Volume 1 – Arco 1

Capítulo 13: Elo Quebrado

Quando chegaram em frente aos banheiros, Ártemis estava encostada na parede, braços cruzados e batendo o pé no chão com impaciência, o olhar vagando pelo corredor quase vazio, enquanto Trrira se trancava lá dentro, reclamando de dor de barriga. Firefy e Glomme, meio sem jeito, acabaram entrando nos banheiros para mijar, as risadas baixas ecoando entre os azulejos úmidos, e assim restaram só Gumer e Ártemis na frente das portas, um silêncio confortável pairando por alguns segundos antes dela decidir quebrá-lo com aquele jeito direto e provocativo dela.

— Ei… essa escola é sempre assim, parada? Aqui não tem festa, não? — perguntou ela, inclinando a cabeça, o tom carregado de sarcasmo, mas com uma curiosidade genuína no fundo. — Porque, sério, até agora só vi briga de idiotas, gente reclamando e corredor vazio. Eu quero bagunça de verdade, quero música estourando, luz piscando na cara de todo mundo, tipo... já vi uns gatinhos por aí que estão só pedindo pra serem beijados, sabe? — ela mordeu o lábio inferior, encarando ele com aquele olhar que parecia medir o quanto ele toparia embarcar na loucura.

Gumer soltou uma risada rouca, passando a mão pela nuca e sentindo os músculos relaxarem enquanto se encostava na parede. O corpo parecia se lembrar automaticamente do caos divertido do ano anterior, como se a memória daquele tempo pudesse trazer calor ao corredor frio e silencioso.

— Tem as festas dos jogos, sempre rola em junho e julho... — respondeu, o olhar indo para o teto como quem rememorava algo intenso. — E, olha, é outra realidade. A escola fica realmente interessante. Ano passado foi insano, de verdade, uma das melhores coisas que essa escola já fez. O internato inteiro se transforma em outra coisa. Muita música estourando pelos corredores, gente dançando em cima das mesas, todo mundo sem uniforme. Eu juro, Ártemis, por algumas horas dá pra acreditar que a vida aqui é boa.

Ele fez uma pausa, dando um meio sorriso cheio de malícia, fixando o olhar nela novamente, e acrescentou com um tom mais baixo, quase conspiratório.

— E sim, é permitido beber. Pelo menos no ano passado, foi. A Marla e o Daeros estavam lá, vigiando mas fingindo não ver nada, só garantindo que ninguém passasse do ponto. Eles usavam umas poções e poderes de restauração pra curar qualquer merda antes do amanhecer, pra não ter adolescente bêbado morrendo de ressaca ou engravidando por acidente. É quase como se dissessem: ‘se vão pecar, que seja sob nossa supervisão’. Meio doentio, meio genial. Eles deixam a gente quebrar as regras, mas garantem que ninguém morra tentando. 

Ártemis riu, jogando o cabelo pro lado com um gesto teatral, o canto da boca se curvando num sorriso lento, quase perigoso, como quem acabava de receber a notícia que queria.

— Então quer dizer que essa escola careta tem um lado sujo, é isso? — ela provocou, os olhos estreitando-se de prazer pela descoberta. — Festa, bebida, pegação liberada, professor fingindo que não vê. Eu sabia. Sabia que ninguém aguentava tanto tempo fingindo santidade. Agora sim, começou a ficar interessante.

Gumer inclinou-se um pouco mais perto, abaixando o tom de voz, o sorriso crescendo ao ver a atenção dela presa nele.

— Exatamente isso, gata — falou ele, os olhos faiscando com diversão. — As festas são o espelho de todo mundo aqui. Os santos viram demônios, os certinhos choram bêbados no canto e os valentões acabam abraçando quem odiavam no dia anterior. É lindo, bagunçado, perigoso. As máscaras caem. E, no final, ninguém lembra metade do que fez — mas todo mundo sai mudado. 

Ártemis ergueu uma sobrancelha, apertando os lábios num meio sorriso que beirava a provocação.

— Caralho, então essa escola serve pra alguma coisa... Além de colocar todo mundo pra se matar nos treinos, né? — a respiração de Ártemis acelerou de leve, não de ansiedade, mas de excitação com a expectativa. Ela ajeitou o cabelo atrás da orelha e riu, um riso baixo e debochado. — Já tô imaginando a diversão. E quando essa porra chegar, eu quero estar no centro, fazendo o caos girar em volta de mim. 

Gumer a olhou de cima a baixo, ainda sorrindo, mas agora com um certo respeito no olhar, como se reconhecesse no tom dela a mesma fome que ele sentia.

— Pra ser sincero... eu nunca tive coragem de entrar no centro da bagunça. Sempre achei mais seguro assistir de longe, deixar o caos pra quem sabia dançar com ele. Mas se você estiver lá, Ártemis... acho que eu finalmente quero ver como é. Talvez eu queira me perder junto com você. 

Ele riu alto dessa vez, balançando a cabeça, os ombros subindo num gesto de rendição. Os olhos dele permaneciam grudados nela, absorvendo cada gesto, cada curva do sorriso, como se já conseguissem antecipar a diversão que ela prometia.

À esquerda deles, o som abafado de Firefy e Glomme preenchia o banheiro, enquanto Trrira permanecia trancada na cabine. No corredor, só sobrava a tensão carregada entre Ártemis e Gumer, uma eletricidade quase palpável, como se a ideia da festa tivesse acendido uma faísca perigosa entre eles.

As vozes de Ártemis e Gumer ficavam distantes enquanto o corredor à frente se estendia. Virando à esquerda logo após os banheiros, passando pelos armários alinhados à parede, as portas batendo levemente ao abrir e fechar com a brisa. Dobrando-se a esquina seguinte, revelando outro corredor mais estreito, onde algumas portas de salas fechadas marcavam o ritmo do piso polido. Um grupo de alunos apressados cruzava rapidamente, mochilas balançando nos ombros, e logo desapareciam pelo vão da escada à direita.

Seguindo adiante, o corredor se alongava, e uma última curva à esquerda levava a um trecho reto, sem portas nem janelas, apenas a parede cinza à frente. Sem nada. Quieta demais. Um silêncio quase vivo vibrava ali, e quem olhasse fundo o suficiente perceberia — a superfície ondulava levemente, como um reflexo torto em água parada. Então veio o som. Um estalo oco, rápido, que reverberou pelo chão e fez o ar tremer. Da parede, uma onda translúcida escapou, estendendo-se com violência silenciosa, percorrendo o corredor como uma caçada invisível.

Ela avançava em disparada, atravessando esquinas, passando pelas portas de salas de aulas, roçando contra maçanetas, como se testasse cada entrada mas fosse repelida. O corredor era percorrido outra vez, agora vazio. A onda virava de novo, dobrando cantos, insistente, procurando a primeira presença em vista.

E então, ao retomar o caminho, as vozes voltaram. Ártemis. Gumer. Mais próximos agora. O poder avançava, veloz, como se tivesse farejado um alvo. No instante em que virou a última esquina, o corredor se abriu, revelando o grupo diante dos banheiros. 

Gumer, distraído, deu um passo à frente — gesto simples, instintivo, virando-se para Ártemis. Sem nem imaginar. Foi esse detalhe que o condenou. Ele se tornou o alvo mais próximo.

Nesse instante, o tempo quebrou. A colisão foi brutal, invisível, atravessou sua cintura com violência. O corpo de Gumer tombou como se tivesse sido empurrado por uma força brutal, mas sem mão alguma para empurrá-lo. Ele caiu de lado, os olhos se apertando em dor, sufocando em agonia, como se o próprio ar fosse arrancado dos pulmões.

Ártemis o agarrou pelo braço com força, tentando levantá-lo, mas ele se contorcia com espasmos, o rosto endurecido numa dor muda. Ela caiu de joelhos ao lado dele, puxando seu ombro com desespero, a voz falhando em tentativas de chamar por ele. Firefy avançou logo atrás, as asas tremendo de pavor enquanto tentava falar, mas a voz falhava. As mãos trêmulas tentando alcançar qualquer parte dele que pudesse segurar.

Trrira ficou imóvel ao sair do banheiro, paralisada, sem conseguir reagir, os olhos arregalados como se assistisse a uma cena impossível de compreender. Glomme se lançou rapidamente, se agachando imediatamente, as mãos trêmulas tentando segurar a cabeça do amigo.

Os olhares se cruzavam em desespero, o silêncio pesado cortado apenas pelo corpo de Gumer batendo contra o piso frio. O tempo parecia correr devagar, cada segundo mais denso que o anterior. E ali, naquele corredor anônimo, começava o fim.

Ártemis se levantou do chão tão rápido que chegou a tropeçar no próprio pé, os olhos arregalados e o peito arfando como se o ar tivesse sumido. Ela arrancou as mãos dos ombros de Gumer, afastando-se e correndo pelos corredores, gritando até a voz falhar que ele precisava de ajuda imediatamente, que algo estava terrivelmente errado.

Firefy permanecia ajoelhada ao lado de Gumer, as asas vibrando de nervoso e pânico. Os olhos dela brilhavam em um rosa cintilante, as mãos reluzindo como tochas ao passarem desesperadas pelo peito e pescoço de Gumer, tentando puxar vida de qualquer canto. O suor descia pela testa dela em gotas grossas, mas não apagava o brilho intenso de sua magia. Glomme, por outro lado, mal conseguia sustentar o peso da cabeça de Gumer, o rosto todo manchado de lágrimas, os soluços cortando a garganta. O híbrido apertava os dentes, tremendo dos pés à cabeça, e mesmo assim não conseguia soltar, como se tivesse medo de que largar fosse o mesmo que condenar o amigo.

De repente, o impossível aconteceu. Os olhos de Gumer se abriram e as pupilas dele começaram a brilhar em tons profundos de vermelho, como brasas vivas. Era como se a íris se mexesse sozinha, girando e pulsando em padrões anormais. Glomme arregalou os olhos e quase deixou a cabeça cair, o coração disparando. Firefy recuou meio segundo, mas manteve as mãos sobre o corpo dele, mesmo que seus lábios tremessem de medo.

O silêncio duro que pairou durou apenas um instante, quebrado por um estalo seco, grotesco e brutal, o barulho ecoou pelo lugar. A mandíbula de Gumer quebrou como vidro sob pressão, deslocando-se para o lado de maneira grotesca. O osso saltou para fora, rasgando a carne, enquanto os dentes ficaram expostos, pendendo de um ângulo antinatural. Um som gorgolejante escapou da garganta dele, sufocado, quase humano, mas distorcido como se algo estivesse tentando falar de dentro do corpo.

O sangue jorrou com violência, respingando em Firefy e Glomme. O líquido quente e espesso atingiu o rosto dos dois, escorrendo pelos olhos, pela boca, pelo queixo. Firefy deu um grito agudo e se arrastou para trás, as asas tremendo em desespero. Glomme, encharcado, ficou paralisado por alguns segundos, até soltar um berro dilacerante, deixando a cabeça do amigo cair no chão por puro choque.

Atrás, Trrira, que havia se aproximado com passos cautelosos, não aguentou a visão. Ela gritou de pavor, o corpo recuando tão rápido que tropeçou nas próprias pernas e caiu no chão com as mãos sujas de poeira, os olhos arregalados fixos naquela cena de terror. Nunca tinha visto nada parecido, nem em pesadelos.

O mundo ao redor sumiu. O corredor, o eco distante de passos, a vida além daquela cena desapareceram. Restava apenas o corpo convulsionando de Gumer, o sangue quente espirrando, e a sensação de que o impossível estava acontecendo bem diante dos olhos deles — e ninguém, absolutamente ninguém, estava pronto para isso.

Alunos surgiram correndo, gritos cortaram o corredor, e o pânico tomou conta de cada olhar. Firefy, Ártemis, Glomme e Trrira choravam sem parar, desesperados, tentando alcançá-lo como se pudessem puxar a vida de volta com as mãos.

Professores chegaram, diretores gritaram ordens, enfermeiros e cirurgiões atropelando-se uns aos outros, todos tentando controlar o caos que se espalhava. Cada gesto parecia insuficiente diante do desastre — o corredor era um pesadelo vivo, uma ferida aberta que queimava nos olhos de todos, gravando um trauma impossível de apagar da memória.

Ele foi carregado às pressas pra enfermaria cirúrgica, enquanto o choro ecoava nos corredores. Depois de estabilizado, transferiram-no para repouso, mas a esperança durou pouco. As enfermeiras apareceram com a notícia que ninguém queria ouvir: ele sobrevivera, mas não permaneceria. Gumer seria enviado para casa, arrancado da escola, dos amigos, de tudo que fazia parte do seu mundo.

Do lado de fora, os quatro Bambis se amontoavam num abraço tenso, silencioso, as lágrimas caindo sem freio enquanto absorviam o golpe da notícia. O vazio se instalava entre eles como um monstro silencioso, devorando cada expectativa, cada momento futuro que poderiam compartilhar com Gumer. Talvez ele voltasse algum dia... mas por ora, a ausência era absoluta, e nada no mundo deles parecia capaz de preencher o buraco que sua partida deixaria.

Mas havia algo que ninguém podia imaginar... era que aquilo que havia entrado em Gumer. A energia translúcida, invisível, imprevisível, estava prestes a explodir — e ninguém estaria pronto para o que se aproximava. Pulsando dentro dele. Iria despertar, e o impacto seria sentido em cada corredor, cada sala, cada olhar. Todos iriam sentir, de um jeito que ninguém esqueceria.

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