Volume 1 – Arco 1

Capítulo 13: Ossos e Conflitos - Parte 3

Fora da diretoria, o silêncio do corredor foi interrompido pelos passos rápidos de Misha, que saía com um olhar determinado e carregado de raiva. Quinn a seguiu, chamando-a com um tom frustrado.

— Ei, para onde você pensa que vai? — disse ele, a voz carregada de desespero. Ele estendeu o braço e a empurrou levemente pelo ombro. — Por favor, se entrega... É a única maneira de salvar minha família."

Misha virou-se lentamente, um sorriso irônico no rosto. De repente, ela desapareceu em um piscar de olhos, reaparecendo bem na frente de Quinn, como se tivesse se teletransportado. Seus olhos brilharam intensamente, e suas mãos emitiram uma luz opressiva que denunciava seus poderes em plena atividade.

Antes que Quinn pudesse reagir, ela o agarrou com força. Uma mão segurava sua mandíbula, a outra agarrava a gola de sua blusa. Seus pés começaram a perder o contato com o chão enquanto Misha levitava, arrastando-o consigo. O corpo de Quinn ficou tenso, os olhos arregalados em pânico, enquanto ele sentia a leveza assustadora de estar suspenso no ar, incapaz de escapar.

— Escuta bem, Quinn — disse Misha, enquanto o brilho de seus olhos parecia atravessá-lo. — Eu não vou me entregar para ninguém. Sabe por quê? Porque Veyron queria abusar de mim, e eu só fiz o que precisava para sobreviver. Não existem provas contra a família perfeita de Quinn Long, porque eu apaguei todos os rastros do corpo dele!

Ela fez uma pausa, aproximando o rosto do dele, seu tom tornando-se quase um sussurro ameaçador.

— Mas as gravações das câmeras ainda estão com seus pais, não?

Quinn, tentando recuperar o fôlego, balançou a cabeça em negação.

— Eu... Eu apaguei as gravações.

A expressão de Misha mudou de imediato. Seus olhos brilharam menos intensamente, substituídos por um olhar analítico e quase curioso. Ela o soltou suavemente, os dois descendo de volta ao chão. Quando seus pés finalmente tocaram o chão frio, Quinn respirou fundo, ainda tremendo.

Misha cruzou os braços, suas mãos e olhos voltando ao normal.

— Apagou? E por que não usou isso para me entregar? — perguntou ela, como se tentasse entender as motivações dele.

— Porque você é uma das minhas, Misha, uma caçadora... — ele disse. — E... eu gosto de você.

Misha arqueou uma sobrancelha, surpresa por um instante. Seus olhos o analisaram cuidadosamente. Ela deu um passo à frente, sua voz carregada de desconfiança.

 — Eu te lembro a Icegren, não é? — ela respirou fundo antes de voltar a falar. — Quinn, eu não vou ser manipulada por você. E muito menos moldada pra se encaixar na sua visão de perfeição.

Quinn abriu a boca para responder, mas fechou novamente, incapaz de encontrar as palavras. O olhar dela queimava como uma lâmina, cortando qualquer desculpa que ele pudesse tentar formular.

— Que? Não! — ele gaguejou. — Por que você tá trazendo ela pra essa conversa? Isso não tem nada a ver! Você é uma caçadora, porque você tem potencial, Misha.

Misha inclinou levemente a cabeça, um sorriso irônico surgindo em seus lábios.

— Tem certeza? — ela perguntou, o tom de sua voz quase provocador.

Quinn, sem saber o que dizer, tentou mudar de assunto.

— A gente devia falar sobre a polícia... e sobre os Javen. Eles não vão esquecer isso tão fácil, Misha. — ele disse rapidamente, desviando o foco.

Misha revirou os olhos, impaciente, e cruzou os braços, sua postura voltando a ser desafiadora.

— É simples. Você espera. Eles vão esquecer.

— E se a polícia maga bater na minha porta? Eles vão saber de tudo, Misha!

Ela deu de ombros, a confiança transbordando em sua voz.

— Isso tá nas mãos de Nael agora. Ele vai proteger a sua família, pode acreditar.

Quinn olhou para ela, hesitante, sua voz baixa e carregada de incerteza.

— E... e se não der certo, Misha? E se eles vierem atrás de nós?

Ela soltou uma risada curta, cheia de convicção, mas seus olhos pareciam arder com algo mais intenso.

— Nael não falha, Quinn. Mas, se precisar e ele quiser, eu faço a minha parte. 

Quinn ficou ainda mais inseguro, dando um passo para trás.

— Misha... o que você tá planejando? Isso... isso não vai acabar bem.

Ela o encarou com uma confiança quase desafiadora.

— Eu só faço o que Nael manda, Quinn. E você vai ficar tranquilo. Ele vai cuidar de tudo.

Ele engoliu em seco, hesitante, mas sabia que não tinha muito espaço para argumentar. Por mais que não confiasse nela, também não queria piorar a situação. Ele apenas assentiu levemente, deixando que a tensão no ar diminuísse, tentando confiar que daria tudo certo, mas que mataria ela se sua família fosse condenada.


O ar do cemitério era pesado, quase sufocante, enquanto Trrira se agachava diante de um dos túmulos, pressionando as mãos contra o chão frio e úmido. O silêncio era rompido apenas pelo som ocasional de pedras quebradas das estátuas destruídas. Com os dedos firmemente plantados no solo, ela canalizava seus poderes, e os musgos e vinhas começavam a crescer, se espalhando como pequenos rios verdes ao redor das lápides.

Os olhos de Trrira, concentrados, brilhavam levemente enquanto ela marcava os túmulos que já havia conferido. Quando virava as costas, os túmulos ainda moviam-se de lugar, zombando de sua busca.

Ela respirou fundo, tentando conter a frustração. Suas mãos tremiam levemente, mas mesmo assim, ela as ergueu devagar. A energia fluiu como um rio, e as vinhas responderam ao seu comando, envolvendo todas as lápides, as ancorando ao chão, prendendo-as como se fossem raízes de árvores antigas. Trrira fechou os olhos e levantou uma das mãos, colocando-a em frente ao rosto.

— Rosas florescem onde há clareza, mostram a verdade com delicadeza. Seus passos guiam pelo coração, um jardim eterno de pura visão... — recitou para si mesma, como um feitiço.

Quando seus olhos brilharam em um tom vibrante de verde, uma pequena rosa cor de rosa nasceu em sua palma. Ela abriu um leve sorriso, colocando a flor no chão. A rosa começou a se multiplicar, formando uma linha viva que se estendia lentamente, serpenteando em direção à borda do cemitério. 

Sem perder mais tempo, Trrira seguiu as flores. Pulou a cerca enferrujada com agilidade, as botas mal tocando o solo antes de se lançar novamente em direção à trilha. As rosas guiavam-na até a floresta ao lado do cemitério, onde uma única cerejeira morta, retorcida e imponente, se erguia solitária.

Ela parou diante da árvore e do túmulo que descansava sob suas raízes. "É aqui..." Trrira pensou, sentindo uma mistura de alívio e frustração. Todo aquele tempo dentro do cemitério havia sido inútil, e ela se amaldiçoou mentalmente por não ter considerado procurar do lado de fora antes.

As rosas pararam de nascer, formando um pequeno campo ao redor da lápide. Com determinação renovada, Trrira ajoelhou-se no chão, amassando as rosas, pressionando ambas suas mãos contra o solo. Seus olhos brilhando e as energias fluindo de seus dedos, fazendo com que raízes e folhas próximas começassem a se transformar. Elas se aproximaram das mãos de Trrira, se moldando rapidamente em uma pá improvisada.

Enquanto Trrira cavava, ela sentia o coração bater forte. O cemitério, agora distante, parecia observá-la, mas ela não ousava olhar para trás. Cada pedaço de terra removido era um passo mais perto de sua resposta, e nada — nem as estátuas quebradas, nem os túmulos zombeteiros — a faria desistir agora.

Ao terminar de cavar, o som das raízes e folhas empurrando a terra ecoando na floresta silenciosa. O caixão, de madeira escura e desgastada, finalmente apareceu. Trrira inclinou a cabeça para o lado, analisando-o com desconfiança.

Ela desceu no buraco, suspirou profundamente, apoiando as mãos nos quadris. Fez uma tentativa de abrir a tampa com força bruta, mas a madeira sequer cedeu.

— Como você conseguiu trancar o próprio caixão, Rowena? Isso nem faz sentido. 

Irritada, Trrira respirou fundo para se acalmar. Seus dedos começaram a brilhar levemente, acompanhados por um brilho intenso em seus olhos. Erguendo a mão direita, uma folha surgiu no ar, flutuando delicadamente, antes de começar a girar em alta velocidade, transformando-se em uma serra cortante. Trrira a guiou com precisão, com movimentos mágicos de suas mãos, a folha cortando o caixão com um som agudo e limpo. Em segundos, um buraco perfeito se fez na tampa do caixão. Ela segurou o pedaço cortado e o jogou para o lado, revelando o conteúdo sombrio do caixão.

Dentro, o esqueleto de Rowena Cinder repousava, envolto em trapos do que antes poderia ter sido um vestido. Trrira parou, sentindo um calafrio ao encarar o corpo.

— Espero que isso valha a pena, porque estou me arrependendo profundamente.

Ela começou a vasculhar dentro do caixão, tentando não pensar no que suas mãos estavam tocando. Após alguns segundos, sentiu algo sólido e frio. Com cuidado, puxou o objeto: um jarro antigo, decorado com padrões que não reconhecia.

— Um jarro? — ela si perguntou. Virou o objeto, procurando algum significado ou símbolo que pudesse explicar sua presença. — Rowena, você é mais estranha do que eu pensava.

Colocou o jarro na bolsa e voltou a vasculhar. Seus dedos tocaram algo novamente, desta vez uma superfície lisa e ligeiramente curva. Puxou o objeto e o examinou. Era uma máscara cinza-azulada, com símbolos em espirais detalhados que pareciam pulsar com energia própria.

— Interessante... — Seus olhos brilharam de curiosidade, embora não soubesse o propósito do item. Guardou a máscara cuidadosamente ao lado do jarro.

Ainda assim, sentiu que algo mais estava escondido. Enfiou seu braço mais fundo, e então encontrou a última peça: uma bola de cristal vermelho-escarlate, pequena, mas pesada. Ela ficou um momento segurando o objeto, sentindo um calor quase imperceptível emanando dele.

— Uma bola de cristal... Vermelha. — Apesar da dúvida, guardou a esfera junto com os outros itens.

Quando terminou, saiu do buraco e olhou para o caixão vazio. Com um gesto de suas mãos brilhantes, raízes e folhas começaram a empurrar a terra de volta para o buraco, cobrindo o caixão até que o solo parecesse intocado. Trrira deu uma última olhada para a área, ajustou a bolsa e começou a sair da floresta.


Minutos depois


Enquanto Trrira esperava o carro de aplicativo em uma parada de ônibus, sentada no banco de madeira desgastado, o silêncio da tarde escura envolvia o ambiente. A luz fraca do poste próximo mal iluminava a rua deserta. Ela segurava firmemente a bolsa onde havia guardado os itens retirados do túmulo, como se um instinto a avisasse de que algo estava errado.

Seus dedos tocaram o tecido da bolsa, e uma sensação gélida percorreu sua mão, subindo pelos braços até atingir sua mente. Um arrepio intenso tomou conta de seu corpo. Antes que pudesse se afastar, seus olhos começaram a brilhar em um vermelho intenso, e sua boca se abriu involuntariamente, emitindo um som baixo e rouco, como se estivesse tentando gritar, mas sem conseguir.

De repente, visões começaram a inundar sua mente. Ela viu Rowena, ainda bebê, envolta em panos escuros, com um olhar vazio, enquanto uma mulher murmurava palavras inaudíveis em um idioma antigo. As imagens mudaram rapidamente, como flashes desconexos, mostrando retratos desenhados em preto e branco nas paredes de uma sala sombria. Eram representações de adolescentes com expressões apáticas, quase fantasmagóricas.

Rowena, agora uma criança, estava diante de seus pais, que gesticulavam freneticamente enquanto apontavam para a Lua cheia que brilhava no céu. Seus lábios moviam-se rapidamente, mas o som parecia abafado, como se estivessem submersos em água.

Outra visão tomou conta: Rowena, com os olhos sangrando, sangue saindo de seus olhos e escorrendo pelo seu rosto enquanto ela olhava para as próprias mãos, trêmula. Logo, a cena mudou para um banho de sangue — Rowena estava de pé em uma espécie de ritual, o líquido vermelho envolvendo seu corpo enquanto ela permanecia imóvel, seus olhos fixos na Lua que agora parecia maior e mais brilhante.

De repente, Trrira sentiu algo mais profundo. Ela não era mais uma espectadora. Estava no corpo de Rowena. Sentia a dor nos pulsos cortados, o calor do sangue escorrendo e a fraqueza que se apoderava de seu corpo. Olhando para cima, viu a Lua de Sangue brilhando intensamente, como se a estivesse observando.

— Não... Não! — Trrira tentou gritar, mas sua voz não saía.

Com um sobressalto, Trrira acordou. Estava de volta à parada de ônibus, suada e trêmula, lágrimas escorrendo por seu rosto. Suas mãos estavam em sua cabeça, coçando freneticamente como se tentasse apagar as lembranças que ainda latejavam em sua mente.

— Isso é uma maldição... Uma maldição! — sussurrou para si mesma, tentando recuperar o fôlego.

O som de um carro se aproximando interrompeu seus pensamentos. Ela olhou para a rua, o brilho dos faróis iluminando seu rosto. A sensação estranha na bolsa havia desaparecido, mas as visões permaneceram gravadas em sua mente, como um eco sombrio do que havia descoberto.

Ela respirou fundo, tentando se recompor antes de entrar no carro, mas a sensação de que algo estava profundamente errado não a abandonou.



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