Volume 1 – Arco 1
Capítulo 14: A Primeira Lâmina - Parte 1
O internato parecia ter perdido o ritmo natural depois do que aconteceu. Os corredores, antes sempre barulhentos de risadas, zoeiras e discussões, agora respiravam mais devagar, como se a própria escola tivesse sido forçada a engolir o silêncio pesado da tragédia. Alunos se arrastavam em grupos pequenos, falando baixo, alguns cochichando com olhares assustados, outros simplesmente evitando o assunto — mas todos sabiam que era impossível esquecer a cena, impossível apagar da cabeça o sangue respingado, o estalo seco da mandíbula se quebrando, e os gritos desesperados que ecoaram pela fortaleza.
O boato corria como fogo em mato seco: alguém fez isso com ele. Não era colapso, não era acidente. Havia mão escondida, nome que ninguém ousava pronunciar. Uns culpavam rivais secretos, outros sussurravam sobre professores. Mas não havia coragem suficiente para dar nome ao que aconteceu, só medo.
Na ala médica, o ar era outro. As paredes brancas refletiam uma luz fria e constante, paredes nuas devolvendo cada reflexo. O cheiro forte de antisséptico grudava nas narinas, misturado ao leve zumbido dos aparelhos e ao som lento e arrastado da respiração mecânica. Era um silêncio que doía.
Na maca, Gumer repousava. Tubos desciam pelo braço e pelo nariz, sensores grudados no peito que subia e descia com dificuldade, como se cada inspiração fosse roubada do fundo de um poço. O rosto dele estava quase irreconhecível, parcialmente encoberto por faixas grossas e curativos amarelados nas bordas, mas ainda assim dava para ver o quanto a carne tinha sido destruída. Só o fato de ainda estar respirando parecia um milagre violento.
Ao redor da cama, os quatro amigos se mantinham parados. Ninguém ousava quebrar o silêncio. Firefy segurava os dedos dele com as mãos pequenas, os olhos brilhando como se quisesse chorar, mas ela não soltava lágrima nenhuma, como se tivesse medo que se permitisse uma, viria uma enxurrada impossível de controlar. Glomme estava imóvel, pálido, os punhos cerrados nos bolsos, com as orelhas vermelhas de tanto conter o choro. Trrira estava encostada no canto da parede, os braços cruzados sobre a barriga, tentando parecer forte, mas a expressão denunciava o aperto, como se o estômago dela ainda revirasse cada vez que lembrava da cena. Ártemis, diferente deles, encarava fixamente o corpo na maca com o cenho franzido e os lábios comprimidos, quase sem piscar, como quem não aceitava aquilo de jeito nenhum.
Do lado deles, Anaru se encolhia na cama ao lado, mordendo o lábio até doer. O rancor latejava e ela os xingava mentalmente, eles se curvavam para Gumer, enquanto ela apodrecia esquecida no mesmo quarto, ainda mastigando o próprio trauma sozinha. O contraste entre o carinho deles e a solidão dela apertava seu peito, gerando um misto de raiva e tristeza.
Quase dez da noite. O relógio de parede batia lento, arrastado, cada tic-tac soando alto demais naquele silêncio. A decisão já estava tomada: Gumer seria transferido na manha seguinte para receber tratamentos mais avançados, capazes de restaurar seu rosto por completo sem deixar marcas permanentes.
Ainda assim, por trás dessa justificativa oficial, entre os professores, o medo abafado. A mandíbula dele não tinha se quebrado por acidente: parecera arrancada por dentro, como se algo tivesse usado o corpo dele de dentro para fora. E se acontecesse de novo? E se não acontecer só com ele? O risco de mais alunos sofrerem o mesmo ataque silencioso e inexplicável era um fantasma rondando cada sala de aula.
Por isso, junto da transferência, viriam semanas de análises, exames, estudos. O corpo de Gumer seria observado em cada detalhe, cada traço de energia mágica dissecado como nunca antes. Era estranho, misterioso e incômodo demais para ser deixado de lado. A escola inteira parecia suspensa nesse medo coletivo: ninguém sabia explicar, ninguém sabia se era seguro, e ninguém sabia o que realmente havia atacado um dos seus melhores alunos.
Duas enfermeiras estavam de costas, trocando poucas palavras baixas. Uma delas falava sobre os remédios que deveriam ser aplicados, enquanto a outra apenas concordava com movimentos curtos de cabeça, segurando a prancheta contra o peito. No canto, perto da porta, os bambis — Firefy, Glomme, Trrira e Ártemis — se encolhiam no próprio silêncio, tremendo de ansiedade, o coração dos quatro batendo como se fosse explodir no peito.
Foi então que, sem aviso, O monitor guinchou, pulando da linha regular para picos serrilhados. O som bastou para congelar todos; não era aviso, era alarme. A maca afundou — o metal gritou, como se o peso de Gumer tivesse se multiplicado de uma vez. Ele sentou de uma vez; ar invadiu os pulmões com o som úmido de quem volta da água. As pálpebras se abriram em espasmo. As íris estavam saturadas, um vermelho que pulsava como carne inflamada, quase fluorescente, furioso, pulsando como brasa viva... Não havia reconhecimento ali, não era humano, não era o mesmo garoto que eles conheciam.
O salto arrancou todos um passo para trás — amigos, enfermeiras e Anaru, todos recuaram instintivamente, como se um animal selvagem tivesse acabado de ser solto dentro da enfermaria. O lençol ainda mal havia deslizado para o chão quando Gumer saltou da maca com uma força impossível, o corpo batendo contra o piso e já se impulsionando em seguida, como se nunca tivesse estado ferido. O ar se rompeu no instante em que Gumer fechou as mãos nos pescoços delas e ergueu as duas como farrapos. O peso delas não fez o braço tremer. As duas mulheres se debatiam desesperadas, as pernas chutando o vazio em espasmos descoordenados, os braços tentando arrancar as mãos dele sem conseguir sequer movê-las um milímetro. O rosto das duas ficou rapidamente vermelho, depois arroxeado, os olhos em pânico absoluto enquanto lágrimas escorriam, misturando-se ao suor e ao fio de saliva que escapava das bocas abertas em busca de ar.
O estômago de Anaru se contraiu e ela quase prendeu a respiração ao ver Gumer atacar as enfermeiras. Ela se encolheu na cama, os ombros tremendo enquanto puxava o lençol até o queixo. Os olhos dela se mexiam rapidamente, seguindo cada movimento de Gumer.
O silêncio pesado de segundos atrás foi rasgado pelo desespero cru — Trrira tapou a boca com as duas mãos, os olhos arregalados e o corpo inteiro recuando até encostar na parede, perto a porta, como se não houvesse mais chão sob os pés. Firefy chorou de imediato, as asas tremendo em pânico enquanto sua voz engasgava, e Glomme, num impulso desesperado, gritou o nome do amigo, a voz tão quebrada que saiu arrastada.
Ártemis, por outro lado, não conseguiu gritar — o choque era tanto que ela apenas ficou imóvel, os punhos cerrados com tanta força que as unhas se cravaram na palma, o maxilar travado, o peito subindo e descendo com violência. Ela sabia que aquele olhar vermelho e frio que queimava nos olhos dele não pertencia mais ao Gumer que conhecia, e isso doía mais do que o próprio horror de ver duas mulheres agonizando penduradas como troféus em suas mãos.
Sem qualquer aviso, largou as duas contra o chão num só gesto. O estrondo fez o piso vibrar. Os corpos delas desabaram sem resistência, contorcendo-se uma vez antes de ficarem imóveis, inconscientes, como bonecas descartadas. O silêncio que se seguiu durou apenas o suficiente para que os corações dos presentes disparassem em uníssono, porque Gumer não hesitou nem por um segundo — seus pés bateram contra o chão com um estrondo seco e, num piscar de olhos, ele correu em direção a Ártemis e Trrira.
O instinto de autopreservação delas tentou disparar, fazendo-as recuar, mas cada passo para trás era inútil diante da velocidade e da força que emanava dele. O Gumer avançou como um trovão, os braços e o corpo batendo com força total sobre Ártemis e Trrira, colidindo com elas com tanta violência que a parede atrás cedeu no mesmo instante — o gesso e o reboco se estilhaçaram, voando em poeira e pedaços pelo corredor. Num único impulso, os três caíram pesadamente no chão do lado de fora, imóveis juntos sobre os destroços, o impacto fez a poeira subir em nuvens e os ossos rangeram com a força da colisão. O som da parede quebrando ainda ecoava, misturado aos gemidos e tosses das meninas, enquanto Gumer se erguia devagar diante delas, os olhos dele vermelhos queimando com fúria, observando o caos que acabara de criar.
O lado de dentro da enfermaria, Firefy e Glomme pararam, o pânico estampado nos rostos. Firefy não conseguia tirar os olhos do buraco na parede, sentindo a adrenalina e o medo queimarem o peito, o coração acelerando de forma descontrolada. No instante seguinte, Anaru deslizou do lençol em que estava encolhida, os olhos fixos em Gumer se levantando no meio da poeira. Sem pensar duas vezes, abriu suas asas mágicas lentamente — a translucidez mística que as asas exalavam tomou conta de seu corpo, se tornando praticamente invisível. Num instante, seu corpo desapareceu da visão, sumindo completamente, como se tivesse se fundido ao próprio ambiente.
Diferente de Glomme que varria a sala com os olhos, procurando qualquer objeto, qualquer remédio ou ferramenta que pudesse deter aquilo antes que se tornasse pior. Ate encontrar um frasco de sedativo em uma das bancadas no fundo da enfermaria, e num impulso, ele sussurrou alto demais:
— Firefy, o sedativo no armário... — a voz cortou o ar pesado.
Foi nesse instante que o silêncio morreu. O som grave dos passos de Gumer ecoou de novo pela cratera aberta na parede, o corpo surgindo na nuvem de poeira como uma sombra sólida e monstruosa. Ele voltou a passar pelo vão quebrado, os olhos brilhando. E agora seu olhar estava cravado diretamente em Firefy e Glomme, como se eles fossem os próximos alvos inevitáveis.
Mas Glomme não hesitou nem por um instante; os olhos arregalados, o coração disparado, ele se lançou em direção à bancada, tentando alcançar o sedativo como se fosse a única coisa capaz de salvar a própria vida. Cada passo era um risco, cada movimento observado com precisão quase sobrenatural por Gumer, que parecia absorver cada som, cada gesto, antecipando tudo antes mesmo de acontecer.
Num instante, sem qualquer aviso, Gumer surgiu atrás dele, tão rápido que parecia impossível. As mãos do monstro agarraram com força a parte de trás da cabeça de Glomme, os dedos se enroscando brutalmente nos cabelos. Glomme sentiu o mundo girar quando Gumer girou o corpo, forçando-o contra a parede atrás deles. Num só impulso, martelou o rosto dele no concreto. O primeiro impacto abriu a testa em uma fissura que escorreu sangue grosso, o segundo quebrou o nariz de lado com um estalo molhado, e o terceiro já espalhou jatos de sangue que pintaram o concreto e respingaram de volta nos dois. Mas ele não parou. Os lábios de Gumer se retorceram num sorriso alucinado, dentes à mostra, enquanto continuava a martelar a cabeça de Glomme de forma rápida, repetida, insana, batidas cada vez mais próximas, cada vez mais frenéticas, como se quisesse enterrar o rosto inteiro dele dentro da parede.
O rosto de Glomme se desmanchava em camadas — a pele rasgada em tiras, o nariz achatado até virar polpa, o olho inchando e depois afundando sob a pressão — e Gumer ria baixo, um riso rouco que escapava entre os dentes, cada batida mais rápida que a anterior, como uma marreta enlouquecida. Quando por fim soltou, o corpo de Glomme escorregou para o chão sem força alguma, a cabeça inclinada para o lado, irreconhecível, o rosto completamente ensanguentado com carne aberta e ossos triturado, e o sangue se espalhando em ondas rápidas pelo piso até alcançar os pés de Firefy, que tremia paralisada alguns passos adiante.
Gumer virou o rosto lentamente em direção a ela, o sorriso ainda aberto, respingado de sangue fresco, os dentes manchados de vermelho como se tivesse acabado de morder a própria presa.
Firefy gritou o nome do amigo, mas a voz dela saiu fina, quebrada, quase um chiado, o corpo trêmulo demais para se mover. Ela recuou instintivamente, ergueu as asas, tentando usar o voo por cima para alcançar o sedativo, o corpo pequeno e frágil pairando entre a parede quebrada e o caos do chão ensanguentado. Mas Gumer era mais rápido que qualquer pensamento humano: com um movimento certeiro, agarrou a perna de Firefy no ar e girou o corpo, chicoteando-a contra a parede. O impacto rachou em seco: o crânio bateu primeiro, depois as costas. O som dos ossos rachando reverberou pela enfermaria. Firefy gritou alto, mas o som foi engolido pelo estalo seco das asas dela se dobrando para trás em ângulos impossíveis; uma delas rasgou ao meio.
Mas antes que ela pudesse sequer cair, Gumer virou o próprio corpo novamente, usando a própria força descomunal para arremessá-la pelo ar, jogando-a com violência contra a parede do fundo da enfermaria. O impacto foi tão brutal que a parede explodiu com ela, fragmentando-se em estilhaços que voaram em todas as direções, poeira e detritos envolvendo Firefy enquanto ela caía para fora da enfermaria, no pátio da escola. O corpo dela rolou pelo gramado, inconsciente, as asas rasgadas e a roupa coberta de poeira, sangue e fragmentos da parede, enquanto uma nuvem de destroços e fumaça pairava ao redor.
Se você achou que isso foi pesado... respira fundo.
Porque o próximo passo não é alívio.
É queda livre.
E eu prometo: vai ser tenso. Muito tenso.
...
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