Volume 1

Capítulo 17: Kengen e Bruxas

O véu da noite já se estendia por todo horizonte visível daquela região, a planície rica em formações rochosas circulares abrigava uma inúmera quantidade de pequenos arbustos secos, que eram quebrados, um a um, por Shiem, na intenção de juntar lenha para a fogueira que iria protegê-los do frio daquela noite. 

Era uma simples atividade que renderia somente alguns poucos minutos de trabalho, no entanto, Shiem se flagrou demorando um pouco mais que o normal. 

A cada planta recolhida, uma mesma preocupação se repetia. O “Será que é perigoso?” Ecoava com receio em seus pensamentos.

Tudo que era desconhecido o assustava, e desconhecer tantas coisas o frustrava. Afinal, como enfrentar armadilhas e ladrões se até mesmo simples galhos o faziam vacilar.

Isso era realmente preocupante para ele. E após refletir um pouco mais enquanto fazia sua tarefa, Shiem entendeu que, mesmo com o temor de incomodar sua companheira, o conhecimento mais detalhado deste mundo era imprescindível para sua proteção individual, e somente Novah poderia lhe ensinar tal conhecimento de maneira confiável até então. 

Assim, decidido a perguntar o máximo possível, Shiem voltou ao acampamento improvisado com a lenha pedida por Novah. E ao chegar próximo a ela, ele falou.

– Aqui está! Onde eu coloco isso?

– Joga tudo aqui nesse canto. E depois pega o suficiente para iniciar a fogueira e coloca ali no meio da área que eu limpei. – Respondeu Novah.

Pondo a lenha no canto, e pegando o suficiente para fazer a fogueira, Shiem buscava um argumento válido para iniciar uma conversa com sua companheira, de forma que, não fosse aleatório demais a ponto de incomodá-la.

No entanto, a fogueira ficou arrumada, e ele ainda não tinha o que falar. Até que, calmamente, Novah se aproximou dele e da fogueira com dois animais semelhantes a coelhos já sem pele e espetados em gravetos individuais. 

Shiem ficou confuso com a visão desses dois animais, já tão bem preparados em tão pouco tempo. Contudo, antes mesmo de perguntar a origem dessas pequenas criaturas, Novah ergueu sua mão direita a frente de seu corpo, produzindo, na palma de sua mão, uma pequena quantidade de luzes cristalinas, que dançavam ordenadamente com a sutileza de um sonho vivido, até o momento de se organizarem em uma pedra fosca de cor laranja, do tamanho de uma bola de gude, para logo depois ser jogada em meio a fogueira. 

Para Shiem, isso foi impressionante. Ele já havia visto Novah produzir tais objetos, mas nunca com tantos detalhes. 

E ao repetir o processo, ela arremessou com um pouco de força a segunda pedra produzida em cima da primeira, que já estava em meio aos gravetos, produzindo um pequeno estouro de chamas, e por consequência, acendendo a fogueira do acampamento.

Esse testemunho era o argumento perfeito para iniciar uma conversa consistente, sentiu Shiem.  

– Você pode fazer isso quando quiser? – Perguntou Shiem.

– Hã? Tá falando das minhas bolas – Respondeu Novah, com um sorriso jocoso.

– HEIM? SUAS O QUE? DO QUE QUE VOCÊ TÁ FALANDO SENHORITA!! – Dizia Shiem, desconcertado pela resposta irônica de sua companheira – Eu tô falando dessas bolas sim, mas desse jeito que você falou ficou muito estranho. 

Há! há! Você ficou incomodado com meu jeito, é? Pois vai se acostumando! E também se eu tivesse bolas? Você ainda iria se casar? Heim!? Heim!? – Provocou Novah, enquanto cutucava o ombro de Shiem com seu dedo.

– Mas… mas o que se casar tem a ver com suas bolas? – Retrucou Shiem, ainda mais confuso.

– Esquece! – Respondeu Novah, com um pouco de receio por ter falado demais, porém, ainda animada por ter encontrado um meio termo entre seus espinhos comportamentais e a vontade irreprimível de conversar com sua nova obsessão sem ofendê-lo. 

– Mas é que… – Insistiu Shiem. 

– … Eu sei o que você quer saber. E o porque quer saber. – Respondeu Novah, encarando Shiem – Mas nem eu sei todos os detalhes… e muita coisa eu não vou conseguir te explicar. Então, sendo assim, vou te explicar o básico do Kengen!

– Ken o que?! – Indagou Shiem.

– Kengen é a autoridade que alguém que obtém a semente tem sobre os aspectos da realidade. Esses truques que eu faço são singularidades do meu Kengen. Singularidades da minha autoridade sobre a natureza. 

– Então você pode mandar na realidade!? – Questionou Shiem, com um semblante bem impressionado.

– Não é isso! – Afirmou Novah. – Meu Kengen é sobre os cristais minerais. 

– Então você pode fazer o que quiser com cristais? – Insinuou Shiem.

– Não!... Eu só posso fazer o que minhas habilidades me permitem fazer. 

–... Como assim? 

– Bom… O Kengen é dividido em dois tipos de habilidades. As inatas: que podem ser invocadas com um simples pensamento ou vontade. E as adquiridas; que só podem ser convocadas através de uma palavra ou frase específica. Geralmente as inatas têm propriedades mais simples e objetivas, diferente das adquiridas, que tem aspectos mais complexos e específicos.

– Mas… então a espada e as bolas de pedra que você cria são as inatas, né? – Questionou Shiem – Porque eu não ouvi você dizendo nada enquanto elas apareciam.

– Isso mesmo! Você entendeu bem. – Confirmou Novah.

– Mas e as suas adquiridas? 

– Bom… se der tudo certo você não vai ver nenhuma. – Respondeu Novah, com um leve sorriso.

– Hum… Acho que entendi… – Falou Shiem, um pouco pensativo – Mas então… como a gente sabe quem tem esse tal Kengen? 

– Essa é a questão! – Evidência Novah – Para alguém como você não tem como saber. E por enquanto é bom que seja assim mesmo! Porque só assim você vai ouvir o que eu falo, correto?!

Shiem, ainda reflexivo, balança sua cabeça em confirmação ao que lhe foi perguntado.

– Que bom! – Afirmou Novah – Então acho que já podemos descansar um pouco. Arrume seu canto perto da fogueira e depois coma e beba alguma coisa logo! Porque a primeira vigia é sua! E quando a lua estiver no topo do céu, você me acorda. 

– … Mas senhorita… só… só mais uma coisa… – Disse Shiem.

– Hum!... Por acaso você também chamava o velho de quem você pegou essa espada de Senhor o tempo todo!? – Perguntou Novah

– HEIM? Mas porque você está me perguntando isso agora? Aquele velho me deixou pra morrer e ainda me roubou! Mesmo assim eu só peguei a espada porque ele sumiu com o meu machado!

– Então é isso! Vou ter que roubar alguma coisa de você para que aprenda a me chamar pelo meu nome, estou correta!? – Questionou Novah, sorrindo com malícia enquanto desta vez cutucava não o seu ombro, mas sim o seu peito, de forma que parecia apontar para o coração de Shiem – E quem sabe, se eu for muito bem sucedida, talvez você até me chame de Vida também! 

–... Seu sobrenome é Vida? – Perguntou Shiem, intrigado pela nova informação – Caramba!... Novah… Vida... Faz sentido mesmo! É um bonito nome, senhorita Novah!

Novah, com um rosto completamente incrédulo, respondeu.

–... Você tá de brincadeira!?... 

– Não estou não! Eu gostei mesmo, senhorita Novah!

– Arf! Porque eu ainda tento?... – Resmungou Novah, em voz baixa, antes de retomar o assunto da dúvida de seu companheiro – Mas e então?… o que você ia me perguntar mesmo?

– Bom… é que… eu… eu estou dependendo da senhorita para tudo! E eu queria pelo menos saber o que é perigoso para poder me cuidar e não te atrapalhar no futuro!...

Ao ouvir o desabafo de Shiem, Novah retornou a sua postura mais séria e o respondeu.

– Eu já te falei que é só me obedecer, mas parece que isso não é suficiente para você! Então acho que você quer que eu enumere os perigos em uma lista ordenada para que você não sofra mais com essas dúvidas, não é isso!?

Percebendo o tom de sarcasmo e repreensão, Shiem ficou em silêncio, franzindo suas sobrancelhas e olhando para baixo em sinal de submissão. O que não impediu Novah de continuar seu monólogo.

– Olha aqui! Nem eu sei os perigos exatos que vão rondam o nosso caminho nessa viagem! Por isso só posso contar com meu discernimento por enquanto! Eu até posso te falar para evitar qualquer soldado, nobre, ou comerciante. Também posso te falar para evitar regiões e objetos da Umbra que encontrarmos no caminho. Mas isso só vai te deixar mais distraído com coisas que você não veria chegar mesmo que estivesse de frente para elas. E é por isso que eu preciso que você preste atenção somente no que eu vou te falar. Entendeu!?

– … Acho que Sim…– Respondeu Shiem.

– Ei! Também não precisa ficar assim! – Falou Novah, com um sorriso mais amigável. – Ou vai me dizer que prefere olhar essas coisas assustadoras ao invés de olhar para mim?!

Shiem, já com um sorriso mais feliz, respondeu a Novah.

– É verdade! Olhar pra você é bem mais legal.

Arregalando seus olhos lentamente e paralisando seu rosto em um sorriso de alegria razoavelmente assustador, Novah tremia para controlar a empolgação de receber um elogio tão direito de seu futuro pretendente.

– Senhorita Novah!?... – Questionou Shiem, com preocupação.

– Hã!?... EU TÔ LEGAL! Eu tô muito legal!... Eu só preciso dormir um pouco. Só isso… É!... É só isso que eu preciso…– Respondeu Novah, enquanto se levantava de maneira rígida e pegava seu saco de dormir em sua mochila.

 E arrumando seu canto para dormir. Ela completava sua resposta.

– Coma sua parte e me acorde quando a lua estiver no topo do céu! 

– Tá legal! – Respondeu Shiem.

E assim passaram a noite, se revezando entre o sono para se protegerem das surpresas da noite que poderíam os estar espreitando. 

Já pela manhã, Shiem e Novah se organizavam Guardando seus utensílios de viagem em suas mochilas, para que pudessem reiniciar esta curiosa jornada. Ele deu um bom gole em seu odre para aplacar a sede e começou a enrolar seu saco de dormir para guardá-lo, enquanto sua companheira desfazia a fogueira e apagava os rastros do acampamento para não serem rastreados com facilidade. 

Com tudo pronto, Shiem comenta com Novah.

– E agora? Para qual lado?

– Por enquanto sempre a nordeste! É para lá que fica a cidade mais próxima – Respondeu Novah, enquanto se espreguiçava.

– E é muito longe? – Perguntou Shiem.

–... Huumm… Acho que mais uns três ou quatro dias de viagem. 

– TUDOO ISSOO!? – Berrou Shiem, com seu queixo caído.

– É isso aí! E é bom pra você aprender e treinar um pouco! Aí você pode ter mais confiança na cidade e não se preocupar mais com os guardas. – Falou Novah, com uma de suas sobrancelhas levantadas.

–... Bom… isso é verdade mesmo… – Comentou Shiem, com a mão no queixo de maneira pensativa.

Tal reação de Shiem também trouxe confiança para Novah, que já se sentia mais à vontade em fazer seus comentários sarcásticos sem ter o medo de ofender seu parceiro.

E terminando seus preparativos para viagem, os dois saem na direção sugerida. Seguindo dentre as formações geológicas de vegetação variada que os cercavam. 

Novah o guiava e informava sobre toda a relva e fauna de que ela tinha conhecimento. Se agachando para entender as raízes medicinais, ou então, colhendo frutas e ervas para pregar sobre suas capacidades narcóticas, ela dava aula para Shiem enquanto seguiam juntos em sua jornada rumo a cidade mais próxima. 

O restante da manhã foi proveitoso. E apesar de toda conversa se resumir a uma aula sobre os efeitos do meio ambiente na região. Shiem e Novah já tinham dado mais passo para a confiança total um no outro. 

– Tudo isso é muita coisa para decorar! – Afirmou Shiem, ainda zonzo depois de tantas informações.

– E isso é só o básico de sobrevivência para essa região! – Respondeu Novah.

– Como você consegue decorar tanta coisa?... Cara! Para conseguir ser esse negócio de Bruxa do Kengen deve ser muito difícil mesmo! 

– Há! Há! Como é que é!? – Perguntou Novah, sem conseguir conter um pequeno gargalhar.

– Ué? Não é difícil não? Eu me perdi na terceira folha!!

– Não é isso, Shiem! Hi! Hi! É que dá onde que você tirou que sou bruxa?! 

–... Há tá!... Desculpe, senhorita! Eu não queria te ofender. É que aqueles caras lá atrás te chamaram de bruxa. E agora que sei mais ou menos sobre o Kengen… então achei que uma coisa complementava a outra… E também tem aquela mulher que me deu os seus olhos, sabe?! Ela também parecia saber de muita coisa sobre a natureza… Então…

– É… Até que faz sentido… Mas vou resumir! – Falou Novah! – Bruxas se utilizam de itens da Umbra e podem ser usuários de Kengen ou não! Logo… eu não sou doida de usar essas porcarias. Até porque você já viu o que fazem com quem se aproxima dessas coisas, não é?!.

– Putz! Que mancada! He! He! – Respondeu Shiem, colocando a língua para fora de maneira descontraída.

– …Hum! Tudo bem! Dessa vez passa gatin… her!... Garotinho!... Mas foi até bom aqueles caras acharem que sou uma bruxa.

– Ué? Sério? – Perguntou Shiem, um pouco intrigado. 

– Muito sério! Traz menos alarme uma bruxa aleatória que conseguiu um item em um desses mercados negros da vida, do que uma usuária de Kengen destituída de suas funções por qualquer motivo suspeito.

– Então você é a segunda opção, senhorita.

– Há!Há!Há!... Sou ainda pior, meu querido – Respondeu Novah, finalizando com uma piscadela maliciosa.

–... Esse frio na espinha é normal entre as pessoas que costumam andar com você, senhorita? – Falou Shiem, com um rosto de sarcasmo e descontração.

– Só com os que não me fazem rir! Mas você tá engraçado por enquanto! 

–... Há valeu! – Respondeu Shiem, com mais sarcasmo ainda.

Mais a frente, o caminho largo em que Shiem e Novah seguiam se bifurcaria em duas estradas distintas. A primeira mantinha-se larga e bem marcada por pegadas de outros viajantes que costumavam passar por esta região, porém desviava-se do curso desejado, voltando sua direção para a região mais ao leste do país. Já a segunda estrada se afunilava dentre as pastagens que insistiam em retomar seu lugar do passado, além de aparentar um certo abandono, onde não haviam rastros nem sinais de qualquer movimentação por aquela região. Contudo, era o caminho que seguia ao Nordeste do país.

– Vamos Reto! – Afirmou Novah!

– Tem certeza? – Questiona Shiem. – Parece que ninguém vai por ali a um tempão.

– É porque, ultimamente, o povo de Velha Turel, que pode viajar, prefere pagar as caravanas que saem da cidade ao invés de ficar a mercê de ladrões igual a gente acabou ficando… mas para ir nessas caravanas tem que se registrar… e isso não vai dar certo para agente nesse momento.

– Hum… Saquei!... – Falou Shiem, enquanto observava com receio aquela trilha abandonada que iriam seguir de agora em diante.

– Qualquer coisa, pula no meu colo – Tripudiou Novah, tomando a frente de Shiem na estrada.

Seguindo em frente, após algumas horas, o caminho, antes cercado de planícies que se entendiam por todo horizonte, agora é guiado por pequenos vales rochosos bem arborizados, com árvores robustas e relva rasteira, além de algumas cavernas ao decorrer da estrada.

Essa mudança de ambiente se tornou um pouco impactante para Shiem, que olhava Novah esperando que seu semblante o ajudasse a identificar o nível de perigo que tal local poderia proporcionar. 

Contudo, ela estava tranquila em seu andar, sempre a frente de seu companheiro desde o momento em que começaram o novo caminho, Novah observava em sua volta com calma, orientando sua atenção a qualquer sinal de interferência na serenidade da natureza ao seu redor.

– E aí? – Perguntou Shiem – Está tudo bem?

– Até agora sim! – Respondeu Novah.

– E você está enxergando bem com esse véu? – Questionou Shiem.

– …Hum… Até esqueci disso. – Falou Novah – Sinal que me acostumei. 

– Isso com certeza! – Afirmou Shiem – Acho até que você dormiu com isso. He! He!

– Acho que si… – Tentou responder Novah, até que algo lhe chamou a atenção.

Shiem, vendo o embargo da resposta de Novah, Logo a questiona.

– O que houve? 

– Sshhhh – Isso foi tudo que Novah respondeu.

Com seus olhos bem abertos, Shiem olhava em volta tentando encontrar a origem do que deixava sua companheira em alerta. Porém, tudo que ele conseguiu perceber foi o silêncio completo.

A princípio isso o tranquilizou, afinal, a falta de ruídos indicava que não havia nada à espreita. Mas… mesmo assim… algo… estava errado. 

Era uma área muito rica em vida animal, por isso assobios, grasnados e chiados sempre os acompanharam durante a passagem por essa região.

Porém, foi neste instante de questionamento que Novah rapidamente olhou para cima ao mesmo tempo que criava uma espada longa do mesmo cristal rosa anterior.

Apesar de ter visto a atenção de sua companheira se voltar para os céus, Shiem não a acompanhou com os olhos e foi surpreendido por uma sombra que eclipsou os poucos raios de sol que iluminavam aquele pequeno vale de onde os dois seguiam para a cidade mais próxima. 

Tal sombra que vinha dos céus desceu velozmente com um rufar de vento que culminou em um grande estrondo de ar ao pousar em um tronco robusto de árvore que estava cortada próxima a Shiem e Novah.

Era um ser gradeoso de pele dura como um couro negro, porém com asas emplumadas negras tão rígidas que pareciam mais serem feitas de metal, e sua calda era longa com a ponta encrustada da mesma pluma metálica de suas asas, além de ser um quadrúpede com garras semelhantes a de um leão gigante e feroz. Contudo, o mais perturbador era sua face. Uma face humana de cor pálida como a neve, coroada com grandes chifres negros como o resto de seu corpo. 

– Mas o que que essa esfinge está fazendo por aqui? – Questiona Novah.

– Já posso pular no seu colo – Finalizou Shiem. Com sarcasmo e medo.



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