Volume 1
Capítulo 7: A Mulher da Floresta
Com a visão turva e pálpebras bem pesadas, um homem-cão bem confuso se esforçava para voltar ao estado pleno de consciência novamente. Porém, a tontura ainda era bem forte, e seu corpo ainda estava bem enfraquecido, o impedindo de se levantar como sua vontade o ordenava. Preso nesta luta consigo mesmo, ele ouve uma voz um pouco familiar que dizia.
– Mas já!?... Seu organismo deve ser bem adaptável.
Focando agora em saber de quem seria essa voz, ele consegue estabilizar razoavelmente suas funções, o tornando capaz de enxergar melhor e ver o que estava ao seu redor.
Era um local cheio de substâncias estranhas, que tinham cores e consistências variadas, contidas em vidros de diferentes modelos e tamanhos. Além disso, o lugar também detinha uma variedade muito grande de ferramentas assustadoras. Dentre tesouras, facas e serras que gelavam a espinha. E algumas dessas ferramentas se ligavam em aparelhos maiores, similares a máquinas de funcionamento automático. Em resumo, era um lugar assustador e organizado, o que deixou o homem-cão ainda mais confuso e amedrontado.
Até que finalmente ele tem a visão daquela mulher assustadora, que preparava as suas aterradoras ferramentas enquanto olhava fixamente para seu abdômen. Essa revelação fez o homem-cão se desesperar ainda mais, lutando agora com todas as forças para sair dali o mais rápido possível. Mas seu corpo ainda estava adormecido, e seus braços e pernas estavam amarrados. Só então ele percebeu que estava preso em uma cama totalmente a mercê daquela mulher.
– ...O que... que você... está fazendo comig...!? – pergunta o homem-cão com uma fala ainda afetada pelos efeitos da dormência.
– Sua utilidade será de trazer conhecimento sobre partes da existência ainda não decifradas pela civilização! – responde a mulher de maneira calma e confiante. – Bom...resumindo vou dissecar e estudar todos os seus órgãos para entender como algo igual a você é possível.
Um frio gelado sobe a espinha do homem-cão, trazendo o terror da morte direto para sua mente, e o deixando com uma respiração rápida e ofegante, que faz suas forças aumentarem um pouco mais atrapalhando a mulher de chegar próxima a ele.
– ME SOLTA!! EU...EU NÃO QUERO MORRER!! – Fala o homem-cão enquanto se debate em cima da cama em que está amarrado.
– Aff!!...Dormir e aceitar é o melhor que você faz criatura!! – fala a mulher descontente com o homem-cão que a atrasa em sua tarefa.
E então ela o segura no braço novamente deixando-o inconsciente em cima da cama.
Agora, conseguindo seguir com sua operação, a mulher pega um pequeno bisturi dentre suas ferramentas e inicia o corte no abdômen do homem-cão. Porém, o bisturi tem dificuldade de cortar o local forçando a mulher a para o procedimento. Então ela pega aquela bola de vidro que havíamos visto antes e começa a falar.
– Primeira observação da operação. O bisturi não corta a pele do objeto estudado com facilidade. Se faz então nescessário um teste de resistência epidermial para definir o nível de corte nescessário para efetuar a operação de maneira eficiente.
A mulher então olha para suas ferramentas, que estavam desarrumadas em um dos cantos da sala, e suspira fundo enquanto pensa na dificuldade que terá para achar o item que precisava. E após ponderar sobre isso ela fala na bola de vidro.
– Continuando com as primeiras observações da operação! Para o avanço mais rápido do precedimento, irei usar o bisturi de lâmina éteria e observarei o avanço do corte, avaliando visualmente a resistência celular da pele no indivíduo estudado.
E indo até um armário, a mulher buscou uma pequena caixa com fios e componentes estranhos, e a levou para próximo do homem-cão. Logo ela pegou um bisturi que estava acoplado a caixa, indicando que os dois funcionavam em conjunto para fazer o corte necessário.
Apertando um botão na caixa, uma luz de cor vermelha surge no local onde seria a lâmina do bisturi, sendo aparentemente assim que o objeto consegue seu corte, e dessa forma a mulher inicia sua operação.
– Mã...mãe...
A mulher fica completamente paralisada, e seus braços e olhos voltam rapidamente à forma medonha que apresentavam em sua transformação anterior. Contudo, agora não havia aquele peso da intimidação e do perigo iminente, mas sim um calafrio que tomava o corpo da própria mulher. Trazendo à tona um olhar inundado de lembranças tão fortes que levavam essa mulher, tão inalcançável em sua confiança e nobreza, direto para o chão.
Ela, enterrada em uma enxurrada de sentimentos incompreensíveis, olhava para o homem-cão com um olhar assassino, esperando algo que seria o motivo derradeiro de suas ações. E então de repente.
–... Mãe… mã... mamãe...
E assim é feito. O gatilho esperado é acionado.
As palavras vinham do homem-cão, que delirava com alguma mãe que talvez ele tivesse em outra vida anterior a essa. E a descoberta da origem daquele lamento tem uma consequência terrível. A mulher ergue o bisturi, pronta para estocar, com toda sua fúria, esse ser que acabará de causar o que já não era causado a muitos e muitos anos.
– GGGRRRRRRRAAAAAAHHHH!!!
Grunhi e grita a mulher enquanto olha fixamente para o rosto do homem-cão, esperando assim ver seu rosto de desespero, enquanto o atravessaria com o objeto cortante que ela segurava com toda força de sua ira. No entanto, tudo que ela vê é um rosto sereno, como o de alguém que dorme na casa segura de seus protetores.
Mesmo assim ela, com todos os músculos de seu corpo tensos, desce a sua faca rapidamente em direção ao homem-cão. E já próxima às vias de fato, a mulher desvia o seu ataque visando assim sua própria mão, a perfurando enquanto grita e urra de dor e agonia.
E assim, com a ferramenta ainda perfurando sua mão, a mulher começa a diminuir os sons de seu sofrimento pouco a pouco, e retirando rapidamente o bisturi atravessado, ela respira profundamente, e começa a recuperar a calma, voltando assim, a sua forma normal. E saindo de perto do homem-cão, ela vai em direção a outro cômodo, para conseguir lavar os ferimentos feitos por ela mesma.
Lentamente, piscadela após piscadela, o homem-cão começa a acordar de seu sono. Mesmo assim, seu corpo estava bem fraco, e sua visão se mostrava turva, não conseguindo assim, ver o que estava ao seu redor naquele momento. Mas então, uma voz se sobrevém diante do despertar, já conturbado, do homem-cão.
– Interessante! Dessa vez foi mais rápido.
Reconhecendo aquela voz como a da mulher assustadora que o estava ameaçando, ele forçava seu corpo para tentar se levantar e fugir daquele local. No entanto era inútil agora, pois nem seus braços, nem suas pernas o sustentavam para poder iniciar sua fuga dali. Desse modo os olhos dele se abrem e buscam desesperadamente a origem daquela voz que tanto o apavorava. E sentada à sua direita, perto de uma mesa, a mulher olhava para ele enquanto escrevia em um tipo de diário.
E agora vendo essa mulher, o homem-cão pergunta para ela.
– O que que você quer!? Me deixa ir embora!
– Você já pode sair Mon Petit chien!! – responde a mulher.
– Hã!?... O que!?... – fala o homem-cão enquanto continua tentando se levantar sem sucesso. – Eu não consigo me mexer! O que você fez comigo!?
– Hum… É um milagre você estar acordado Mon Petit. Já se mexer, é uma benção além do que você merece!! – responde a mulher. – Mas não precisa ter pressa. Você já foi útil o suficiente. E assim que você puder andar, eu mesmo te expulsarei daqui!
Após ouvir as palavras daquela mulher, o homem-cão estranhamente fica mais calmo e para de tentar se levantar desesperadamente.
Então ela suspira profundamente e se levanta, indo em direção da porta para o outro cômodo da casa. E no meio do caminho, ela para, e ainda de costas, pergunta ao homem-cão.
– Você tem nome Mon Petit chien?
Pensativo por um momento e depois virando sua cabeça na direção contrária a da mulher, ele responde.
– … Eu… Num sei meu nome...
– Imaginei! – diz a mulher – Também não sabe de onde veio nem para onde vai não é!?
O homem-cão confirma a pergunta da mulher com um silêncio constrangedor. Ela então volta a sentar na cadeira ao lado do homem-cão, e continua a questionar.
– Do que você se lembra Mon Petit?.
O homem-cão, ainda desconfiado, continua em silêncio com medo do que a mulher misteriosa ainda poderia fazer com ele, e com qualquer informação que ele poderia dar.
– Hum... Você ainda tem medo, não é? – fala a mulher – Bom...Como eu falei Mon Petit chien... Você já teve sua utilidade, e agora eu quero você fora de minha casa!... Mas eu sou uma pesquisadora Mon Petit… A melhor em minha área com certeza! Mas até eu sei que anos sem ter alguma interação social pode deixar qualquer um louco! Então pode relaxar agora Petit chien… Eu não mordo… Pelo menos não mais!
O homem-cão olha para ela, e vê que toda aquela aura ameaçadora havia diminuído, isso faz com que ele não conseguisse mais sentir medo daquela mulher tão diferente, que agora estava interessada em sua história.
Mas, talvez esse sentimento não venha necessariamente da aparente mudança dessa mulher, mas sim de uma carência familiar que o homem-cão desenvolveu ao decorrer de sua curta trajetória até aqui. Mas independente do motivo verdadeiro, ele a responde de maneira ainda bem tímida, no entanto, bem sincera.
– … Bom… Eu… Eu… Acordei machucado num barranco perto de lá de onde você me achou dona...
– E isso é tudo? – questiona a mulher.
– … Hum… Eu… Eu estava com muita dor, e fui pra cidade ver se conseguia algum lugar pra ficar… E… E então um anão velho e uma moça cega disseram que iriam me ajudar mas eu saí de lá e te encontrei dona...
– Que tipo de ajuda você não aceitou Petit chien?
–... Hãã… Ooo… Anão me… me pediu pra levar a moça cega pra um lugar que eu não conheço… Mas eu não conheço nada daqui! E como eu ia cuidar dessa cega!?
– Ele estava se livrando dessa cega? – pergunta a Mulher.
– Nããoo!... Ele gostava dela! Era tipo filha dele… Eu acho!!
– ...Hum… Sabe mon Petit… Um dos efeitos desse sedativo que está em suas veias é deixar as pessoas um pouco mais… Como eu posso dizer?... Mais sinceras, sabe!?... Então você me deixa… um pouco… intrigada… É difícil acreditar que alguém iria deixar uma filha cega nas mãos de desconhecidos.
– Mas ele falou que era ela que iria cuidar de mim! – Afirma o homem-cão! – Ele falou que ela rouba até as ceroulas do Tarantos!!
– Hi! hi! hi! – Ri a mulher mesmo tentando se conter.
– Isso não é algo pra se gabar né!? – pergunta o homem-cão envergonhado.
– Hi! hi! Se fosse possível seria um grande feito Mon Petit chien.
– Bom...Tente ficar de pé agora Petit chien!
Então o homem-cão finalmente consegue sentir seu corpo de maneira normal, possibilitando-o de se levantar, e ficar de pé.
A mulher também levanta-se de sua cadeira, deixando assim o Homem-cão tenso, e com ainda mais receio. E enquanto vai em direção a um armário, a mulher continua a conversar com o homem-cão.
– Bom… Não me entenda errado Petit chien!... Quando te capturei… Não tinha nada contra você… Mas agora estou pessoalmente odiando você.
Ao ouvir isso, o homem-cão dá pequenos passos para traz, enquanto o receio atual se torna pavor novamente, devido a toda experiência que essa mulher intimidadora já havia o proporcionado.
– Você, mon Petit chien, me fez sentir sensações que a muito já haviam parado de me atormentar. Me fez ter lembranças que por muito anos não queria mais lembrar. Me impede de lidar com problemas que faz tempo eu já consigo resolver. E me força a dar presentes que já perdi a conta de quantas vezes já tentei me livrar.
Então ao terminar a frase a mulher acha o que ela procurava no armário. Duas pedras preciosas com o formato de gemas de cor azul, bem bonitas, que a mulher leva até o homem-cão, e entrega em suas mãos falando.
– Dêem um jeito dessa mulher cega ser abençoada, agraciada ou enxertada, sei lá como chamam esse ritual de merde hoje em dia, com uma semente para que ela possa usar isso. Agora vá embora, Mon Petit chien! Eu realmente não quero mais você aqui… Entendeu!? – Terminando de falar, a mulher transforma seus olhos naqueles terríveis globos de cor exuberante e assustadora novamente.
Saindo da cama e andando com dificuldade, o homem-cão vai em direção a porta desse cômodo, mas pouco antes de sair, ele para, e sem olhar para traz ele pergunta com a voz ainda embargada de receio.
–... Posso… fazer uma pergunta?
– Tsc… sua espada está na outra sala! - Responde a mulher resmungando.
–... hãããmm… sim… obrigado...
No entanto, mesmo tendo sua pergunta aparentemente respondida, ele não continua seu caminho.
– Huuummm… Estou começando a me lembrar para que queria seu fígado Mon Petit chien! – Fala a mulher de maneira sarcástica e ameaçadora – Espere um pouco então! Quando eu lembrar, nós continuamos de onde paramos.
– Hãã… Desculpa, mas é que… Você fala umas coisas que eu não entendi – fala o homem-cão tremendo de medo – … Como se você tivesse me chamando pelo… Mas… Mas o que quer dizer mum peti chiem?
A mulher franziu os olhos, e fez uma expressão de descrença para o homem-cão, que começa a temer ter falado mais do que sua sorte o permitia. No entanto, a mulher abaixa sua cabeça com um meio sorriso e fala de maneira embargada e melancólica.
– Oh!... Eu… Eu nem tinha percebido...
Mas logo ela se recompõe, e com aquele ar sarcástico e aristocrático, a mulher completa sua frase.
– Bom… Para resumir e você sair logo daqui, mon não quer dizer nada de interessante! Petit é um epíteto! Ou seja, um título que eu te dei de acordo com a grandeza que você demonstra! E chien… Bem… Chien… Chien é você!... É exatamente o que você é, chien!... Agora suma da minha frente! Você já me irritou muito além do que eu geralmente permito!
– Hã… tá bom dona… Hã… Dona... – fala o homem-cão, tentando completar a conversa.
– Celene! Celene é o nome que você gagueja pra tentar me perguntar! – responde a mulher agora conhecida com Celene.
– Há… Muito obrigado Dona Celene!!
E assim o Homem-cão enrola seu presente junto a sua espada no pano, e sai da cabana onde estava.
Sem muita noção de onde era a casa em que Celene o havia trazido, o homem-cão olhava ao seu redor, tentando encontrar um ponto de referência que ajudasse a se localizar. Mas não precisa de muito tempo para que ele finalmente encontre algo familiar.
O cristal azul estava logo à frente. Aliviado por não estar longe de um local conhecido, o homem-cão olha para trás já sem receio e curioso para ver o quão perto estava da casa de Celene. No entanto, não há nada além de árvores e mais árvores onde deveria haver a casa que ele acabou de sair. Isso deixa o homem-cão muito confuso, e sem entender nada.
Ele voltou correndo em direção ao local onde a casa de Celene aparentemente estava. Mas não havia nem sinal de que uma casa teria sido feita ali.
Agora duvidando de suas poucas lembranças, o homem-cão abre o seu embrulho calmamente com um olhar de descrença, imaginando que talvez tudo aquilo tenha sido somente um sonho febril de sua mente já tão confusa. Entretanto a casa poderia não estar ali, mas as duas gemas ainda estavam junto a sua espada, dentro do embrulho tão bem guardado. O homem-cão então olha para o alto e sorri, acreditando que, seja lá o que tenha acontecido, ele se sente agradecido por ter terminado assim. E agora novamente sem rumo, ele lembra o que lhe foi falado antes.
"Arranjar um jeito da mulher cega ser abençoada para poder usar essas pedras… Mas… afinal, como se abençoa uma pessoa nesse lugar maluco?... Eu não entendi foi nada!"
Assim, o homem-cão resolve voltar para a cidade, enquanto no meio do caminho reflete se vai ou não aceitar a proposta de Paragor, o anão da cidade que o ajudou anteriormente.