Volume 3
Prólogo: O Mais Forte
ALIENOR
Era uma vez um grande herói que lutou contra um dragão ancestral e o venceu. Com a força de seus braços, era capaz de mover montanhas de lugar e desviar o fluxo dos rios.
Naquele tempo, Kordara estava prestes a sucumbir diante das sombras malignas do dragão negro da morte e seus infinitos lacaios demônios que marchavam sobre a carne e ossos dos homens. Mas o herói surgiu, batalhou contra as hordas e liderou a guerra contra as forças do mal.
Após vencer, unificou os reinos e os chamou de Thar, quando foi proclamado rei. O herói se casou, teve um filho, o criou e o deixou para reinar em seu lugar, pois o mal foi derrotado, mas ainda existia.
O herói buscou por aliados corajosos e habilidosos o suficiente para navegar ao continente dos demônios, mas não os encontrou. Então, navegou sozinho até sua embarcação ser destruída por uma tempestade.
Ele nadou pelo Mar Resplandecente, atravessou o Mar de Betume, lutando contra serpentes marinhas até chegar nas praias do território inimigo.
Em Nila Velum, batalhou sozinho contra todos os lordes demônios e os derrotou um por um até encontrar o dragão da morte e vencê-lo em uma batalha que durou três dias e três noites.
Como o mais forte, foi coroado rei pelos demônios, e percebeu que não poderia retornar, ou outro demônio tomaria seu lugar. Portanto, lá tomou uma segunda esposa e teve uma filha, que também se tornou rainha em seu lugar muito tempo depois.
Foi assim que, a paz prevaleceu pelos últimos novecentos anos, por conta dos atos heroicos de alguém que desistiu de sua glória para ser lembrado como vilão e rei dos demônios.
Dessa forma que meu pai me contou. — História era bem melhor quando meu pai as contava — sussurro.
— Disse algo, Alienor?
Levanto meu rosto da carteira e respondo: — Não, professora.
Odeio chamá-la de professora, ela só ensina coisas chatas. Professores deveriam ser pessoas únicas e extraordinárias. Só faço isso porque me obrigam. A verdade é que só estou nesta aula de história também porque minha mãe me obriga.
— Sempre a demônia... — cochicha uma garota para a outra, ao meu lado.
— Me chamou do quê!? — respondo, ao passo que me levando da carteira, a qual faz um barulhão ao ser arrastada.
Toda sala de aula se silencia e me encara. Posso ouvi-los cochicharem tonterias sobre mim, até que a professora toma a palavra. — Sente-se, Alienor. Você já foi advertida quatro vezes. Mais um problema que causar e será expulsa da classe. Já conversei com sua mãe, e ela concordou.
— Sim, professora... — respondo, enquanto volto à minha carteira.
Escuto os risos dos alunos a minha volta, mas nada posso fazer. Desde que Galantur perdeu a guerra, minha mãe passou a governar no lugar de meu pai. Porém nem todos estão felizes com isso, e não posso criar mais problemas para ela.
— Agora, voltando ao tema — aduz a professora a toda a classe. — A era da magia teve seu início há três mil anos e seu fim há dois mil e cem. Alguém sabe qual é o marco que definiu o fim dessa era?
Um aluno ao meu lado levanta o braço, e a professora diz: — Pode falar, Ruan.
— Foi com a queda do Reino de Lumínia, professora.
Idiota, Lumínia é um vilarejo de caipiras aqui ao lado.
— Foi com o fim da Capital da Magia — responde a professora —, naquele tempo, chamada de Lumínia. Correta resposta, Ruan.
— O quê?! — digo sem pensar, e logo tampo minha boca.
Já a professora franze o cenho e cruza os braços diante da lousa. — Já que você quer participar, que tal dizer o que levou à queda da Capital da Magia, Alienor.
Escuto os risos por toda a sala, mas essa eu sei a resposta. Meu pai me contou sobre a Capital da Magia. — Foi por conta de uma criatura que vivia na Floresta de Prata, professora.
— Hahaha! — gargalhadas tomam conta da sala.
Até a professora não se aguenta e passa a rir de mim também. — Xiu! Xiu, crianças... — orienta a professora, e todos se recompõem.
— O que causou o fim do Reino de Lumínia foi a caçada às santas. Isso desencadeou uma instabilidade política generalizada e rebelião do povo. Muitos se mataram em uma guerra civil, outros fugiram. Mas o golpe final foi dado por Galantur que invadiu a cidadela e não deixou pedra sobre pedra.
— Ainda acredita em contos de fadas, demônia? — cochicha Ruan para mim.
— Não é conto de fadas!
— Silêncio, Alienor! — determina a professora.
— Foi meu pai quem contou!
— Aquele fraco que entregou Galantur ao império? — responde o garoto.
— Ele não... — As palavras entalam em minha garganta. Não posso criar mais problemas. Passo a ouvir o som dos dentes rangerem dentro da minha boca.
— Ou se refere ao covarde que morreu?
Bam! Assim que me dou conta, já esmurrei o garoto no rosto, e ele cai junto de sua carteira e materiais no chão. Ruan arregala os olhos e se arrasta para longe com o nariz sangrando.
— Fale de novo do meu pai que eu te mato! — grito e avanço sobre ele, mas alguém me segura. Tento me desvencilhar, porém não consigo. — Me Solta! Eu disse para me soltar! — berro e desfiro um soco.
Só então percebo que acabo esmurrar também o rosto da professora, o qual ruboriza na hora. Ela segura meu pulso com uma mão e leva a outra ao rosto para esconder a marca deixada pelo golpe. — Acabou, está expulsa...
— Aeeê! — ovacionam os alunos.
— Quietos! ou serão os próximos. — A professora volta sua face para mim de novo. — Você não é nada parecida com sua irmã.
Deitada na cama em meu quarto trancado, espero a vinda da inquisidora e carrasca. Desta vez, não haverá escapatória.
Click! Escuto a porta destrancar e abrir logo em seguida, revelando uma mulher alta e bonita, com uma coroa dourada e repleta de joias a enfeitar sua cabeça, minha mãe. Ao lado dela, há uma jovem adolescente, mais velha que eu. — Loise, vá à sala de audiência e diga que me atrasarei alguns minutos.
— Sim, alteza. — Ela se curva de maneira cortês para minha mãe, mas olha com desprezo em seguida para mim.
— Sim, alteza~ — repito em deboche.
Loise vira as costas e continua a caminhar pelo corredor. Já minha mãe se dirige até a mesa de estudos, remove sua coroa brilhante da cabeça e a deposita ali. Então, pega a cadeira e traz consigo até deixar perante mim. Enfim ela se senta e diz: — Diga o que aconteceu.
— É que meio que...
— A verdade.
— Ahm... O Ruan disse o papai era fraco e entregou Galantur ao império. Disse também que ele era um covarde morto.
— Entendo... — ela responde e respira fundo. — Eu sei que foi uma provocação injusta, mas sua resposta foi ainda mais desproporcional. Precisa aprender a se controlar, Alienor.
— Foi muito rápido, mãe. Quando vi, eu já tinha feito.
— Ainda assim, você precisará aprender a se moderar. Até eu tenho vontade de esganar alguns nobres de vez em quando, mas você não me vê por aí ateando fogo no pai do Ruan, não é?
— Não vejo, mas seria engraçado. Hehehe...
Ela olha para a porta e depois para mim. — Filha, eu preciso resolver alguns problemas. Estão esperando por mim. Depois voltarei aqui e terminaremos esta conversa.
— Tá bom, mãe.
— Mas não pense que se livrará do castigo.
— Ah...
— Nada de reclamar. Você merece... — ela se levanta da cadeira e beija minha testa —, meu brilho avermelhado.
— Mãe... você sabe que dá vergonha.
Toc! Toc! Toc! Alguém bate à porta. — Vossa Alteza, perdão o incomodo, mas os nobres estão impacientes — diz uma das servas.
— Já vou — ela responde. — Tchau, filha.
— Tchau, mãe.
Minha mãe coleta a coroa, a coloca de volta em sua cabeça e deixa meu quarto novamente. Então tranca a porta de novo.
Olhos para todos os cantos, e não há nada para se fazer. Bom, há livros, porém todos chatos iguais aquelas aulas.
Vou até a janela e contemplo as montanhas vermelhas lá fora. Ao alcance de minha visão, há um desfiladeiro, é a travessia para o vale dos ossos. O papai disse que me levaria lá um dia, mas acho que agora isso nunca ocorrerá.
Entretanto, algo chama minha atenção. Vejo de longe um pequenino animal correr pela beira das montanhas. Seu pelo é avermelhado e brilha com o reflexo da luz solar, o que dá impressão de que está em chamas. Ele para em frente ao desfiladeiro, olha para os lados e corre para dentro dele.
Debruço-me pela janela do castelo para ver melhor e quase perco o equilíbrio. Caramba, seria uma queda e tanto daqui. São três andares até a rua de pedras, mas acho que me esborracharia toda ao cair. — Hehehe...
Volto a olhar para dentro, mas meus olhos são captados pelos lençóis de minha cama. — Hum... Ainda não estou de castigo, verdade? — Vou até o guarda-roupa e há mais lençóis ainda. — Acho que tive uma ideia, papai.
Se um animal pequeno daqueles consegue, por que eu não conseguiria atravessar o desfiladeiro?
Olho para um totem de bronze fixado na extremidade da rocha com algo escrito nele: Habitat de wyverns de fogo, demônio de classe “E”. Entrada proibida, conforme decreto n. 15, do 3º dia da 7ª Minguante, ano 1706 e.a.
Isso é de... uns quatrocentos anos atrás. Bem, muita coisa mudou nesse tempo todo.
— Você ouviu sobre a princesa? — escuto alguém se aproximar.
— Ah! Parece que ela esmurrou o rosto do filho do Marquês Laurent... Quebrou o nariz do garoto. — São dois guardas em patrulha.
Entro pelo desfiladeiro, mas não há onde eu me esconder. Preciso seguir adiante e assim o faço, passo após passo.
Depois de alguns minutos de uma travessia escura e cheia de teias de aranhas, deparo-me com um vale repleto de ossos dos mais diversos tamanhos, alguns que cabem na palma da mão, outros que parecem arrancados de seres do tamanho de baleias. O solo é feito de uma areia branca com cascalhos.
Abaixo-me um pouco e coleto do solo. Parece ser feito de ossos triturados, não é areia. A uns trezentos metros do outro lado, há uma caverna, e aquele animalzinho vermelho corre para dentro dela.
Decido me aproximar um pouco mais da gruta, já que não vejo qualquer wyvern aqui. Além disso, o papai disse que eles não nos atacam, então não preciso ter medo.
Após me acercar da caverna, escuto um som estridente. Criaaahhh! Olho para a origem e vejo algo semelhante a um dragão sair de trás de uma rocha, com aspecto de morcego e espinhos por toda a coluna vertebral; mas, diferente dos outros, é todo branco e parecido com os ossos que decoram o local — Um wyvern.
Criiiik! Ele reclama na tentativa de me assustar, então balança a cabeça e chacoalha o corpo, produzindo um som assustador do atrito de suas escamas, como guizos de cascavel.
— Eu não tenho medo de você! Tá me ouvindo!?
Mesmo se me atacar, não fará diferença. Eu só crio problemas para a mamãe, e ela já tem a Loise que é bem melhor que eu em tudo. Se morrer aqui, será melhor para elas.
— Sou a rainha dos demônios! Não tenho medo de você! — Pego um pedaço de osso do chão e jogo contra a criatura. Acerto-o bem na cabeça, e ele se vira, fecha seus olhos e volta a abri-los, mas fixados em mim desta vez. Suas pupilas se contraem ainda mais, como a de uma serpente.
Sem qualquer aviso, a criatura salta em minha direção com sua boca aberta e seus milhares de dentes pontiagudos projetados para fora.
— Não! — Com o susto, cubro meus olhos e caio de bunda no chão. Todavia, nada acontece, apenas silêncio. Aos poucos, removo as mãos da frente do meu rosto e vejo a criatura rendida no chão, como se estivesse presa por algo invisível. Ela agoniza, mas não se liberta. — Eu fiz isso?
Sinto uma presença inquietante vinda da direção da caverna. De sua escuridão, vislumbro dois olhos vermelhos e brilhantes que me observam. — Também não tenho medo de você, feioso! — grito para a criatura.
O par de olhos se aproxima e aos poucos sai da gruta, revelando uma raposa pequena e vermelha. Ela desfila com paciência até mim, enquanto o wyvern continua a se debater pelo chão, rendido.
Quando está a dois passos de distância, senta-se no solo e começa a coçar a própria orelha com a pata traseira. — Hahaha! Achei que era um demônio, mas é só uma raposinha fofa.
O animal me encara, inexpressivo, e volta sua atenção ao wyvern, o qual consegue se libertar de suas amarras. O demônio se recompõe, abaixa a cabeça, dá três passos para trás e foge em disparada, saltando pelas cordilheiras avermelhadas.
A raposa vem até mim e me fareja. Depois lambe meu braço com sua língua áspera. — Faz cócegas. Hehehe... Que bonitinha você é — digo e a seguro em minhas mãos, levantando-a para o alto. Mal se mexe, parece de pelúcia.
— Fúria, sim — diz a raposa, com uma voz grave e firme. — Vermilion talvez.
— Espera! Você sabe falar?
— Este sabe fazer tudo aquilo que desejar.
— Você fala estranho. Hahaha! Qual o seu nome?
— Bulgar, o vilão deste mundo.
Deixo-o no chão, e ele se senta ali, com seus olhinhos vermelhos fixos em mim. — Você não parece um vilão, Sr. Bulgar.
— Vilão de férias, sim. Este desejou não mais vilanizar, e o mundo se dobrou para que eu seja aquilo que desejei, pois sou o mais forte.
— Hehehe! Você é meio doidinho, Sr. Bulgar.
— Este não é louco. — Ele arrebita suas orelhas. — Loucura é característica dos fracos. Bulgar é o mais forte; portanto, sábio.
— Foi você que fez aquilo com o wyvern?
— Sim, mas não farei de novo. Eles não te atacarão, desde que você não o faça primeiro. Assim o fazem, porque são fracos.
— Muito obrigada, Sr. Bulgar... Você me ensinaria a fazer aquilo também?
— Por que aprender mais, se não valoriza sua vida?
— Não sei se entendi sua pergunta, mas eu estava com raiva. Acho que se eu morresse, seria melhor para a mamãe.
— Pensa assim porque é fraca, e este não ensina aos débeis. Bulgar pode te ensinar a ser a rainha dos demônios, por um preço.
— Hum... Eu não tenho dinheiro e estarei de castigo por um tempão...
— Este não precisa do ouro ou da prata.
— Então o que o senhor quer?
— Humpf... — Ele coça sua orelha novamente, como se tentasse expulsar suas pulgas. — Bulgar a autoriza a dizer seu nome.
— Meu nome? Alienor.
A raposa caminha até um osso de costela caído pelo chão, o morde e passa a riscar a areia branca até finalizar com um desenho. — O que vê, Alienor?
— Um triângulo.
— Humpf! Faz sentido, mas como Bulgar é o mais forte a chamaremos de pirâmide. Uhum, uhum! — ele resmunga e balança a cabeça.
— Uhum, uhum! — imito-o. — Uma pirâmide.
— Quando você nasceu, foi presenteada com algo de muito valor que é a vida, portanto a colocaremos no alto da pirâmide. — Ele faz um risco no topo dela.
— Sua missão será ficar viva até encontrar algo mais valioso que ela própria. Quando o fizer, coloque-o no topo, deixando a vida em segundo lugar. Esse é o preço que peço para te ensinar a ser a rainha dos demônios.
— Já sei, minha mãe!
— Um motivo tão espetacular quanto qualquer outro, que assim seja. Garanta que ela fique viva e também sua felicidade. — Ele pega o osso com a boca de novo e escreve “mãe” no topo da pirâmide.
— Uhum, uhum! E agora?
— Para ela ficar viva e feliz, você precisa viver também, pois mães são assim. — O Sr. Bulgar escreve “sobreviver” no segundo lugar, então solta o osso e volta a me encarar com seus olhos de rubis. — Agora, definiremos a ordem das demais prioridades, para garantir que você sobreviva...
Peço que deixem suas impressões (👍|😝|😍|😮|😢) e comentem o que acharam deste capítulo,
esse é o melhor presente que um escritor pode receber.
Clique aqui e siga Aelum nas redes sociais