo, perguntou quem era a “namorada”, mirando Naala com olhos avaliativos. Ela respondeu com firmeza, tentando parecer confiante, sabia que Tiruli estava entrando em pânico. Makkolb a encarou com um olhar descarado, sem nenhum pudor ao deixar os olhos deslizarem pelos seios dela como se fossem sua propriedade. Desconfiado da relação entre os dois, exigiu que eles se beijassem por puro prazer sádico.
Sem opção, pressionados pelo medo, Tiruli e Naala trocaram um selinho rápido. Makkolb não se deu por satisfeito e exigiu um beijo de língua. A tensão aumentou, mas, desesperados para não criar conflitos, os dois cederam. O beijo foi desconfortável e forçado, mas suficiente para satisfazer Makkolb, que saiu rindo sarcasticamente após bater nos ombros de Tiruli.
Após a saída dele, o silêncio entre Naala e Tiruli era pesado. Ambos estavam abalados, tentando entender o que acabara de acontecer. Tiruli tentou quebrar o clima, mas Naala disse o que sentia: foi humilhante. No fundo eles sabiam que Makkolb tinha percebido que estavam mentindo.
Enquanto isso, Glomme, que também estava no refeitório, havia assistido à cena de longe. Paralisado, confessou a Firefy e Ártemis que havia perdido a fome e saiu rapidamente. No corredor, correu para seu dormitório, subiu na beliche e se enfiou debaixo do travesseiro. Chorou, consumido por um sentimento esmagador de dor, vergonha e perda. Sentia que queria desaparecer.
Naquele dormitório silencioso, ele sentia a frustração crescer dentro dele como algo que não conseguia conter. Antes deitado, agora sentado na beirada da cama, socou as próprias coxas com força, tentando calar o que rodopiava dentro do peito — mas o impacto seco só ecoou na solidão do quarto. As lágrimas ardendo nos olhos, pesadas, vindo antes que ele pudesse impedir. Ver Tiruli beijando Naala tinha doído mais do que ele queria admitir. Aquilo o atravessava, como se confirmasse algo que ele sempre teve medo de aceitar: ele nunca era a escolha.
Queria estar com Gumer. Precisava de um abraço, daqueles que o prendiam forte e aqueciam por dentro. Sentia falta dos beijos brincalhões, dos sorrisos bobos, da forma como ele fazia tudo parecer mais leve só por estar perto. Mas Gumer não estava ali. Ninguém estava.
Firefy continuava distante, e ele odiava depender dos outros para se aproximar dela. Ártemis parecia ter conquistado tudo tão fácil, como se fosse natural pertencer. Ele nunca sabia como agir, nunca sabia se era bem-vindo. E agora, Tiruli... Tiruli era incrível. Inteligente, engraçado, cheio de ideias. Estar com ele fazia Glomme se sentir visto. Mas ele não confiava. Não mais. E agora ele tinha certeza que Tiruli era só mais um hétero fingindo. Certeza que ele só estava interessado na Naala por ela ser mais fácil, mais legal, uma garota. Depois de tudo, confiar era como andar em cacos — e ele não queria sangrar de novo.
Limpar o rosto com a manga do pijama não adiantou. O nó na garganta não desatava. O quarto estava escuro e o mundo parecia grande demais para alguém tão pequeno como ele. Ainda havia uma maldição, segredos, pistas. Mas, naquele instante, nada disso importava.
Ele só queria um abraço. Do Gumer... Ou do Tiruli... Um toque que dissesse: você ainda importa.
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