Volume 1 – Arco 1

Capitulo 11: Vitória Comprada

Ninguém jamais tinha visto a Icegren cair daquele jeito. Corpo estendido no chão, joelho ralado, o olhar perdido entre o choque e a raiva silenciosa.

E aquilo bastou.

A galera ao redor não perdeu tempo — começaram a vomitar insultos e a desmerecer a Ice. Porque, claro, uma falha já era motivo suficiente pra chamarem ela de fraca.

Enquanto isso, já estavam aplaudindo a Anaru, que derrubou a Ice e virou a queridinha da galera.

Parece que a maioria só quer ver a Ice no chão mesmo. E é mais fácil odiar do que respeitar.

Mas, pra quem tá ligado, essa luta tá longe de acabar.

A queda de Icegren não era só dela.

Atrás da linha da plateia, os três se entreolharam — Quinn, Makkolb e Tiruli. Nenhum deles piscou. Nenhum deles sorriu. A derrota, ali, era uma palavra proibida.

E se tem uma coisa que esse grupo não sabe lidar — é com fraqueza. E, por um segundo, os três pararam.

— Que porra foi essa? — rosnou Quinn, se endireitando como se o chão tivesse ficado torto.

Makkolb deixou a comida cair da boca.

Tiruli franziu o cenho. Não riu. Só olhou, como quem repensa a aposta.

— Ela vai levantar, né? — murmurou.

Mas ninguém respondeu.

Ela ergueu o corpo com uma fúria contida, o joelho já dobrado, os olhos arregalados de fúria que queimava como gelo no olhar. Um filete de sangue escorria do canto da boca, mas ela nem ligava. Passou a língua nos lábios, sorrindo com aquela mistura de dor e prazer na derrota momentânea.

— Agora sim — murmurou, como quem anuncia o início da tempestade.

Anaru preparou-se com uma rapidez quase sobrenatural. Saltou em um único impulso — um salto limpo, devastador, como um disparo direto da alma. O ar se partiu ao redor dela, as asas desapareceram em pleno voo, se dissolvendo numa cintilância mágica que brilhou e sumiu em menos de um segundo. As pernas esticadas, o tronco firme, os braços preparados como lanças, os punhos cerrados, a respiração curta. Era tudo ou nada — e ela sabia disso. Ela avançava como um míssil, como se fosse capaz de atravessar qualquer coisa, até mesmo a Icegren.

Mas Icegren não recuou. Estava parada no centro do ringue, com os pés levemente afastados, joelhos dobrados, os olhos vidrados como de um predador. O corpo dela permanecia imóvel. O mundo inteiro parecia esvaziado de som e cor — só existiam as duas. A respiração de Icegren era silenciosa, precisa, os olhos semicerrados acompanhando cada detalhe do avanço inimigo.

O tempo desacelerou.

Tudo em volta perdeu a cor.

Só o som da respiração, e o pulso estrondando no fundo da cabeça.

E então, no último segundo, Icegren se moveu.

Num segundo, a caçadora deslizou pro lado, os pés raspando no chão como lâminas, desviando com precisão cirúrgica. No mesmo movimento, torceu o tronco e saltou com brutalidade, o corpo girando numa espiral de força. No auge do salto, agarrou a perna de Anaru no ar com uma das mãos — dedos firmes, punho travado — e num giro completo em pleno voo, usou o próprio impulso da adversária contra ela.

E ali, congeladas num instante de suspensão, as duas flutuaram no tempo.

Icegren girou.

E o impacto, quando veio, não foi apenas um baque — foi uma sentença.

BOOM.........

O corpo de Anaru foi lançado com brutalidade para o chão. Ela colidiu com a terra de costas, o peso inteiro do salto anterior amplificado pela queda. O chão quebrou. Uma rachadura violenta se abriu sob o corpo dela, e uma nuvem espessa de poeira subiu num círculo de destruição, engolindo as duas como fumaça de bomba.

Mas não tinha acabado.

No instante em que o corpo ainda deslizava entre fragmentos e sujeira, Icegren saltou de novo.

Mas Icegren ainda pairava no ar, o corpo esticando numa lança afiada que parecia cortar o próprio ar. Suas pernas estavam unidas, rígidas, como um projétil mortal mirando direto o corpo abatido de Anaru abaixo dela.

No instante exato em que os pés dela se chocaram contra o chão, um estrondo surdo e profundo explodiu como uma bomba silenciosa. Uma nuvem colossal de poeira e fragmentos subiu como uma onda, engolindo tudo em seu caminho. O solo tremeu, rachaduras serpenteando pelo terraço como feridas vivas, ameaçando engolir a multidão que recuava em pânico. A energia liberada não era apenas física — era uma promessa de destruição.

Passos apressados, corpos se afastando com urgência, vozes abafadas e sussurros nervosos cortados pelo som constante de rachaduras se abrindo sob seus pés.

Quinn, Makkolb e Tiruli — reunidos na borda do círculo, observavam a cena como predadores avaliando sua presa. Quinn foi o primeiro a recuar um passo, um sorriso cruel surgindo nos lábios enquanto seus olhos brilhavam com uma mistura de admiração e cálculo, reconhecendo a brutalidade da força que se manifestava diante deles.

Makkolb soltou uma risada seca, debochada, desviando o olhar do chão rachado, como quem nega a gravidade do momento.

Tiruli permaneceu imóvel, a testa franzida e os punhos cerrados com uma tensão contida. Cruzou os braços, o cenho franzido, estudando as fissuras com uma preocupação contida, a calma de quem sabe o que está por vir.

Enquanto eles se afastavam, Misha, sentada atrás do trio, observava a fumaça densa e sufocante que cobria metade do campo. Levantou-se devagar, um brilho mágico surgindo em seus olhos enquanto estendia suas mãos.

Uma onda de energia amarela emergiu de seus dedos, fluindo para frente como uma maré silenciosa, rasgando o ar com delicadeza, mas de forma implacável. A fumaça começou a se dispersar, limpando o campo daquela neblina suja.

Icegren já estava firme no solo, a postura imponente e inabalável, pernas ainda unidas como pilares de aço que sustentavam a tempestade que era sua presença. O olhar dela queimava com uma fúria selvagem, o peito arfando, cada respiração carregada de poder e determinação.

Anaru jazia caída sob a poeira que ainda flutuava no ar, seu corpo marcado e machucado, respirando com dificuldade. Entre as pedras quentes e os cacos de orgulho, a consciência de Anaru se despregava em fragmentos. Em algum lugar, alguém gritava seu nome. Mas ela só ouvia água. Como a queda no lago quando era pequena. Frio. Fundo. Escuro. As mãos tentando se apoiar para levantar, mas sem sucesso imediato. A força do golpe havia a deixado momentaneamente subjugada, uma sombra entre as nuvens de pó e terra.

Do lado de fora da nuvem de poeira, Kevin invadiu o campo num ritmo quase hesitante, passos largos e nervosos sobre o chão instável. Ele tinha visto a explosão de poeira de longe, ouvira o baque que parecia um desmoronamento — e aquilo não era mais uma luta qualquer. O pavor no rosto dele deixava isso bem claro.

Ele se aproximou rápido, os olhos arregalados varrendo o centro do ringue coberto pela poeira densa. E quando finalmente viu a imagem de Anaru caída, imóvel, começou a se formar entre a névoa de terra... Kevin congelou. O peito dele se contraiu num soluço mudo. Aquilo não era normal.

— NÃO... não, não, não... — sussurrou, se ajoelhando do lado dela. — Anaru?

A garota jazia ali, o rosto parcialmente coberto por poeira, os braços tortos. O corpo parecia todo quebrado. Kevin tocou de leve o ombro dela, depois deu um pequeno chacoalhada, as mãos tremendo. O terror no olhar de Kevin deixou isso claro quando ele agachou no meio do campo, olhos arregalados, e gritou com o coração na garganta, mandando chamarem os reconstrutores e os enfermeiros.

E no meio daquele caos, Icegren andou. Simplesmente passou por eles. Não olhou pra trás, não hesitou, não se virou. As costas eretas, os passos firmes. Como se o mundo não estivesse rachado às suas costas. E só no canto da boca, por um segundo, um sorriso — não de vitória, mas de constatação. Como se aquilo, no fundo, já estivesse escrito desde o começo.

E não era.

Pelo menos não pra ela.

O caos só aumentava. Os estalos continuavam nas rachaduras. Os Reconstrutores entraram em campo apressados, manipulando o solo com gestos amplos. As rachaduras iam se reconstituindo como cicatrizes curando em câmera rápida, os pedaços de terra se encaixando de volta com rangidos e brilho arcano, enquanto o chão inteiro parecia respirar aliviado.

Dois enfermeiros chegaram deslizando pelo campo e se ajoelharam do outro lado de Kevin. Ele cedeu espaço sem dizer uma palavra. As mãos ainda tremiam. Os olhos estavam longe. Os enfermeiros falavam, mas ele só ouvia o som das rachaduras se fechando — como se fosse o último fôlego do erro.

Enquanto Anaru era cuidadosamente imobilizada e levada numa maca encantada que levitava alguns centímetros do chão, a multidão começava a se dispersar, misturada entre cochichos, indignação, e o gosto amargo da derrota que ninguém ali queria admitir que estava sentindo por ela.

Enfermaria.

Anaru ainda estava lá. Inconsciente. 

Enquanto isso, o mundo seguiu. Porque o mundo sempre segue, mesmo quando você quase morre no chão de uma arena escolar.

Os treinos voltaram. Os cochichos viraram piada. E a diretoria tentou se importar. Mandaram ela pra sala do Aelzy, chamaram psicólogo, anotaram no sistema. Tudo bonitinho.

Mas vamos combinar: é a Icegren. E ninguém toca na Icegren. Os pais dela têm dinheiro até pra comprar esse prédio inteiro e transformar em shopping.

Então, no fim, nada aconteceu de verdade. Só mais uma mancha no histórico que vai continuar impecável.

Quase sete da noite.

O céu já tava todo azul escuro com um filtro brilhante da lua. E as últimas aulas escorreram pelo ralo como o resto do dia.

Fim de expediente.

Todo mundo fingindo que nada aconteceu. Clássico.

A enfermaria era fria, estéril, e cheirava a limpeza forçada. Nada ali lembrava uma escola. Nada ali lembrava algo vivo.

As luzes estavam baixas, e o único som constante era o bip irregular do monitor cardíaco preso ao corpo da garota desacordada. Anaru estava deitada numa das camas isoladas, envolta em lençóis brancos demais pra parecerem confortáveis. O rosto virado pro lado, os cabelos bagunçados ainda com resquícios de grama, poeira e suor seco.

Ela entrou sem fazer alarde. O som dos saltos ecoava pelo chão, passo por passo, ela se aproximava da maca onde Anaru estava deitada, cercada por fios, com marcas roxas nos braços, o rosto inchado, e os olhos imóveis. Cruzou os braços e suspirou, o peito subindo com arrogância controlada.

Mas então os dedos de Anaru mexeram. Depois os braços. A máquina ao lado bipou com mais força.

Icegren deu um passo pra trás, surpresa, mas não assustada.

Anaru abriu os olhos. Devagar. E assim que a visão estabilizou, o rosto dela não transmitia dor, nem confusão — mas ódio puro.

— Você... — a voz dela saiu rouca. — Sua desgraçada…

— Já tá falando? Achei que tivesse perdido o maxilar junto com o resto da dignidade. — Icegren recuou um pouco, erguendo uma sobrancelha.

Anaru não pensou duas vezes. Os músculos gritaram, mas ela levantou da maca como uma marionete possuída pela raiva, arrancando fios e derrubando uma bandeja de metal no chão com um estrondo. Pulou em cima de Icegren como uma fera. As mãos dela foram direto pro pescoço da rival.

— Você prometeu, caralho! — berrou Anaru, os olhos arregalados, os dedos pressionando com força o pescoço de Icegren, que caiu de costas contra a parede, tossindo. — Era pra você ganhar, não pra me deixar em coma, sua puta!

— Me solta, sua louca. — rosnou Icegren, batendo os joelhos contra a barriga de Anaru, tentando afastá-la.

— Você me pagou! — cuspiu Anaru, as mãos ainda firmes. — Era um acordo! Só pra fingir...

Com um grunhido, Icegren empurrou Anaru com força contra a maca, levantando-se num movimento seco. Anaru caiu de lado, ofegante no chão.

— Você devia agradecer que tá viva, sua inútil — disparou Icegren, ajeitando a gola do uniforme. — Acha que vai me derrubar no meio da arena e sair andando? Acha que eu ia deixar aquelas asas ridículas me fazerem passar vergonha na frente de todo mundo?!

— Eu devia ter te matado ali... — Anaru cuspiu sangue no chão. — Eu devia ter te lançado da porra daquele terraço.

Icegren soltou uma risada seca, desdenhosa.

— Agora vai bancar a fortona? Você é fraca. Você se vendeu, e ainda quer bancar a justiceira?

Anaru tentava se levantar. Trêmula, suando, com a respiração falhando entre arfadas que misturavam dor e ódio. Os olhos estavam arregalados como se queimassem de dentro pra fora.

— Acabou — disse ela. — Não tem mais acordo, não tem mais jogo comprado. A próxima vez que a gente se enfrentar… vai ser com a porra da plateia inteira sabendo que você é uma fraude. Que você me pagou pra perder.

Icegren congelou. Por dois segundos. O suficiente pro veneno ferver por baixo da pele.

— Cuidado com o que você tá dizendo.

— Eu vou te destruir, Icegren — continuou Anaru, a voz firme. — Eu vou desenterrar essa merda toda. Todo mundo vai saber que a princesinha dos Caçadores compra vitória no campo. Que você é só fachada. Um monstro mimado bancado pelo papai.

O tapa não veio. Mas o olhar que Icegren lançou podia fazer qualquer um recuar dois passos. 

— Se alguém descobrir, eu acabo com você, garota. Eu te enterro debaixo de um cemitério e cavo com as próprias mãos se precisar — a voz dela agora era um sussurro gélido, e o sorriso, seco. — Você quer jogar sujo? Vai em frente. Mas você nunca vai entrar no meu caminho. Eu sou o topo da cadeia alimentar, Anaru. Você é o aviso do que acontece com quem tenta subir demais. Pode tentar, aberração. Agora é pessoal. Você cavou sua própria cova com essas asinhas nojentas.

As duas ficaram ali, por segundos, respirando pesadamente.

Nenhuma vai recuar.

Nenhuma vai perdoar.

E só uma delas vai sair andando no final.

A guerra começou com palavras.

Mas pode apostar que vai terminar com muito sangue.

...

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora