Volume 1

Capítulo 16: Lembranças - Parte 2

Infames palavras ditas com a tranquilidade mórbida de um assassino trouxeram à tona uma fragilidade nunca antes sentida pela pequena princesa. O medo tomou-lhe a cor da pele, seus olhos fixados no nada brilhavam conforme as lágrimas inundavam suas órbitas, um completo terror subia sua espinha graças a confirmação das intenções deste homem, até então desconhecido pela pequena Novah.

– E você sabe que é verdade! Não é, menina? – Continuou Paragor. – Até porque, se fosse mentira, seus guarda-costas, que estão ao nosso lado ouvindo tudo, desde o início, já teriam me decapitado antes mesmo que eu terminasse minha ameaça. Não é mesmo, menina!? Afinal, eu os treinei para isso! 

O pânico usurpou-lhe as pernas, que tremiam a cada palavra dita pelo anão. Lentamente, sua bexiga vacilava, a fazendo se urinar bem na frente de seu algoz. No entanto, mesmo assim, Paragor não diminuía suas provocações.

– Você achava que estava entre os seus… Mas algo aconteceu… Mesmo aqui… Cercada de proteção… Algo aconteceu… Algo que estava completamente fora de seu controle, menina! E você não estava preparada!... Então, agora você está frente a frente com a simples possibilidade de morrer… E a única coisa que você é capaz de fazer… é se mijar!

E pondo um de seus joelhos ao chão, na intenção de olhar diretamente em seus olhos, Paragor completou seu monólogo.

– Lembre-se bem desse sentimento, menina! Porque ele é seu principal inimigo. Só ele vai te impedir de ser o máximo que você é!... E mesmo assim... Você não pode deixar que ele se vá! Porquê só ele também é capaz de impedir que você ache que é mais do que realmente é!

Novah parou de tremer. E com um suspiro longo que a lembrava novamente de como era respirar, ela finalmente conseguiu compreender o que estava acontecendo. 

No primeiro momento ela ficou furiosa com Paragor, já que a fez sujar seu vestido favorito. Mas logo ela se acalmou, e começou a pensar em tudo que seu novo tutor acabou de lhe falar. 

Ele tinha razão. Admitiu Novah em seus sentimentos. Em um mundo cheio de acontecimentos fantásticos e intrigas políticas maldosas. Mesmo aqui protegida no castelo. Ela tinha que estar preparada para a possibilidade de que toda essa segurança poderia não ser o suficiente. 

Assim, mais calma, Novah faz uma pergunta para Paragor.

– Então não passei no seu teste?!

– E quem falou que isso era um teste!? – Respondeu Paragor.

– Se isso não foi um teste… Então o que foi?

– He! he! he! Você é tão nova... E já acha que sabe mais do que realmente sabe! Mas nunca soube o que é o terror da morte nos olhos de seus inimigos!... E… Para onde nós vamos agora, menina! Saber e entender isso… Já é meio caminho andado.

– Então sentir esse medo todo foi algo bom? – Perguntou Novah, ainda confusa.

– Só se você não se esquecer desse sentimento! – Respondeu Paragor. – Você vai se deparar com esse medo várias e várias vezes de agora em diante, menina! Então relembre e reviva sempre que puder esse sentimento em sua mente! E então o enfrente!... Mas já te adianto, menina… Você nunca vai ganhar!... O que é bom! Porquê não é esse o objetivo! A nossa meta é tornar o medo e o terror algo que está ali… Mas que não afeta nosso raciocínio. E nem nossas habilidades durante uma crise. Você entendeu agora, menina? 

Pensativa, Novah somente olhava para o chão, e Paragor aproveita o silêncio para continuar.

– Afinal… Mesmo que sua mãe me permitisse te matar, ainda assim, essa permissão teria um contexto a ver com o seu treino… não é? E mesmo que seus guardas estivessem sob minhas ordens… Você ainda tinha todo esse exército do salão, e poderia fazer um escândalo para escapar de mim, ou simplesmente sair correndo para salvar a própria vida, ou qualquer outra coisa além de ficar parada na minha frente 

– É… Acho que entendi. –  Falou Novah, ainda um pouco pensativa.

– Não se ache fraca por ter sentido todo esse medo agora menina! – Falou Paragor. – Quanto mais cedo você sentir isso melhor! Afinal é melhor enfrentar um exército que se mostra totalmente na minha frente do que lutar contra um assassino que se esconde tão bem que eu nem consigo dizer se ele existe ou não.

E com essa frase final do Paragor do Passado, Novah retorna de suas lembranças com a voz de Shiem a chamando, aparentemente ao longe, porém, cada vez mais próxima. Até que finalmente.

– EEEIIIII!!?? SENHORITA NOOOVAAAH!!! ACOOORDAAA!!

Assim, Novah tomou um pequeno susto.

– Hã! O que foi garoto!? Porquê tá gritando!

– Ué!? Você parou de responder de repente! Aí eu tive que gritar até você acordar. 

– Ah, tá Bom!! – Respondeu Novah, já sem paciência – Mas o que você me perguntou mesmo?

– Bom… Eu sei que eu sou medroso... – Falou Shiem, um pouco decepcionado. – E que mesmo você falando que é ótimo ser assim agora, pra evoluir no treinamento… Eu sei que você se decepcionou comigo.

Novah, aliviada por Shiem não estar a odiando, porém, preocupada por ele estar decepcionado com si mesmo, continua seu discurso de antes de suas lembranças.

– Sim! Eu falei que era ótimo. Mas não! Não estou decepcionada com ninguém! E pare de querer saber dos meus sentimentos mais do que eu! Se não vou cortar você de verdade! É realmente bom que agora você sinta o terror com tão pouco! Já que é muito mais fácil saber como agir diante de um exército poderoso que eu vejo ao longe do que de um único assassino que se esconde nas sombras ao meu redor!!

Shiem não entende completamente o que Novah queria dizer, mas seu ânimo melhora, devido a acreditar que realmente era possível aprender a lutar mesmo com o medo que sentia.

– Então agora que você ouviu a teoria, vamos aprender com a prática! – Falou Novah.

Shiem, respirando fundo e se levantando, ganhou um pouco de confiança e falou.

– Então tá!... VAMOS LÁ!

Novah não o esperou entrar em guarda, e logo o atacou diretamente em uma investida lateral com uma de suas espadas. 

Shiem, apesar de ter caído anteriormente, não havia largado sua arma, e por isso conseguiu se defender do ataque com sua bainha, que descansava em sua mão esquerda. 

Novah, nunca desperdiçando tempo com chances perdidas, investiu novamente em outro ataque lateral aberto em Shiem. No entanto, este golpe era no lado contrário ao anterior, além de ser bem mais veloz que o mesmo. Shiem não tinha destreza o suficiente para conseguir se defender desse segundo ataque de Novah. Então ele saltou instintivamente para trás, conseguindo se desviar por pouco da investida. Contudo, Novah não parou, e com a espada do primeiro golpe, que estava ociosa, ela o atacou em uma estocada, visando diretamente a testa de seu adversário. 

Tudo era tão acelerado e contínuo que Shiem não conseguia nem ao menos pensar no que estava acontecendo, e reagia da única forma que seu corpo conseguia naquele momento. Se Afastando o mais rápido possível da lâmina que o tentava ferir em sua testa. 

No entanto, suas pernas não estavam em uma posição favorável para se afastar da maneira necessária, logo a única opção fora dobrar as costas e movimentar o pescoço de tal forma que sua testa recuasse perante a ponta da espada, o deixando com a visão do céu dessa região.

No final de seu movimento, a espada o alcança. O toque frio do cristal o fez gelar de medo. Com tudo, ao chegar em sua testa, a lâmina já havia perdido quase toda sua força de ação. Não sendo assim, forte o suficiente para furá-lo de alguma forma. 

Ainda rápida em suas conclusões, Novah percebeu que Shiem, para se desviar de sua estocada, estava olhando para cima, o deixando vulnerável para o que estava por vir.

Um chute certeiro em suas partes íntimas o fez cair ao chão gritando de dor enquanto segura o local tão severamente atingido.

– AAARRGHT!!! MAS QUE DROGA!!! – Gritou Shiem, tomado pela dor. – ISSO É JOGO SUJO!!!

– Heim!? Como é que é? – Perguntou Novah, incrédula. – Você tá brincando comigo?! Quem você acha que eu sou aqui?

– Arrrgh!! Aí!! Como assim?! – Questionou Shiem, ainda com muita dor. – Aí!! Do que que você tá falando!? Você é você, ué!? Ai!

– É assim que você pensa agora? – Respondeu Novah, com bastante seriedade. – Por isso está aí no chão! Aquele medo todo sumiu, e você acha que aguenta o tanto que vou te machucar! Mas é exatamente assim que eu vou conseguir te aleijar! Porquê aqui, pro seu bem, eu não sou eu! Aqui, eu sou aquele desgraçado que vai entrar no seu caminho quando você menos esperar e vai furar seus olhos! Vai arrancar sua língua! Cortar seu pescoço! Chutar suas bolas! Sequestrar sua família e torturar seus parentes! Eu sou aqueles desgraçados que nos emboscaram em menos de um dia fora da cidade! Só que dessa vez... VOCÊ ESTÁ SOZINHO! – Gritou Novah, enquanto atacava Shiem, que ainda estava no chão.

Era uma estocada direta. Shiem não teve tempo de se recuperar. Mesmo assim, ele rolou rapidamente para fugir desta cometida. 

A ponta da lâmina afundava ao solo, que era rígido e compacto o suficiente para provar que Novah não exitaria em machucá-lo de maneira séria se fosse preciso. E que se levantar, e se defender, seria a única opção nessa situação. 

Ainda assim, suas pernas vacilavam, e sua vontade se manteve fraca, o impedindo de se levantar logo após o seu rolamento.

Novah não demonstra piedade em suas atitudes, e dessa forma, ela continuava o atacando com movimentos abertos e rápidos, visando sempre lugares vulneráveis de seu adversário. 

Shiem, por primeiro, pensou em se defender com sua espada, mas por tudo acontecer tão rápido, ele não havia percebido que sua arma tinha ficado para trás. Sem defesa, ele só conseguia recuar e rolar para mais longe, enquanto se esforçava ao máximo para se levantar do chão em que estava. 

Mais e mais Novah se aproximava de Shiem, com um sorriso satisfatório em seu rosto, o atacando sem parar, arrancando pêlos de seu corpo, tamanha proximidade e força de seus golpes.

Finalmente conseguindo se levantar, Shiem começou a sentir o medo que o tomou durante o primeiro golpe em suas costelas. Esse medo, de alguma forma, logo se transformou em raciocínio rápido e atitude. O motivando a fazer um movimento coordenado com um dos ataques de Novah. Que ao atacá-lo na linha da cintura, visando mais uma vez suas costelas já debilitadas, se surpreende com o salto de Shiem, que se desviou pulando por cima da lâmina inimiga. Esse movimento trouxe uma certa satisfação para Novah, que via isso como uma evolução mais rápida do que o esperado em relação às habilidades que seu aprendiz apresentava. 

Exultação que se confirmou ao ver que Shiem havia saltado em direção a sua arma, que agora já estava em posse do mesmo. Isso fez com que Novah acreditasse que seu aprendiz já havia alcançado um estado de espírito em que conseguiria se concentrar o suficiente para se defender de um ataque mais direto, e um pouco menos aberto. 

E assim ela o faz. Indo em direção a Shiem com mais velocidade do que já havia apresentado até agora. A princípio ela esperava uma expressão de pavor na face de Shiem. Mas o que Novah viu foi um olhar atento a seus movimentos, que aparentavam ser a principal preocupação de seu aprendiz. 

Dessa forma recomeçou a troca de golpes entre Novah e Shiem. Tendo como primeiro movimento um ataque em diagonal de baixo para cima executado por Novah. 

Era um movimento fechado e objetivo, bem diferente das investidas que ela estava demonstrando anteriormente. Porém, Shiem ao conseguir recuperar sua espada e sua bainha, que também servia de uma espécie de escudo, se posiciona em guarda de uma forma que Novah não pode julgar ser amadora. 

Essa posição melhorava o tempo de resposta nos movimentos de Shiem. O tornando capaz de se defender com sua bainha, que estava em sua mão esquerda, do ataque inicial de Novah. A colisão entre as armas é seca, e a surpresa da mestra em ver uma defesa tão correta de seu aluno é aparente. Foram dois segundos de uma descrença feliz, que eram ignorados por Shiem, já que ele estava completamente focado em se defender de sua adversária. 

Percebendo tal foco, Novah não perdeu tempo. E imediatamente o atacou com sua outra espada em um impulso lateral, sempre visando pontos vitais, que logo é  evitado por Shiem, girando seu corpo enquanto recua para trás, sempre mantendo sua posição de guarda instintiva. O segundo ataque de Novah que passa direto sem atingir ninguém, o que na verdade a ajuda a cruzar seus braços e avançar na direção de seu discípulo, executando um ataque semelhante ao cisalhamento de uma tesoura, direto em seu pescoço. No entanto, ao contrário das esquivas e recuos simples que Novah já estava acostumada, Shiem avançou, e com sua espada, ele travou o cisalhamento exatamente no momento em que as duas espadas de Novah iriam acertar o seu pescoço. 

Isso era improvável. Uma defesa tão elaborada não poderia ser feita por um amador. E ele a executou com um tempo perfeito. Novah estava confusa e desacreditada. Mas mesmo sem entender, ela rapidamente desfaz seu ataque ao mesmo tempo em que bate com uma de suas espadas na arma de seu adversário, o obrigando a recuar para recuperar sua posição defensiva. 

– Raciocínio muito lento! – Fala Novah – Ou você acha que depois de uma defesa, vamos ficar trocando olhares até você pensar no que vai fazer depois?  Mesmo depois do casamento você não vai conseguir fazer isso!

Ainda concentrado, Shiem ouviu o que Novah havia falou. E logo ficou confuso com o comentário dela.

– Mas heim? Mas de que casamento você tá falando? – Perguntou Shiem, ao mesmo tempo em que perdeu seu foco por causa dessa palavra inusitada.

Novah, percebendo que havia falado demais, tentou corrigir seu erro com um rápido ataque de desarme, que atingiu a espada de Shiem próximo ao seu punho. A investida foi tão forte que Shiem solta sua espada, o deixando somente com sua bainha na mão esquerda. Porém Novah, logo em seguida, posiciona sua outra espada a centímetros das partes íntimas de seu adversário, deixando-o completamente sem reação.

– Quando a espada não funciona… as palavras são uma opção. – Explicou Novah. – Uma opção tanto para você quanto para seu inimigo. E você estava aceitável. Até que uma palavra o matou.

Percebendo que falhou mais uma vez, tenta esconder o sentimento de decepção que o consome desviando seu olhar, e indo buscar sua espada que havia caído ao longe, Shiem começou e se perder em pensamentos de derrota e tristeza. O que logo foi verificado por Novah, que havia aprendido a observar tais detalhes com Paragor, e com uma expressão marcial ela falou para Shiem.

– Você é muito prepotente e arrogante mesmo! 

Shiem, ao ouvir Novah, não entendeu o comentário de sua professora. Já que, os sentimentos que passam pelo seu coração são justamente o inverso de prepotência e arrogância.

 Então, Novah completa.

– Está decepcionado por não ter aprendido tudo que tenho pra te ensinar em um dia é!? Você vai passar essa viagem toda sem entender nada do que vou te dizer se continuar se achando assim sabia? Quando eu disser que é decepcionante, aí você se decepciona, entendeu!? Aqui não temos tempo pra sentir nada além da vontade de aprender! 

Shiem ouviu atentamente o que Novah havia lhe falado, e percebeu, quase como uma epifania, que Novah estava completamente certa. Ele não poderia se deixar levar por tristeza nem por decepção, já que conflitos muito piores do que enfrentar ladrões de rua estavam à sua espreita nesse caminho. 

– É ISSO AÍ! Você tem razão senhorita! – falou Shiem empolgado. – Quer dizer… eu ainda tenho medo só de pensar que posso ter que enfrentar alguém perigoso sozinho… mas… como você falou antes… eu tenho que usar esse medo para evoluir!… E então agora eu estou tentando entender esse medo que eu sinto… e… eu… eu acredito que meu medo verdadeiro é de morrer sem saber pra onde eu vou depois… Então… pra não ter que passar por essa situação que eu tenho medo, eu tenho que focar no treino, para ser capaz de ter a confiança de que não vou morrer em nenhuma batalha que eu travar.

Novah, ouvindo o que Shiem tinha a dizer, começa a pensar.

" … Éh… Ainda falta, mas até que foi um começo rápido."

– Agora eu estou no ritmo!! – falou Shiem, com mais empolgação ainda – Vamos continuar!!

– Há! há! Está no ritmo, é? – Respondeu Novah, com sarcasmo – Então vai pegar lenha pra mim.

– … Hã!?... Mas… Ué? Mas eu estou pronto para voltar a treinar!? – Respondeu Shiem.

– É… Tô sabendo – Respondeu Novah. – Mas além do foco no duelo, você também tem que focar nos seus arredores. Já olhou para o céu?

Shiem então olhou para o céu, e logo viu que a noite começava a tomar o horizonte. Entendendo assim o que Novah queria lhe dizer.

– Caramba! Já tá anoitecendo! – Exclamou Shiem.

– É isso aí! – Respondeu Novah. – E com essas nossas roupas, vai ser difícil ficar longe do fogo. Então vamos ficar por aqui mesmo. 

– … Poxa! É mesmo… Então tá! – Falou Shiem. – Tô indo lá buscar então!

E assim ele se afasta de seu acampamento improvisado para iniciar uma nova tarefa. Contudo, sua confiança ainda oscilava, seus pensamentos se inundavam de dúvidas. Mesmo se sentindo mais seguro após ter visto, em primeira mão, a força e habilidade de sua companheira, sua mente ainda acreditava que, mesmo com treinamento, ele não seria capaz de aprender a lutar sozinho se fosse necessário.

 



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