Aelum Brasileira

Autor(a): Marin


Volume 2

Capítulo 73: O Fantasma

KALI

 

Santa, dizem. Especial, ele me disse. Não escolhi por nada disso. Tudo que eu queria era ser uma balseira, igual minha mãe. Navegar pelos rios da Floresta de Prata e enfrentar os perigos dela para conhecer o mundo lá fora. Todavia, tudo isso foi tirado de mim.

Ela voltará um dia, tenho certeza que ela voltará para me buscar. Só preciso suportar essa prisão até que isso aconteça.

Olho pela claraboia do meu quarto, vejo o céu azul com poucas nuvens e o balançar das folhas das árvores lá fora, enfeitadas com diversos insetos brilhantes. Eu quase não saio daqui, salvo algumas exceções para tomar sol ou ter aulas, mas sempre vigiada.

Exceto por minha cama, guarda-roupa, mesa de estudo e alguns utensílios de higiene, não há praticamente nada neste quarto com banheiro. Claro, tenho livros de história e de magia também. Portanto, tudo que eu posso fazer para passar o tempo é estudar.

— Volte a ler, Calíope. Não seja preguiçosa — alerta a lumen, ao passo que arruma seus óculos com as costas da mão.

— Sim, tutora Sibil.

Eu nem posso usar magia ainda. Pode ser que eu nem a manifeste, mas mesmo assim preciso ler esses livros e ter aulas com minha tutora todos os dias.

Plaft! Ela bate com uma régua sobre a mesa. — Leia em voz alta — determina a tutora.

— Nome da magia: C-convergência de luz solar; Descrição: Roga que a luz do sol se foque em um feixe de luz avas... Avas-sa-la-dor; Alinhamento: noroeste, oitavo ciclo de magia de vida, combinado com décimo ciclo de magia de criação.

Plaft!

— Vocalização.

— Astro-rei, soberano dos céus, inimigo da escuridão e joia da coroa da criação. Suplico-te que volte seus olhos aos meus inimigos: Lux Mas Con...

Convetis.

Lux Mas Convertis.

— Correto. Continue sua leitura em voz alta.

— Tutora Sibil, se todos usam somente o final, por que temos de aprender a vocalização completa?

— Você não prestou atenção no Grimório de Introdução à Magia, não é? Eu te explicarei, mas terá de voltar e ler depois.

— Desculpe.

— A vocalização é dividida em três etapas, Calíope. A primeira fase é a descrição, em que dizemos as características do fenômeno, criatura ou objeto que queremos interferir por meio do fluxo. Na segunda fase, proferimos a forma que queremos interferir com eles, é a fase de moldar, dar forma.

— Por fim, a terceira é a denominação, em que recitamos as palavras antigas presenteadas a nós por Kaz Aragon, elas são o nome da magia em linguagem ancestral. Se for o caso de uma invocação, dizemos o nome do ser ou objeto invocado também nessa fase.

— Descrever, moldar e denominar.

— Isso, aquilo que você se referiu é a denominação. De fato, é a mais importante. Após completar o conjuro por diversas vezes, você se acostumará com o fluxo, mas ele também se acostumará com você. Quando isso ocorrer, não precisará mais descrever, moldará apenas com um gesto e denominará com a palavra ancestral.

— Isso quer dizer que eu poderei pular a primeira etapa?

— Não, a magia ainda precisará passar pelas três, sempre. O que mudará é a maneira que você conversará com o fluxo. Entretanto, salvo raríssimas exceções, a denominação precisa sempre ser dita completamente.

— Entendi, tutora Sibil, a recitação completa serve como um treinamento.

— Pode-se dizer que sim, a princípio. Porém, no caso de magias de décimo ciclo ou superior, como é o caso da convergência de luz solar — ela aponta para o livro em minhas mãos —, é normal que os magos precisem da recitação completa sempre, pois é uma magia muito difícil. Chamamos isso de conjuração por ritual, e você estudará melhor sobre rituais no futuro.

Abaixo da descrição da magia há símbolos que indicam os sinais com as mãos necessários para dar a forma ao fluxo.

— Então os sinais com as mãos servem para moldar?

— Correto, são necessários na segunda fase. Porém, com o tempo, você conseguirá encurtá-los e fazê-los quase que simultaneamente com a terceira. Há povos que conseguiram desenvolver técnicas para remover, alterar ou simplificar os sinais também.

Por último, no livro há um desenho representativo da magia, com um feixe de luz que se projeta desde o céu até um castelo parcialmente destruído por onde o raio passa.

— Parece poderosa. — Passo a mão na folha áspera sobre a gravura.

— Muito. É um tipo de magia que somente santos e algumas poucas bestas poderosas conseguem conjurar. Ah! Claro, seu futuro mentor, o Lorde Khan, também consegue. Por isso, você precisa estudar muito, mocinha, pois precisará ser digna dos ensinamentos do grande ancião.

— Talvez magia não seja tão chata assim.

— Olhe o linguajar, Calíope. Volte a ler e termine o Grimório de Magia de Luz hoje, que amanhã você fará uma prova.

— Tá...

Plaft!

— Responda-me corretamente — ordena a tutora.

— Sim, tutora Sibil.

— Humpf! — ela resmunga e se dirige à saída do meu quarto.

Ao passo que sai, vejo que a porta é guardada por dois soldados lumens armadurados do lado de fora. Sibil a fecha e a tranca em seguida.

Olho para o teto branco, iluminado por um cristal. — Será que vou aguentar?

— Nem é tão ruim assim, sua reclamona.

— Como que não? Se passarei minha vida inteira aqui... — Espere! Com quem estou falando? Eu olho para todos os lados, nas paredes, sobre a cama, debaixo dela, e no guarda-roupa, mas não vejo ninguém no quarto. — Será que estou maluca?

— Você tem cara de maluca. Hehehe...

Desta vez, eu percebi. Uma voz masculina veio de dentro do guarda-roupa. Será que devo pedir ajuda aos guardas? Não, eles não acreditarão em mim. Seria impossível alguém entrar aqui. Preciso conferir antes.

Vamos, Kali. Você é corajosa, será uma balseira um dia. É só um guarda-roupa falante e não uma besta!

Acerco-me, abro a porta do móvel de uma só vez e sou recebida por uma cabeça pálida e decapitada dentro dele, com os olhos brilhantes voltados para mim.

— Aahh! — grito e caio de costas no chão.

— Xiu! Não grite... — diz o...

— Fantasma! — berro com todas as minhas forças, ao passo que a porta é arrombada pelos dois guardas.

Os soldados entram com suas espadas em punho, prontos para golpear qualquer ameaça. — Ali! — indico a eles o local. — Tem um fantasma ali.

Assim que olhamos para o interior do guarda-roupa ainda aberto, notamos que não há nada além das prateleiras e das minhas poucas peças de vestimentas.

Um dos soldados olha mim, ainda caída no chão, franze a testa e diz: — Que feio, mocinha. Nós contaremos isso para sua tutora amanhã.

— M-mas, mas é verdade. Tinha uma cabeça cortada ali dentro. Ela falou comigo... — assim que digo, noto quão absurdas são minhas palavras.

Os guardas suspiram, e um deles argumenta: — Crianças, é para acabar... Alguma hora você precisará de ajuda de verdade, e não acreditaremos. — Eles viram as costas e saem, encostando a porta, agora quebrada no trinco.

— Você chama alguém para arrumar isso? — um diz.

Tá! Eu vou lá, cuide das coisas aí — o outro responde.

Que problemão, eles já arrumaram tudo, mas agora estão com raiva de mim e acham que sou mentirosa. — E eu que achei que não poderia piorar — digo, deitada em minha cama.

— Sempre pode piorar. — Olho para o lado e, no centro do quarto, há um rapaz lumen de longos cabelos e olhos prateados, sentado no chão de maneira despojada. Ele exibe a palma da mão para mim. — Não grite de novo, por favor. Tenho ouvidos sensíveis.

Por pouco não dou outro berro, mas me contenho desta vez, dado que não posso mais criar problemas. Além disso, ele parece alguém de carne e osso agora, já sua cabeça está no lugar.

— V-você... é um fantasma?

— Não, eu sou um lumen igual a você, mas até gostei desse nome para ser sincero. — Ele olha para o teto e coça o queixo, pensativo. — Pode me chamar de Fantasma, se quiser.

— Por que você está aqui?

— Ora, é que eu sou um explorador e gosto de conhecer todos os lugares. Aqui é um dos últimos em Ticandar que eu precisava visitar e riscar da minha lista. Por falar nisso... — Ele retira um bloco de notas e um lápis de seu bolso, o qual ele encosta a língua e usa para riscar o caderno. — Agora ficou bem melhor.

— O que você fará quando riscar todos os lugares da sua lista, Sr. Fantasma?

— Irei embora de Ticandar e farei outra, só que muuuuito maior. Assombrarei outras garotinhas por Aelum. Buuuuuuu! — Ele balança suas mãos, imitando uma aparição.

Quase solto uma risada, mas me contenho. Não posso fazer barulho.

— Mas como você fará? Nós não podemos sair daqui...

— Ah, sim! Já tenho tudo planejado. A cada cinco anos acontece uma espécie de batalha. Eu tentei há três anos, mas perdi. Porém haverá outra logo, e vencerei. Com isso, poderei ir embora.

— Será que eu posso tentar também?

— Você tem quantos anos?

— Oito.

— Então não terá como. Se fosse só um pouco mais velha, eu te chamaria para ser minha dupla, mas você precisaria ter doze anos no mínimo.

— Que droga...

Ah! Mas você conseguirá, tenho certeza. Se você estudar bastante e ficar forte, estou seguro que conseguirá vencer. E, se não conseguir com as batalhas, fuja de Ticandar. É o que eu farei, se não conseguir.

— Farei isso então, vou vencer essas lutas e partirei de Ticandar para ser uma balseira.

— Balseira? — Ele coça sua têmpora, pensativo. — Mas não existem balseiros lá fora...

— Não existem? Minha mãe era uma, e quero ser igual a ela. Eles são incríveis, atravessam os rios da Floresta de Prata e enfrentam bestas.

— Eu também quero enfrentar bestas e demônios, por isso já tenho tudo planejado, serei um aventureiro. Parando para pensar, é bem parecido o trabalho de balseiro.

— O que é um aventureiro?

— São uns caras que trabalham para uma guilda. Eles recebem contratos para matar bestas e demônios que causam problemas ou entram em labirintos perigosos para resgatar tesouros antigos. Há exploradores, rastreadores e caçadores de recompensa lá também, mas não são tão interessantes quanto.

— Isso parece ser bem legal. Será que eu poderia ser uma aventureira também?

— Claro que poderia. Façamos assim, eu partirei daqui e montarei um grupo de aventureiros com o nome de... — Ele olha para o teto e faz um bico com a boca, pensativo. — Hum, vejamos... Unidos da Fantasmagórica!

— Pf! Hahahaha! — Tampo minha própria boca e olho para a porta, mas nada acontece. — Que nome bobo, Sr. Fantasma. Parece o nome de uma escola de dança.

Hey! Mais respeito pelo nome do meu futuro grupo! Além disso, é um que eu tenho certeza que não existirá, e você conseguirá encontrá-lo bem fácil. Aí, quando me encontrar, fará parte do meu bando.

bom! Eu encontrarei a Unidos da Fan... Fan-tas-ma-gó-ri-ca. Seremos aventureiros.

Click! Alguém destranca a porta e a abre. — Ouvi barulhos — argumenta o guarda. — Está tudo bem?

Olho para o centro da sala e não há mais ninguém ali. Sumiu como uma assombração. — tudo bem. Eu falava sozinha aqui, estudando. Desculpa, Sr. Soldado.

Ele entra no quarto, observa os livros em minha mesa, espreita todos os cantos, mas nada encontra. — Humpf! Acho que foi só impressão minha. — O guarda sai do recinto, fecha a porta e volta a trancá-la.

Retorno minha atenção ao piso no centro do quarto, e algo branco começa a surgir dali, são cabelos, depois olhos, nariz, boca... O fantasma atravessa o chão de madeira como se fosse feito de água e finaliza sentado com as pernas cruzadas, como se nada tivesse acontecido.

— Espera, isso foi magia? — pergunto.

— Foi... — ele balança a cabeça e solta um sorrisinho safado — magia fantasmagórica. Só fantasmas conseguem usá-la.

— Você inventou esse nome agora.

Pf! Hahaha! É verdade, você me pegou. — O Fantasma estende suas mãos e apresenta dois livros diante de mim. — Toma aqui, esses são para você não morrer de tédio. Posso trazer mais se você quiser.

Enquanto o Fantasma me entrega os objetos, vejo um anel em seu dedo, com quatro joias pregadas neles, das cores branca, preta, vermelha e verde. — Que bonito, Sr. Fantasma.

Ah! Este anel? Meu mestre me emprestou. Isso me ajuda com uma espécie de... uma espécie de doença que eu tenho.

— Você está doente?! Então precisa ir a um médico.

— Não se preocupe, não é esse tipo de doença. Eu já estou quase curado e logo não precisarei mais dele.

— Que bom, Sr. Fantasma. Achei que você iria morrer, não me assuste mais assim.

— Ora, fantasmas vivem para sempre, bobinha. Hahaha!

— Hihihi! Tem razão.

Enfim lembro-me dos livros em minhas mãos. — De onde você os tirou? — pergunto.

— Peguei emprestados da biblioteca do meu mestre. — Ele aponta para o piso.

Um deles possui o título: A Guilda de Aventureiros: Um guia sobre as bestas e demônios mais comuns, por A. B.; O outro detém o título: Arte Milenar: O Ofício dos Balseiros, por Penélope.

— Penélope, esse é o mesmo nome da minha mãe... — digo, ao passo que viro a capa do livro e vejo uma dedicatória na primeira folha.

“Milhões de tesouros carreguei em minha balsa; o mais precioso, transportei em meu ventre. Dedico a você este livro, Kali.”

Hey! Você está chorando? É só um livro.

Buáá!

— Posso levá-lo de volta, se você...

— Buáááh!

Tá! Fique com ele, só não chore. Ai! O que eu faço, o que eu faço!?

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