Aelum Brasileira

Autor(a): Marin


Volume 3

Capítulo 82: Túmulo Sem Lápide

GRIS

 

Por mais que eu tente, não consigo lembrar de como tudo começou. Qual foi o motivo do meu desentendimento com Diego? Algo tão banal ao ponto de eu nem sequer recordar? Talvez seja outra peça removida da minha cabeça por Breo, não tenho certeza, e isso me mata.

Olho para as minhas mãos e porto nelas um adorno estranho. Uma caveira sobre uma balança comercial de contrapeso é a gravura constante no pingente de prata. Este objeto é de Cintia, com certeza, e estava nas mãos de pessoas imundas.

Já portei um igual, o qual tentei arremessar no Rio Reluzente, mas não tive a coragem necessária.

Gostaria de odiá-lo e tenho motivos para isso, mas só não consigo. Sempre soube que ele escondia algo de mim, porém preferia acreditar que era para meu bem, que ele guardava segredos para me dizer na hora certa. Entretanto, apenas fui usado para que ele alcançasse outra pessoa.

Eu tive um pai, e ele estava vivo por aí esse tempo todo, enquanto eu disparava flechas dentro da Floresta de Prata. Tive a oportunidade de conhecê-lo e a perdi, porque enganava a mim mesmo.

Vida, morte e o equilíbrio. Ele disse para mim que um caçador mata para viver, mas valoriza a vida mais do que ninguém. Porém parece que só eu seguia tais regras.

Queria odiá-lo, mas não consigo. Em contrapartida, odeio a mim mesmo por ser assim.

— Aqua — pronuncia Kali, com sua mão estendida sobre um balde, e uma esfera de água pura surge e cai dentro dele.

A lumen se dirige até os caixotes roubados, pega dois pedaços de pano limpo, traz para perto de mim e tenta se ajoelhar no chão para mergulhar um deles na água criada por magia.

— Você vai se sujar... — sussurro e estendo minha mão para impedi-la. — Deixe que eu mesmo me limpo.

— Não diga bobagens.

Ela se ajoelha e estende um dos panos sobre seu colo. Depois submerge o outro, o retira e torce.

— Dá sua mão aqui — ela diz, e eu a obedeço.

Não achei que seria tão difícil encará-la depois do que fiz. O que Kali pensaria se soubesse? Pelo pouco tempo que passei com ela, creio que ficaria brava e talvez me abandonasse. Eu não a culparia por isso.

— Não fique me encarando assim, você sabe que eu fico com vergonha — repreende-me a lumen com uma voz serena, enquanto não tira os olhos das minhas mãos, as quais esfrega com o pano úmido e remove as manchas de sangue.

— Desculpe. — Olho para o lado, em direção à fogueira crepitante, local que Alienor está de pé e andando de um lado para o outro.

— Hummm... — murmura a ruiva para que todas as rochas consigam ouvir o seu lamento.

— Ele já deve estar terminando — afirmo.

— Perda de tempo. Sei onde fica o Vale dos Ossos e conheço até essa caverna que você falou, então não precisamos daqueles fedorentos. A gente já sabe onde a Cintia está e quanto mais tempo demorarmos aqui... Humpf!

— Precisamos confirmar se a informação é verdadeira. Se pegarmos o caminho errado, tardaremos ainda mais. Talvez não tenhamos uma segunda chance.

— Talvez não tenhamos uma primeira...

Aaah! Socorro!

Kali encolhe os ombros e solta minhas mãos ao ouvir os gritos. Então, ela mergulha o pano manchado por sangue no balde com água limpa e, com sua cabeça ainda abaixada, pergunta: — Isso é mesmo necessário?

— Ele só faria algo assim se todas as alternativas falhassem.

— Não entendo... — resmunga a lumen, enquanto torce o pano em suas mãos.

— A doutrina dos Karakhans dita que o interrogatório deve passar por quatro etapas consecutivas: Solicitar, barganhar, ameaçar e torturar.

— Você fala coisas cruéis como se fosse uma lista de compras.

— Não era a minha intenção. Em todo caso, sei que Conor só faria isso como última alternativa. É urgente: Cintia está em perigo.

— Sei disso, mas poderia ter outra forma.

— Você não sabe magia de transferir memórias?

Ela balança a cabeça para os lados e responde: — Sei, mas só se o alvo quiser. Além disso, não é assim que funciona. Não é possível roubar memórias dos outros. Só conseguiria transferir algo para eles, não o contrário.

— Não faz sentido, tenho quase certeza que alguém removeu lembranças minhas com magia.

— O seu caso foi de alinhamento negativo, o contrário do meu. Remover um período de memórias é possível, mas tomar para si o conhecimento dos outros não. Ao menos, não conheço uma magia assim.

— Se você não conhece, então provavelmente não existe.

— Não seja bobo, existem muitas coisas que eu não sei.

Assim que termina de esfregar minhas mãos, a lumen pega o pano em seu colo e as seca.  — Pronto, está limpo. Não faça coisas desse tipo sem necessidade — Ela joga os panos sujos dentro do balde, o coleta, vira as costas e leva para longe.

Alienor caminha até mim com passos pesados e aduz: — Agora que acabaram com o namorico, podemos ir?

— Do que você está falando?

— Você é inteligente, mas um idiota às vezes. Deveríamos estar a caminho dela.

— Eu... — Tento dizer, mas ela me interrompe.

— Até parece que você não quer...

— Hey, hey! — alerta Conor, assim que chega. — Eu já acabei, temos o que precisamos. Não vamos brigar entre nós e, principalmente, não vamos dizer coisas que nos arrependamos no futuro.

— Humpf! — A ruiva cruza os braços, vira o rosto para o lado e faz beiço. Então resmunga: — Então vamos sair daqui rápido.

— E quanto a aqueles dois? — pergunto.

— Estão vivos, mas os desmaiei com magia. Acordarão ao amanhecer.

— Machucados? — questiona Kali, ao se aproximar.

— Sim, mas nada fatal.

— Eu vou curá-los...

— Não. Você já gastou muito fluxo, e não sabemos o que nos aguarda — eu digo.

Kali abaixa a cabeça e junta as mãos para trás. — Hum... Não parece certo, mas acho que você tem razão.

— Temos que resolver algo ainda antes de partir — aduz o moreno.

Ah! Lá vamos nós de novo com essa enrolação — contesta a ruiva.

— Não podemos deixar o corpo do Diego assim. Estas terras possuem fluxo negativo, deve ser incinerado. Além disso, não acho que seria bom se descobrissem que temos algum envolvimento com sua morte.

— Conor está certo.

— Sei que ele fez algo ruim, mas não gosto disso. A gente deveria respeitar pelo menos a liturgia da religião dele — comenta Kali.

— Não conheço suas crenças, então só vamos fazer conforme o dogma de Dara e torcer para estarmos certos. Ele será enterrado, mas não terá uma lápide para marcar o local.

— Ele precisa ser cremado antes — diz Conor.

— Alienor, você pode fazer isso?

A ruiva franze a sobrancelha e aduz: — Tá! Só vamos logo com isso.

Esta é a primeira vez que vejo Alienor relutante em atear fogo em algo.

Nos dirigimos à segunda câmara da caverna, local em que o corpo de Diego está.  Ao final desse lugar há um corredor sem saída com aproximadamente vinte metros de comprimento.

Carreguei seu cadáver até o fim do corredor e despejei óleo de lamparina sobre ele, juntamente com trapos, pedaços das madeiras de caixotes quebrados, entre outros objetos infamáveis.

A uma distância segura, Alienor aponta o dedo indicador em direção à pira improvisada. — Ignis — recita, e o fogo se propaga em um instante.

Após alguns minutos, a fumaça e o cheiro de fuligem dentro da caverna se tornam perceptíveis.

— Cof! Cof! — tosse Kali. — Pode ser ruim ficarmos mais tempo aqui.

— Pode fazê-lo agora, Alienor.

— Tá... Só não pense que isso compensa as coisas — ela responde, enquanto estende sua mão em direção ao corpo, ora cremado no fim da galeria e do outro lado da câmara. — Crepta.

O estouro ecoa pela caverna e desmorona todo o corredor em que o cadáver de Diego estava. Algumas estalactites se soltam, caem pelo chão a nossa frente e produzirem um som parecido com cristais quebradiços.

Kali se encolhe em seus próprios ombros e dá dois passos para trás. — Gente, isso é perigoso. Não vamos fazer de novo.

Observo os outros dois bandidos deitados sobre colchões de palha pelo chão. Dormem tão profundamente que até parecem mortos. O cenário ideal seria que assim estivessem. Eles podem nos ligar com a morte e desaparecimento de Diego, mas não posso fazer nada em relação a isso.

Se eu estivesse sozinho, preferiria matá-los também. Ao mesmo tempo, sinto-me bem por não ter que fazer tudo isso sozinho.

— Sim. Já acabamos por aqui. A Srta. Cintia não pode esperar mais.

Caminhamos por toda a Cova Alva sobre os nossos antigos passos. Apesar da volta ser mais rápida, já que não havia risco de sermos detectados, o fato é que pareceu ainda mais silenciosa. Não houve uma troca de palavras sequer, nem mesmo partida de Alienor.

Assim chegamos próximos da saída, evidenciada pela fraca luz da lua minguante, nos deparamos com um casal desconhecido e de aparência inusitada.

Uma mulher bonita sentada em uma pequena rocha com as pernas cruzadas. Ela tem pele marrom e cabelos lisos e pretos, com roupas do povo do deserto, porém com muito menos tecido do que as que vi antes, haja vista seu decote e suas pernas a mostra.

A mulher leva uma cimitarra na cintura e aproximadamente seis adagas presas em um suporte em sua coxa desnuda, aparente pela fenda de sua curta saia. Uma dançarina das espadas e maga de criação.

De pé e ao lado da mulher das terras áridas está um jovem rapaz loiro e elegante, vestido com uma camisa branca de botões, com calças e botas pretas e refinadas. Um mago de magia de morte.

Ambos possuem um colar da guilda em seus pescoços, mas diferente dos nossos, os deles são de prata. Entretanto, o que mais me chama a atenção é que o rapaz segura pelas patas e de ponta cabeça uma ave branca, ou melhor, uma coruja do luar.

— Eu disse que alguém apareceria, Samira.

— Você sabe que não gosto de esperar, Douglas.

 

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