Volume 1

Capítulo 15: Lembranças - Parte 1

Andando até o entardecer entre árvores de um bosque enriquecido pela primavera, eles chegaram até uma região de planícies verdes sem fim, quebradas somente pelas estruturas rochosa em formato de arco que eram abundantes por toda essa área. No entanto, Shiem e Novah ainda não haviam trocado uma só palavra desde o incidente ocorrido com os assaltantes. Esse detalhe deixava o homem-cão inquieto, já que ainda estava cheio de dúvidas sobre o que eram exatamente esses "objetos da umbra" e de onde eles surgiram exatamente. E também incomodava Novah, que apesar de estar tentando disfarçar, ainda queria dar uma boa impressão ao seu companheiro secretamente tão querido. Assim, diante dessa situação um tanto desconfortável, Novah resolve tomar a iniciativa.

– Vamos ficar por aqui!! – falou Novah.

– Ué?! Aqui!? – Indagou Shiem.

– Isso mesmo! O vilarejo mais próximo ainda fica a três dias de viagem a pé. E viajar à noite não é vantagem. Então vamos ficar aqui até amanhã.

Shiem, já cansado, aceitou a ordem de bom grado e logo tirou sua mochila e se sentou em uma pedra para descansar da viagem. Porém Novah logo o repreendeu.

– Mas nada de descanso ainda!! – Afirmou Novah. – Primeiro vamos jogar um jogo para aliviar a tensão!!

Shiem ficou surpreso com a proposta de Novah, e na hora se animou.

– Sério!? Beleza!! Vai ser ótimo pra passar o tempo. E então? Vamos jogar o que?

Com um sorriso, Novah se aproximou de uma pedra grande e retangular, colocou o cotovelo direito em cima dessa pedra e falou.

– Queda de braço!! Já ouviu falar?

Shiem, no primeiro momento estranhou o tipo de jogo que Novah propõs, mas depois ele pensou que por ser uma guerreira, essa seja a forma mais comum que ela conhece para passar o tempo. E sem mais “cerimônias”, ele falou.

– Bom... Tá legal então!! Mas não quebra meu braço por favor!!

– Se sentir que está quebrando é só desistir, ué!? – Falou Nova, em um tom de sarro e flerte estranho até mesmo para ela.

Estando de acordo, os dois se posicionaram frente a frente se dando as mãos para iniciarem a disputa. E Logo no momento em que Novah pegou uma das mãos de Shiem, ela sentiu seu corpo amolecer junto ao seu coração, que nunca deixou de bater mais forte sempre que se aproximava demais de seu companheiro de viagem. No entanto, novamente ela é desperta de seus sentimentos pelas perguntas seguidas de Shiem.

– E então? Quem vai dizer já?... Novah!?... Novah!?... Ei Novah!

– … Hã!? O que!? O que que você quer!? – Respondeu Novah, confusa ao voltar de seus devaneios.

– Vamos começar! – Exclamou Shiem com empolgação. – Você pode dar a largada!!

Novah inclina levemente sua cabeça para o lado e dá um sorriso com ar de extrema confiança.

– Mas que pressa heim?! Tá confiante é!? Acha que pode ganhar!? Quem sabe você seja o homem poderoso que será capaz de me machucar de verdade!? – Falou Novah com sarcasmo e uma certa insinuação.

– Hã!? Não senhorita Novah! Eu nunca faria isso com a senhorita! Eu não te machucaria de forma nenhuma! – Respondeu Shiem olhando para baixo como se estivesse pedindo desculpas.

– EU ESTAVA SENDO SARCÁSTICA SEU TAPADO!! LÓGICO QUE SOU EU QUE VOU QUEBRAR SEU BRAÇO!! HAHAHAH!! – Gritou Novah com uma cara maldosa mas ao mesmo tempo brincalhona.

Shiem sorriu com a ameaça descontraída de Navah e, pela primeira, conseguiu se sentir totalmente a vontade perto de sua intimidadora companheira.

E nesse clima animado, Novah começa sua contagem.

– No três!!... Um!!... Dois!!... TRÊÊÊSS!!!

Começou o desafio. Shiem já iniciou colocando toda a sua força em seu braço para tentar impressionar sua nova amiga. Porém, com um sorriso no rosto, Novah simplesmente não moveu seu braço nem um centímetro. Shiem, com os olhos já vermelhos de tanta força feita, resolveu olhar para Novah. E tudo que ele viu foi um rosto calmo e provocador que desdenhava do seu esforço quase absoluto. No entanto, por trás daquela feição tranquila, Novah estava impressionada, e até mesmo descrente, com a pressão incomum que Shiem estava exercendo em seu braço.

"Mas o que que isso!?"  Pensou Novah. "Como ele tem tanta força!?... E ele nem tem músculos de verdade!"

Ainda confusa com tamanha força, Novah muda sua expressão de superioridade para uma de esforço e fúria, demonstrando sua verdadeira força pela primeira vez no embate. E assim foi feito. Shiem começou a sentir a gigantesca pressão de Novah em seu braço, que cedia mais e mais até que ele percebesse que, se continuasse, realmente poderia terminar com um braço quebrado. Shiem então desiste, admitindo a vitória de Novah. 

– Caramba!!! Você é forte pra caramba!! – Afirmou Shiem.

– É! Eu sei! – Respondeu Novah. – E sou humilde também. Mas você deu mais trabalho do que deveria! E isso é bom pra agente começar.

– Ué!? Começar o que? 

– Hora!? Seu treinamento!! 

– Treinamento!? – Perguntou Shiem, um pouco confuso.

– É eu sei!! – Explicou Novah. – Prometemos que você só ficaria olhando durante a viagem toda, mas… Se você conseguir se defender pelo menos do básico… já vai me adiantar uns cinco meses de precauções e desvios, entende!?

Shiem ficou calado e pensativo. Não porque discordava de Novah, mas sim porque ainda não confiava em suas habilidades de luta. E notando o semblante preocupado de Shiem, Novah tenta explicar mais uma vez.

– Você se virou realmente bem sabia!? Aquela maneira de se desviar e ainda conseguir revidar não é nada instintivo! Mesmo assim você fez como puro reflexo. Talvez tenha a ver com o seu passado. Quem sabe com treinamento você não só descubra como se defender, mas também comece a se lembrar de quem você era de verdade.

Shiem ouvindo o argumento de Novah percebeu que realmente ela podia estar certa. E assim ele acenou a cabeça animado, concordando com regime de treinamento que Novah se propôs a fazê-lo passar.

E com os dois estando de acordo, Novah começa às explicações sobre o seus métodos de treinamento.

– Então vamos começar com sua arma! Já te adianto que essa espada que você roubou é inútil em uma batalha de verdade! 

– HÃÃ!? Mas porque? – Perguntou Shiem indignado.

– É um designe de protótipo feito para reis que quererem se mostrar! Eu já tinha te explicado antes! Provavelmente é taticamente inútil e com certeza feito de um material bem barato. 

– Mas eu gosto dela!! – Falou Shiem um pouco desolado. – Eu me sinto a vontade com essa espada.

– … É… ter uma arma de confiança é um começo certo. – Complementou Novah. – Mas não tenho muita idéia de como agir com essa sua arma… Me deixa ver ela de perto.

Dessa forma, Shiem entregou sua espada para que ela julgasse se aquela arma era viável em um duelo.

Novah colocou seus dedos no espaço similar a um soco inglês localizado na bainha e se posicionou em guarda, para sentir a maneira correta de se posicionar com tão singular espada. E se utilizando de seu instinto bélico, Novah logo retirou a espada de sua bainha e desferiu vários golpes rápidos, simulando uma batalha com um inimigo em sua mente. 

Shiem, vendo todo aquele ritual, ficou admirado com o foco empregado por sua companheira a sua frente. Brandindo e manipulando sua espada de maneira fluida e confiante. Tornando difícil acreditar que ela nunca havia utilizado uma arma similar antes. Então após alguns movimentos muito habilidosos, Novah guardou a espada em sua bainha e falou para Shiem.

– Essa espada, na primeira impressão quando a gente vê, é um pouco parecida com uma espada e um escudo simples… mas quando se utiliza… eu sinto que se mistura a empunhadura das duas espadas invertidas dos Sicran com a técnica de katana do reino de Mizuashi. Mas também dá pra começar com as bases de uma espada e escudo para simplificar o aprendizado.

Shiem, sem entender nada que sua companheira falava, somente concordou balançando sua cabeça enquanto se imagina repetindo todos aqueles movimentos que sua companheira acabou de executar.

Novah então devolveu a espada para Shiem falando.

– Toma! Agora é você! 

– Hãããã.... eeee... o que que eu faço? – Perguntou Shiem..

– Hum... Não tem tudo que eu fiz? – Perguntou Novah. 

– Sim!! – Respondeu Shiem, empolgado com a possibilidade de Novah o ensinar todos aqueles movimentos impressionantes que ela executou anteriormente.

– Então!! Esquece tudo e tenta se defender de mim da maneira mais instintiva possível.

Com as expectativas quebradas de uma maneira divertida, Shiem respondeu com uma cara de decepção e descontração.

– Poooxa!!... Então tá bom.

Shiem desembaínha sua espada e firma uma postura de luta, segurando a espada na altura da cintura com sua ponta na direção de Novah. Além de manter seus dedos na estrutura da bainha que parecia eu soco inglês, enquanto mantinha a mesma também na altura da cintura em uma posição defensiva ao lado do corpo.

Vendo essa posição instintiva, ela percebeu que Shiem se organizou naturalmente em uma base simples de luta. Geralmente isso não é algo impressionante, já que até crianças que viam soldados treinando imitavam essa base em suas brincadeiras. Mas para a mente treinada e detalhista dela foi possível ver que ele corrigiu os detalhes sempre esquecidos por crianças imitadoras e soldados inexperientes. 

E por esse motivo Novah imaginou se ele seria realmente algum tipo de soldado antes de se transformar nessa criatura. E se for, então que tipo de soldado ele teria sido? Mas logo ela calou suas dúvidas mentais e falou para Shiem.

– Horrível!! Mas já dá pra começar!!

Uma luz sutil começou a brilhar na palma de suas mãos, de onde surgem lentamente duas lâminas rosadas de cristal, identicas as invocadas anteriormente. Exceto por essas lâminas não terem fio de corte.

– Agora você vai ter que se defender de mim!! – Afirmou Novah.

– Como é que é? – Pergunta Shiem assustado.

– Porque o susto? Como você achou que um treinamento pratico seria? 

– Mas eu num sei nada ainda!! – Argumentou Shiem. – Como é que eu vou enfrentar você?! 

– Do mesmo jeito que você me enfrentou na queda de braço. Com o ânimo de quem acha que tem chance. Além do mais, eu vou pegar leve.

– Bom… tá ok então!! Mas vai com calma por favor senhorita!!

– .... Claro! Pode confiar.

Shiem se preparou para a investida de Novah e falou.

– Então vamos lá!! Estou pronto!!

Novah estava animada por passar todo esse tempo com alguém que ela estimava tanto, com tudo, o momento não era oportuno para tal sentimento, e para se concentrar somente na luta ela respira profundamente enquanto fecha os olhos centrando seus pensamentos. E logo ao fim dessa meditação Novah parte para cima de Shiem velozmente.

No primeiro momento Shiem se assustou com a velocidade de Novah, mas logo ele se recuperou armando sua posição para se defender.

Novah, já próximo de seu oponente, começou seu ataque com uma estocada direta na cabeça de Shiem, que se desvia o mais rápido que ele pode. Porém não é suficiente, e a espada de Novah raspa na parte lateral de seu alvo. Ainda assim, ela manteve seu ataque veloz girando seu corpo e o atacando de cima para baixo com sua outra espada em direção ao ombro de Shiem. Assustado por Novah parecer estar levando a luta a sério, Shiem saltou para trás, escapando do segundo ataque de Novah, que não para sua sequência, girando seu corpo novamente enquanto avança alcançando Shiem é o atingindo em cheio em suas costelas com as duas espadas que, por não estarem com fio, mais se assemelhavam a dois porretes finos. Esse golpe certeiro fez Shiem cair com muita dor ao chão enquanto reclamava.

– Argh!! MAS QUE DROGA!! Você disse que não ia pegar pesado!!!

Novah, ao ouvir o grito de dor e as reclamações de Shiem, ficou simplesmente parada olhando para ele enquanto pensava. 

"DROGA!! DROGA!! DROGA!! ELE VAI SURTAR COMIGO AGORA!! Mas ele tem que deixar de ser frouxo e entender que assim é o melhor pra ele!!...VAI LOGO NOVAH!! DIZ ALGUMA COISA DROGA!! SE NÃO ELE VAI TE ODIAR PRA SEMPRE!!".

Então, após esses poucos segundos de paralisia e pensamentos profundos, Novah respondeu Shiem.

– Eu peguei leve!! Tanto que você ainda tá consciente!!... Você tem que entender que se eu te atacar e você tiver certeza de que eu não vou te machucar, então você não vai ter o instinto de se defender!

Shiem, ainda se contorcendo de dor, ouvia o que sua agora professora tentava lhe explicar, mas ainda assim ele se mantinha calado e pensativo dentro de suas dúvidas sobre suas próprias capacidades.

E sem obter uma resposta direta de Shiem, ela começou a pensar novamente.

"RESPONDE LOGO GAROTO!! quer me matar do coração!!"

– Eu… eu… não sei se consigo lutar de verdade… – Respondeu Shiem – Só nessa pancada eu já fiquei sem ar e só queria correr daqui!! Se eu for lutar com alguém que quer me matar eu vou ficar paralisado!!

– Na verdade isso é ótimo! – Falou Novah – Se você sente esse terror com tão pouco, então já podemos adiantar seu treinamento!!

– Heim?? – Perguntou Shiem, um pouco confuso – Eu tô me tremendo todo só com uma pancada na barriga e isso é ótimo? 

Sem ela nem mesmo perceber, o questionamento feito por Shiem trouxe à tona lembranças de seu primeiro encontro com quem agora era, além de professor e tutor, sua única referência paterna. Já que Paragor, no início de seu treinamento, lhe disse algo que lhe serviria tanto para aquele momento no passado, quanto para agora com seu novo desafio. 

Era um imenso salão de imponência e beleza única, feito em um mármore de cores púrpura e azul, cercado por pilares de mesmo material, porém adornados com pequenas e grandes figuras de guerreiras munidas das mais variadas armas. A luz do sol invadia, com a timidez do entardecer, através das grandiosas janelas de formato arredondado em seu topo e reto em sua base, todas com seus vitrais abertos para melhor circulação do ar da relva.

Esse espaço suntuoso era ocupado por inúmeros soldados imóveis como estátuas e organizados em filas paralelas que tomavam mais da metade deste cômodo, eles vestiam armaduras azuis simples e aguardavam sua tão desejada nomeação para o exército real da região.

Contudo, mais ao canto, escoltada por dois guardas de armaduras pesadas, estava a jovem Novah, com seus oito anos de idade, a esperar algo que a preocupava.

Suas sobrancelhas estavam cerradas e seus olhos fitavam o chão, sua mente murmurava questionamentos e dúvidas que eram quase visíveis a quem observava. 

E no silêncio de seus pensamentos, uma voz rouca irrompeu a tensão ao redor da pequena pensadora.

– Então você é a princesa bicuda!? – Perguntou Paragor do passado, que havia chegado próximo da pequena Novah enquanto estava distraída.

– Não me trate como criança! Eu sei que você veio me ensinar a matar os outros! – Respondeu a criança Novah, que estava com um rosto emburrado.

– Ora! Além de bicuda é marrenta! – Falou o jovem Paragor, ainda tirando sarro com a pequena Novah. – Mas eu acredito que eu vou te ensinar a se defender, menina.

– Mas o que você acredita não faz diferença!! Respondeu Novah ainda nervosa. – No final eu vou aprender a matar os outros.

– E isso te incomoda? – Perguntou Paragor, com uma aparência um pouco mais séria.

Novah simplesmente virou seu rosto, e vendo a reação da jovem, Paragor deu um sorriso de lado e continuou a perguntar.

– Se você já sabe o que não quer, então talvez já saiba o que quer, não é!? 

Novah continuou evitando um olhar direto. No entanto, seu semblante foi mudando aos poucos para algo mais nostálgico. E Paragor, sempre atento, aproveitou essa oportunidade para chegar ao fundo dos sentimentos de Novah.

– Eu não sou sua mãe, e nem seu amigo, menina! Então você não me deve explicação nenhuma de nada, entendeu? Mas dá pra perceber que vir comigo não faz parte dos seus planos, não é?

Novah continuou de lado e calada. Porém, ao mesmo tempo, ela começou a realmente prestar atenção nas palavras que saiam da boca de Paragor.

– Então porque você não vai lá e fala com a Rainha que não quer vir comigo e segue a sua vontade menina? – Perguntou Paragor. – É fácil! Eu te ajudo.

Novah ficou impressionada com as palavras de Paragor, que iam totalmente contra o que ela imaginava que um superior militar falaria, e assim ela finalmente começou a olhar para Paragor 

Ela realmente estava cogitando largar seus deveres, decepcionar sua mãe e seguir suas vontades. Mas logo a imagem de sua mãe surge em sua mente, a desencorajando de encarar o terrível olhar de desdém que a Rainha, sua mãe, lançava em todos os que não correspondiam com suas expectativas.

– Não… não vou fazer isso! – Respondeu Novah com convicção e também com pesar.

– Hum… Ei menina! Olhe para mim por favor!! – Falou Paragor de maneira calma. 

 

Novah, já desarmada pela compreensão que Paragor demonstrou por ela, faz o que o seu novo tutor lhe pede. E no momento em que ela o encara nos olhos de maneira descompromissada, Novah acaba vivendo, pela primeira vez na vida, o horror de uma intenção assassina completamente voltada para sua direção. Isso leva Novah a mergulhar em uma zona de puro medo e desespero, suas pernas tremiam e não se mexiam, sua respiração se tornava ofegante e seus olhos não conseguiam deixar de olhar para aquele semblante de morte que inundava a face de seu suposto novo professor. Novah estava completamente impotente. Como um coelho que ficava face a face com um leão faminto. 

E após ter certeza que o medo já a havia dominado por completo, Paragor começou a falar com Novah, de maneira friamente calma e compassada.

– Você sabia que… eu tenho permissão da sua própria mãe… para te matar?



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