Volume 1 – Arco 1

Capítulo 12: Ossos e Conflitos - Parte 2

Trrira continuava a caminhar pelo cemitério, seus passos ligeiros afundando levemente no solo úmido. A névoa espessa parecia se mover como um manto vivo ao seu redor, obscurecendo o que estava à frente e deixando apenas silhuetas sombrias das lápides em sua visão. Cada nova rajada de vento frio trazia uma sensação de inquietação crescente, como se algo – ou alguém – estivesse vigiando-a. Sua respiração tornou-se mais rápida, criando pequenas nuvens no ar gelado.

Ela parou de repente. O som de algo se movendo atrás dela fez seus músculos se retesarem, e seu coração bateu mais forte. Decidida a não ser pega de surpresa, Trrira se abaixou, tocando a terra com um das mãos. Fechou os olhos por um momento, concentrando-se em seus poderes. Sua mão direito começou a brilhar com um luz em tons de verde. Do chão, algo começou a brotar – algo vivo e pulsante. Um espinho enorme entrelaçado com musgo e vinhas. Essas vinhas se enrolaram firmemente em seu braço, apertando-o como se estivesse tentando se fundir com ela. Apesar do desconforto, ela segurou o grande espinho com firmeza, semelhante a uma espada, sentindo a força da natureza pulsar através da lâmina viva. 

Se levantando devagar, com a espada em mãos, Trrira voltou a caminhar, seus olhos analisando cuidadosamente as lápides que se espalhavam em desordem ao seu redor. Ela procurava o nome de Rowena Cinder, mas até agora nada parecia corresponder. O cemitério parecia brincar com ela, como se as lápides estivessem mudando de lugar enquanto ela desviava o olhar. Cada passo aumentava sua sensação de que algo a observava das sombras.

De repente, um som a fez parar novamente – um rangido seco, como pedra sendo arrastada contra pedra. Seu corpo inteiro ficou tenso enquanto ela girava para o lado, tentando localizar a origem do barulho. Uma lápide à sua frente parecia fora de lugar, inclinada de forma irregular, como se alguém a tivesse movido recentemente. Trrira avançou com cautela, sua espada de espinho pronta para qualquer coisa.

Ela observou de perto a base da lápide deslocada, seu olhar afiado detectando marcas no solo, evidências de movimento. "Não é só o cemitério... está se movendo, se ajustando. Quer me confundir." ela pensou, um misto de fascínio e medo percorrendo-a. Apesar da tensão, um sorriso sutil surgiu em seus lábios. Se o cemitério reagia à sua presença, isso significava que ela estava chegando perto do que procurava.

"Rowena. Eles estão tentando esconder você de mim, não estão? Talvez porque você não queira ser encontrada. Ou porque algo está protegendo você. O que tem de tão importante em você?" sua garganta se apertou ao pensar na possibilidade de que o perigo não vinha apenas do lugar, mas do que ela buscava.

Enquanto continuava caminhando, um arrepio percorreu sua espinha. O som de passos atrás dela ecoou no silêncio melancólico, firmes e deliberados. Ela parou de imediato, seu coração batendo com força. As vinhas da espada apertaram ainda mais seu braço, como se sentissem o perigo iminente. 

"Se eu olhar para trás agora, posso estar olhando nos olhos de algo que não quero ver." O pensamento era uma mistura de desafio e medo, e ela sentiu a garganta apertar. Ela respirou fundo, forçando os ombros a relaxarem um pouco. "Eu consigo lutar. Eu vim aqui para isso. Não importa o que seja, eu luto."

Ainda assim, seus pés pareciam presos ao chão, e ela percebeu que suas pernas tremiam levemente. Com um esforço consciente, Trrira limpou a mão suada na lateral da calça e ajustou o peso para um dos pés, preparando-se para girar. Ela inclinou o queixo levemente para baixo, os olhos focados na espada de espinho.

Ela começou a virar o corpo, milímetro por milímetro, o medo correndo por suas veias como gelo. "Seja o que for, eu estou pronta. Eu tenho que estar pronta." Trrira se preparou, cada músculo tenso, como uma corda prestes a estourar. Ela sabia que não havia mais volta.

Ao virar, Trrira sentiu seu coração disparar ao perceber a estátua do anjo deslocada, agora voltada diretamente para ela. Seus olhos, arregalados pelo medo, começaram a arder enquanto segurava as lágrimas que ameaçavam cair. "Não pode ser real." pensou. Seu corpo tremendo, seus músculos paralisados pelo terror. Mas antes que pudesse processar o que via, a estátua se moveu, com uma velocidade sobrenatural, avançando diretamente em sua direção.

O som da pedra raspando contra o chão ecoou pelo cemitério, e Trrira soltou um grito involuntário, sua mente gritando "Corra!", mas suas pernas recusando-se a obedecer. Ela instintivamente inclinou a espada de espinho, mas o pavor parecia ter tirado toda a força de seu corpo. No último segundo, algo dentro dela despertou – um instinto de sobrevivência, algo primal e feroz.

Com um grito de pura adrenalina, Trrira se agachou e girou em alta velocidade, o movimento tão fluido que surpreendeu até ela mesma. Usando o impulso, sua perna direita disparou para frente em um chute poderoso, acertando a estátua com uma força que ela jamais imaginara possuir. O impacto foi devastador; a estátua foi lançada pelos ares, desaparecendo na névoa espessa acima do cemitério.

Trrira de volta em posição de equilíbrio, os pés firmes no chão, a respiração descontrolada enquanto olhava para cima, tentando localizar a estátua. Tomada por uma nova onda de coragem, ela se inclinou levemente e tomou impulso. Seus pés cravaram-se no solo, e ela saltou com um poder que rachou o chão abaixo de si, atravessando a névoa como um míssil. Lá em cima, entre os vapores opacos, ela encontrou a estátua. Girando o corpo com precisão, Trrira ergueu sua espada de espinho e desferiu um golpe certeiro, que despedaçou a estátua em pedaços. Os fragmentos de pedra caíram como chuva pesada, atingindo o chão com estrondos que ecoaram pelo cemitério.

Trrira pousou no chão com os joelhos dobrados, causando um impacto que liberou uma onda de choque que desfez momentaneamente a névoa, revelando o cemitério em toda a sua desolação.  a espada firme em suas mãos, enquanto olhava para os pedaços espalhados da estátua. Sua respiração estava ofegante, e ela não podia acreditar no que havia acabado de fazer. "Isso... fui eu?", ela pensou, tentando entender o que dentro dela havia despertado.

Mas seu momento de alívio durou pouco. Quando ergueu os olhos, viu várias outras estátuas espalhadas pelo cemitério, todas voltadas em sua direção. Seus rostos de pedra, inexpressivos, pareciam ainda mais ameaçadores agora que ela sabia do que eram capazes.

"Elas estavam esperando." ela pensou, um calafrio percorrendo seu corpo.

Ela girou lentamente, seus olhos escaneando cada movimento ao redor, enquanto apertava o espinho em suas mãos. "Isso vai levar mais tempo do que eu imaginava.", pensou, agora totalmente alerta. 

As estátuas começaram a se mover, uma a uma, o som de pedra se quebrando enchendo o ar. Trrira respirou fundo, ajustou a espada em suas mãos e preparou-se para o próximo ataque. "Que venham. Eu estou pronta." ela pensou.


Na sala da diretoria, Hanvasa permaneceu sentada atrás de sua mesa, sua expressão grave e atenta enquanto observava os dois adolescentes diante dela. Ela cruzou os braços sobre a mesa, ponderando cada palavra antes de se pronunciar. A tensão estava no ar, e ela sabia que havia algo mais por trás dessa história.

— Então, vamos recapitular — disse ela, sua voz firme, mas controlada. — Misha, você está namorando alguém que Quinn não aprova e a briga foi por causa disso? Isso não faz sentido. E o que é isso de Quinn ter te enforcado e você quase usar seus poderes contra ele? Isso não parece uma briga por causa de ex. Vocês estão mentindo para mim, e eu não tolero mentiras.

Misha e Quinn se entreolharam, o desconforto evidente entre eles. Quinn desviou o olhar, mexendo as mãos nervosamente. Ele sabia que estava em uma situação difícil, mas precisava resolver aquilo de uma vez. Não havia como continuar com as mentiras.

Finalmente, Quinn se endireitou na cadeira e soltou um suspiro, tentando se controlar.

— Não foi por causa de ex. Foi por causa de uma festa que eu fiz em casa.— disse ele, a voz carregada de frustração.

Hanvasa fez um leve gesto para que ele continuasse, seus olhos fixos em Quinn, tentando entender onde ele estava querendo chegar.

Quinn olhou para Misha rapidamente antes de continuar.

— A Misha bebeu demais. Quebrou várias coisas na minha casa. Meu pai ficou muito furioso. Ele brigou comigo e disse que eu não poderia mais fazer festas. Eu fiquei irritado e fui tirar satisfação com ela. E... aí a situação saiu de controle. — Quinn se deteve por um momento, olhando para Hanvasa com uma expressão de raiva. — Ela nunca se importa com as merdas que faz. Sempre joga a culpa nós outros.

Misha se virou para Quinn, seu rosto distorcendo-se em indignação.

— Vai se foder, Quinn — retrucou ela, olhando-o com um olhar feroz. — Eu não “jogo a culpa” nos outros. Eu assumo as minhas merdas!

Hanvasa permaneceu em silêncio por um momento, observando os dois, e a tensão na sala só aumentou.

Quinn se levantou da cadeira, encarando Misha com seriedade.

— Você faz merdas, e as pessoas que pagam as consequências — ele disse, a voz cortante. — Parece que você nunca se preocupa com as repercussões.

Misha estreitou os olhos, encarando-o de volta.

— E você acha que sua família e a sua reputação estão livres de culpa? — ela provocou, sorrindo e gesticulando com raiva. 

Hanvasa ergueu as mãos, interrompendo a discussão que estava ficando mais intensa.

— Chega! — exclamou ela, a voz firme e alta. — Vocês estão aqui para resolver isso, não para despejar acusações sem fim. A situação já está complicada o suficiente sem essa briga sem fim. E agora, quero a verdade. Parem de mentir e digam o que realmente aconteceu!

Os dois se entreolharam, tensos e respirando pesadamente.

Hanvasa ficou em silêncio por um momento, processando a informação. Ela olhou para Misha, que estava quieta, com um olhar um pouco distante, mas ainda assim com um toque de desdém.

— E você, Misha? — Hanvasa perguntou, a voz séria. — O que tem a dizer sobre isso?

Misha suspirou, um ar de indiferença em sua postura, mas ela não negou o que estava sendo dito.

— É... eu bebi demais e quebrei algumas coisas... inclusive a televisão do pai dele. Eu... me alterei e causei problemas, sim. Mas eu... sinto muito, ok? — ela admitiu, sua voz baixa, mas sem arrependimento genuíno.

Hanvasa fez uma pausa, observando ambos atentamente. Ela balançou a cabeça, claramente desapontada.

— Eu não sei se devo ficar mais chateada com a falta de responsabilidade de vocês ou com o fato de que, sendo adolescentes, vocês não têm a mínima ideia do que uma atitude como essa pode causar — disse ela, a voz carregada de seriedade. — Vocês são menores de idade e não têm idade legal para consumir bebidas alcoólicas, muito menos se comportar dessa maneira. Comportamento irresponsável como o de vocês afeta não apenas a imagem de vocês, mas também a de suas famílias e da escola.

Ela se levantou, andando até a janela por um momento antes de voltar a encará-los com firmeza.

— O que aconteceu na sala de treinamento foi um reflexo disso — continuou. — O comportamento impulsivo de vocês coloca todos em risco. Não estou aqui para julgar, mas vocês precisam entender as consequências de suas ações.

Ela respirou fundo e, quando voltou a falar, sua voz ficou um pouco mais suave, mas ainda assim firme.

— Como punição, vocês farão trabalhos voluntários na escola por um mês. Será uma forma de compensar o escândalo que causaram e de aprenderem a lidar com suas atitudes de maneira mais madura. E se houver qualquer outro incidente, as consequências serão muito mais sérias.

Os dois assentiram, Quinn de maneira mais resignada, enquanto Misha deu um simples movimento de ombro, como se aquilo fosse algo fácil de lidar.

— Está resolvido então. — Hanvasa indicou a porta. — Podem ir. E lembrem-se, o que acontece aqui não fica apenas com vocês. Afeta todos ao seu redor.

Os dois se levantaram e saíram da sala, a porta se fechando atrás deles. Hanvasa permaneceu em pé, olhando para a porta por um momento, pensando sobre como a adolescência podia ser tão caótica, mas também cheia de lições importantes que eles ainda precisariam aprender.



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