Volume 1 – Arco 1

Capítulo 20: O Eco que Restou

O abraço foi intenso, de fazer o ar sumir. Glomme o envolveu com força, os braços apertados, o rosto enterrado no ombro dele. Chorava, soluçando baixinho, como uma criança que finalmente encontra o que achava ter perdido pra sempre. Beijou o rosto de Gumer várias vezes, a testa, as bochechas, os olhos — desesperado, trêmulo, aliviado. O sorriso dele vinha entrecortado de respiração curta, o corpo todo vibrando entre choro e riso.

— Gum... você tá aqui mesmo — ele murmurou, a voz falhando, os olhos apertados como se ainda não acreditasse. — Eu achei que você nunca mais ia voltar. Juro, eu pensei que tinha te perdido de vez — respirou fundo, o sorriso tremendo. — Eu não fazia ideia do que fazer sem você aqui.

Gumer riu de leve, um riso curto e rouco, a garganta apertada. O toque de Glomme era quente, verdadeiro, e por um segundo o peso do corpo dele pareceu sumir. Passou a mão nos cabelos do amigo, encostando a testa na dele.

— Eu tô bem melhor, Glom. Eu juro. Lá na clínica é tudo calmo, as pessoas me tratam bem, e eu tô dormindo, comendo... vivendo um pouco de novo... — disse ele num tom baixo, os olhos úmidos e sinceros demais pra parecerem seguros. Virou-se para ela, e Firefy sustentou o olhar em silêncio; sabia que não era verdade, sabia que ele ainda carregava aquilo por dentro. — Só... os sonhos que continuam vindo. Sempre. Todo santo dia. Eu acordo achando que ainda tô preso lá dentro. 

Firefy chegou perto, devagar, as asas se movendo levemente no ar. Os olhos dela estavam marejados, mas o sorriso insistia em ficar. Tocou o rosto de Gumer com a ponta dos dedos, o gesto delicado, quase infantil.

— A gente vai cuidar disso, tá me ouvindo? — disse ela, num tom doce e firme, o olhar cheio de afeto e medo. — Vamos sentar, conversar, entender, resolver o que tá te acontecendo. Todos nós, juntos, como sempre devia ter sido.

Ártemis assistia de longe, as mãos entrelaçadas atrás das costas, o corpo um pouco curvado, o rosto iluminado por um sorriso tímido. Estava feliz por ele, mas o desconforto de quem não sabe se pertence àquele amor era evidente. Gumer a notou ali, meio afastada, e por um segundo pareceu surpreso.

— Oi, Ártemis — disse ele, coçando a nuca, um sorriso leve escapando. — Faz um tempinho, né?

— É... faz — respondeu ela, os olhos baixos, o sorriso contido. — Que bom te ver assim, de pé.

O silêncio que se formou foi breve, quebrado pelo som dos fogos e pelas gargalhadas ao redor. Gumer respirou fundo, os olhos brilhando com uma energia que misturava cansaço e vontade de viver.

— Quer saber? Foda-se. Eu quero dançar com vocês. Quero rir, quero beijar, quero viver essa porra de noite até o fim — disse ele, abrindo os braços, o sorriso rasgado no rosto. — Já chega de tristeza, galera. Eu tô vivo, porra.

Firefy foi a primeira a rir, um riso leve e sincero. Glomme riu logo depois, limpando as lágrimas do rosto. Ártemis tentou disfarçar o sorriso, mas não conseguiu. Gumer estendeu as mãos e os puxou, e os três o seguiram, correndo entre as barracas, os pés batendo no chão, o vento batendo nos rostos.

O som da música vibrava pelas paredes dos prédios e se misturava aos fogos que rasgavam o céu, refletindo no suor e no brilho dos olhos. O ar cheirava a fumaça doce, comida quente e liberdade. Gumer estava no centro de tudo, cercado pelos três — Firefy, Glomme e Ártemis — e pela primeira vez em muito tempo, o corpo dele parecia leve, como se o peso das últimas semanas tivesse ficado para trás.

Eles se moveram juntos, sem pensar, arrastados pela batida que fazia o chão tremer. Firefy girava com as asas abertas, o brilho alaranjado delas riscando o ar enquanto ria alto, a voz dela se misturando à batida e ao som dos fogos. Gumer a puxava pela cintura e rodava com ela, o riso deles se fundindo ao luar. Glomme girava junto, abraçando os dois por trás, os três tropeçando, um amontoado de alegria e suor. Ártemis, que fingia controle, cedeu. Deixou que o corpo dela seguisse o ritmo e se aproximou deles, as mãos entrelaçando nas deles, o cabelo voando, os olhos brilhando sob as luzes. Os quatro presos naquele abraço longo, quente e bagunçado, como se o tempo tivesse parado ali.

A dança começou sem intenção, uma batida leve que o corpo seguiu por instinto. A música vibrava, o chão parecia se mover sob os pés, e tudo acontecia num mesmo compasso — riso, toque, respiração. Firefy dançava, os olhos brilhando, o rosto próximo demais do de Gumer. Seus corpos quase se tocando a cada movimento. Ele a segurava pela cintura, puxando-a para perto demais, e por um momento que pareceu eterno, eles ficaram parados, ofegantes, olhando um para o outro. Firefy pode sentir o suor dele em suas mãos, o calor do corpo dele radiando através das roupas finas. Então, antes que ela conseguisse entender o que estava acontecendo, ele se inclinou e a beijou, firme, quente, como se aquele toque tivesse sido guardado por tempo demais.

O beijo foi inicialmente surpresa — lábios levemente entreabertos, o gosto da bebida doce ainda presente. Firefy hesitou por um segundo, então respondeu ao beijo, suas mãos subindo para envolver o rosto dele. Ele pode sentir os batimentos cardíacos dela acelerados contra seu peito, suas asas tremendo levemente atrás dela. Quando se separaram, estavam ambos sem fôlego.

Glomme, que estava ao lado deles, ficou parado assistindo, seus olhos arregalados e rosto corado. Gumer, ainda segurando Firefy com um braço, estendeu a outra mão para Glomme. Puxou-o para perto pela nuca, fechando o espaço entre os três. Glomme hesitou por um instante, o coração acelerando, e foi então que Gumer o beijou — devagar no começo, a respiração dos dois se misturando, até que o toque ganhou força. As mãos de Gumer deslizaram pelas costas dele, puxando-o com uma urgência silenciosa, e Glomme correspondeu, entregue ao calor que já não sabia de onde vinha. 

O beijo entre os dois garotos foi diferente – mais áspero, mais desesperado. Gumer mordeu suavemente o lábio inferior de Glomme antes de aprofundar o beijo, saboreando o gosto diferente, mais suave. A mão de Glomme, tremula, encontrou o peito forte de Gumer, sentindo os músculos tensos sob a camisa.

Firefy, agora livre, observou os dois por um momento, então virou-se para Ártemis, que estava parada um pouco afastada, observando com expressão de muita surpresa. Firefy aproximou-se dela, movimentos lentos e deliberados. Ela levantou a mão e tocou o rosto de Ártemis com cuidado, sentindo a pele macia sob seus dedos. Seu polegar passou suavemente sobre a maçã do rosto de Ártemis, seus dedos firmes na mandíbula da outra garota antes que ela se inclinasse e a beijasse.

Um beijo diferente — mais suave, mais exploratório. Ártemis ficou imóvel por um momento, então seus lábios começaram a responder ao movimento. Suas mãos encontraram a cintura de Firefy, puxando-a para um abraço mais próximo. Quando se separaram, ambas estavam respirando com dificuldade, um sorriso tímido surgindo em seus rostos.

Foi o estopim.

Foi então que Gumer puxou todos para um abraço. Seus braços envolveram Firefy e Glomme, que por sua vez puxaram Ártemis para o círculo. De repente, estavam todos conectados — pele contra pele, respiração misturada com respiração, corações batendo em ritmos acelerados. 

Os beijos começaram novamente, mas desta vez sem dono ou destino. Gumer beijava o pescoço de Firefy enquanto sua mão acariciava a nuca de Glomme; Firefy virando a cabeça para encontrar os lábios de Ártemis novamente; Glomme mordiscava o ombro de Gumer  de Gumer enquanto suas mãos encontravam a cintura de Ártemis. Não havia mais hesitação, apenas movimento constante e toques exploratórios.

O mundo ao redor desapareceu — as luzes, a música, a multidão — tudo se fundiu em um borrão distante. Tudo o que importava eram as sensações imediatas: o sabor da pele salgada, o calor das palmas das mãos, o som da respiração ofegante, o cheiro misturado de suor, perfume e desejo.

Quando finalmente se separaram, minutos ou horas depois, estavam todos desgrenhados, ofegantes e com os lábios inchados de beijos. Os quatro trocaram olhares — não de vergonha, mas de entendimento silencioso, ali souberam que aquilo era apenas o começo. Algo profundo tinha mudado entre eles, uma conexão forjada naquele momento de pura e incontestável verdade.


Enquanto o riso e a música se misturavam nas ruas de Michilli, o coração do festival — a praça central — começava a mudar de tom. O brilho das luzes parecia oscilar, e o ar ficou denso, pesado, como se o calor do dia tivesse se tornado espesso demais para respirar. Muitos já haviam ido embora: professores exaustos levando filhos pequenos, pais recolhendo famílias inteiras antes da madrugada cair. Mas quem ainda estava ali sentia algo estranho — um incômodo sutil, difícil de explicar. Até mesmo os mais distraídos pararam por um instante, inquietos sem saber o porquê. Foi nesse silêncio tenso que tudo aconteceu.

Um grito cortou o som da multidão. Uma garota foi arremessada contra o chão, o corpo deslizando pelas pedras do calçamento como se uma força invisível a tivesse empurrado. O som da queda cortou o barulho da música. As pessoas ao redor recuaram de susto, e o silêncio virou caos. O corpo dela se contorcia, os dedos se dobrando num espasmo, o rosto distorcido de dor. O irmão dela, um rapaz de cabelos castanho-escuros e olhar atônito, correu até ela, ajoelhando-se ao lado do corpo que se contorcia em espasmos.

— Marry! — a voz dele ecoou entre a multidão. — Marry, olha pra mim!

Mas ela não respondia. As costas arqueavam num movimento violento, os dedos cravando no chão, a respiração curta, rasgada. E um som escapava da garganta dela — primeiro um murmúrio rouco, depois algo mais grave, mais dissonante, impossível de identificar como humano. As pupilas se moviam como se buscassem algo dentro do próprio crânio, os olhos se revirando até que um brilho avermelhado começou a pulsar dentro deles — um vermelho intenso, vivo, quase líquido. O irmão dela tentava segurá-la, chamando seu nome entre soluços, mas Marry não o escutava mais.

Ela gritou. Um grito que partiu o ar em vibrações, um trovão contínuo que saiu de dentro dela como um rasgo. O poder de manipulação sonora de Marry havia se libertado sozinho — e, por alguns segundos, ela não era mais dona de si. O som varreu a praça, atravessando corpos, fazendo sangue escorrer pelos ouvidos de quem estava próximo. Pais, professores, jovens — todos se jogaram no chão, tapando a cabeça, tentando sobreviver à onda invisível que vibrava seus ossos. O irmão dela desabou de costas no chão, o nariz sangrando, os olhos arregalados pelo terror.

O grito só cessou quando o corpo de Marry desabou — como se a energia tivesse sido expelida por completo. Ela desmaiou mole sobre as pernas do irmão, o brilho desaparecendo dos olhos como uma chama apagada. O peito subindo e descendo em respirações fracas, até que finalmente apagou.

O pânico tomou conta do centro. Alguém gritou por ajuda, outros correram em busca de socorro. O ar vibrou por um instante, e portais mágicos começaram a se abrir no meio do caos — círculos de luz azulada que giravam e expandiam no ar, lançando faíscas sobre o chão. Os primeiros enfermeiros surgiram dali, atravessando os portais com passos rápidos, conjurando feixes de energia curativa e tentando estabilizá-la enquanto outros se ajoelhavam para recolher as vítimas caídas. O som dos paramédicos cortava o murmúrio caótico: ordens rápidas, sirenes se aproximando, luzes piscando em vermelho e azul.

Marry foi colocada em uma maca, o corpo mole, a cabeça tombada para o lado. O irmão dela foi levado junto, em outra ambulância que atravessou o círculo de luz; as mãos tremiam sem controle enquanto o veículo desaparecia dentro do portal, engolido pelo brilho que se dissipou em silêncio. 

E mesmo assim, Michilli não parou. O festival continuou. A música voltou aos poucos, como se tentasse esconder o que acabara de acontecer. Os fogos voltaram a subir, e as pessoas que não tinham visto o centro se encheram de riso outra vez, fingindo que nada tinha mudado. Mas no meio de tudo aquilo, entre os sons e as cores, havia um medo novo — discreto, latejando no ar, esperando a próxima nota errada para começar tudo de novo.

Só os mais atentos perceberam o detalhe inquietante: o ponto exato onde ela caiu ficou escuro, o chão levemente rachado. Algo na garota foi quase arrancado, quase expulso, mas não completamente. O chão ao redor ficou rachado, as bordas queimadas, e uma névoa clara, translúcida, escapou do corpo dela, flutuando por alguns segundos antes de sumir entre o ar quente e as luzes da praça.

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