Volume 2
Capítulo 71: Aprovação
CINTIA
Que raiva, queria saber como eles estão, mas não posso fazer nada além de esperar. — Tsk!
— Vai dar tudo certo, Srta. Cintia. O caçador está com eles, e o caçador é do tamanho de um urso — argumenta Laura.
— Você está certa...
Mas será que eu deveria ter sugerido que buscassem ajuda em Thar ao invés de Ticandar? Onde eu estava com a cabeça? Ticandar é muito perigosa, mesmo com aquele fanfarrão do V. com eles. Vai saber como os lumens agiram em relação ao Gris e Alienor... principalmente em relação à ruiva.
Não queria que eles fossem a Thar por conta dela. A capital imperial pode não possuir bestas como em Ticandar; mas, com a condessa atrás da ruiva, lá seria um lugar ideal para que ela atentasse contra a vida da raposa safada de novo. Além disso, a capital é corrupta, e pessoas podem ser piores que demônios.
— Você falou que é feio roer as unhas, Srta. Cintia.
— Eu sei, mocinha. — Repouso minha mão sobre seu ombro. — Já parei.
— Não tem mais clientes. Eu posso brincar com os meninos agora?
— Está tarde, é perigoso neste horário. Já conversamos sobre isso.
— Ainda tem algumas horas até anoitecer. É só um pouquinho.
— Tá! Pode ir, mas você já sabe...
— Quando o sol encostar nas montanhas — ela gesticula com as mãos e aponta na direção das cordilheiras de Fubuldjin —, eu virei correndo para cá.
— Então vá, mas não saia da cidade.
— Oba! — exclama a pequena Laura, enquanto vira as costas e corre para fora da estalagem, antes que eu possa mudar de ideia.
Estou criando um pequeno monstro, ao que parece.
Está muito perigoso por conta dos demônios. A implantação da guilda na cidade já ajudou bastante, mas ainda é preocupante. Pergunto-me se os pais de Laura e meu antigo cavalariço foram as primeiras vítimas deles. Depois dos três, algumas outras pessoas desapareceram misteriosamente também.
Por alguma insanidade, surgiu um rumor dentro de Lumínia de que os demônios preferem atacar pessoas que falam alto e que dizem palavras de baixo calão. Diante do hábito peculiar desse suposto demônio, ele foi apelidado de Moralista.
Eu até entendo que a mãe de Laura era histérica, assim como a maioria dos desaparecidos, mas Alberto era alguém pacato.
— Tsk!
Por que estou cogitando essa ideia maluca? É claro que não faz sentido algum. Esse povo inventa um mito para cada coisa que não consegue explicar.
— É aqui, seus arrombados! — grita uma voz feminina e familiar do lado de fora.
E por falar em gritar e xingar...
Bram! A porta se abre com tanta violência que eu quase penso que é um demônio, um temor que se concretiza na figura de um ser de cabelos vermelhos, vestida com uma roupa verde, uma manta marrom sobre o ombro e uma fita vermelha a enfeitar seu pescoço.
— Professora! Que saudade! — exclama a demônia e, sem pestanejar, corre em minha direção com seus braços abertos, pronta para me agarra e me matar... de ódio. — Você é sempre tão quentinha... — Ela roça seu rosto contra o meu.
— Sai do meu corpo, demônio — digo, tentando de me desvencilhar da ruiva.
Estou feliz por vê-la curada e cheia de energia, mas ela não precisa saber disso.
— Não diga isso, Srta. Cintia. Seja legal comigo!
Enquanto sou atacada pelo ser demoníaco, outras pessoas entram na pousada. — Me solte, Alienor. Eu preciso atender os clientes... — só depois de dizer, percebo que há alguém que conheço entre eles. — Srta. Verônica? — pergunto.
— Boa tarde, Srta. Cintia — ela responde e acena com a mão discretamente, com um sorriso acanhado no rosto.
— Ah! É verdade, vocês já se conhecem — aduz Alienor e me solta de seus braços para me agarrar pela mão e me puxar até eles. — Venha cá, professora, que te apresentarei aos amigos que fizemos.
Amigos? Desde quando Alienor possui amigos?
— Essa aqui é a Kali — aduz a ruiva. — Ela é uma lumen selvagem que capturamos no meio da floresta.
— O quê?! — exclama a jovem garota, cujo rosto pálido logo fica tão vermelho quanto os cabelos de Alienor.
— Nossa, que garotinha linda você é — comento, ao passo que me aproximo mais de seus olhos esverdeados e das sardinhas de seu rosto. — Você não é muito jovem para sair da sua cidade?
Kali abre a boca para responder, mas é interrompida pela ruiva: — Ela tem quase sua idade, Srta. Cintia. Não é incrível? Olha a pele dela. Aink!
Dou um peteleco na cabeça de Alienor. Já havia me esquecido como que era relaxante isso.
— Não ligue para a Alienor, quanto mais você a ignorar, mais felizes as duas serão.
— Professora, não a ensine a fazer maldades comigo...
Ao lado da garota, há um jovem de um metro e oitenta de altura, de pele morena. A aparência dele é exótica, não condizente com qualquer etnia de Kordara. — E você é o...?
Antes que eu consiga completar minha pergunta, o jovem segura a única mão que eu tenho livre das amarras da garota demônio, a beija e diz: — Contaram-me a respeito da senhorita e de sua estalagem. Porém não imaginei que era tão bela... — ele limpa o pigarro da garganta e complementa, com um sorriso no rosto: — essa hospedagem. A propósito, meu nome é Conor.
Solto minha mão e aponto para o jovem. — Não gostei dele, podem levá-lo de volta para onde o encontraram. Só quero essa aqui que mais parece uma boneca.
À medida em que as garotas riem do meu comentário e o rapaz responde com um sorriso cafajeste, busco pelo par de arruaceiros faltantes. — Onde eles estão? — pergunto.
Verônica recua e abaixa a cabeça, bem como a garota lumen, as quais se entristecem ao ouvir meu questionamento. Não vão me dizer que... — Onde está o Gris?
Nas mãos de Alienor, verifico o colar do garoto. Ela esconde o objeto de mim em suas costas ao perceber que notei. — Ah! Ele ficou naaaa... — sua voz enfraquece até quase sussurrar: — floresta?
— Com o V.?
As garotas se abalam ao ouvir minha pergunta, mas Conor me responde: — O Gris está sozinho, porém ele sabe se cuidar...
— Vocês o deixaram sozinho lá?!
Todos eles se encaram, sem saber o que dizer, até que Verônica responde: —Agora que a senhorita falou... parece uma ideia estranha mesmo.
A ruiva coloca a mão na frente da boca e argumenta: — É que meio que...
— Não ouse mentir para mim! — Aponto para ela.
A ruiva se entristece, volta sua face para baixo e responde: — Tá...
Assim que me dou conta, já retirei meu avental e o arremessei para o lado. — Você, você e você! — indico para Alienor, Conor e Kali. — Virão comigo para achá-lo e não quero saber de desculpas! — Volto-me à loira, a qual se assusta com um pulinho e encolhe os ombros, levando suas mãos ao peito. — Srta. Verônica, cuide da Laura para mim, por favor.
— C-claro, eu cuido.
Passo por eles e caminho até a porta. Ao colocar a mão em meus lábios, lanço um assovio: Fiuuuu! — Laura, volte aqui! — Olho para os lados, em busca da garotinha, e sinto alguém me envolver em seus braços.
— Ah! Aqui está você. Eu preciso que...
— Desculpe, Srta. Cintia. Eu me atrasei.
Seu abraço é tão forte que perco o fôlego. — Conseguiram te curar... — eu sussurro.
— Sim, tudo deu certo. A Srta. tinha que ver aquele lugar, é tão alto, grande e a cidade brilha como o sol, é tão bonita.
— Deve ser mesmo...
— Lá as bestas caminham dentro da cidade e vivem ao lado dos lumens como amigos, é um lugar mágico.
Olho para os lados e não vejo o V. em lugar algum. Enfim correspondo o gesto do garoto, o abraço também e digo: — Está tudo bem, Gris. Agora você está em casa.
Ele está maior agora, quase da altura de Alienor. Seus cabelos também cresceram e já quase cobrem seus olhos. Mas não é a mudança de sua aparência ou de suas vestes que me chamaram a atenção.
— Gris! Você voltou! — exclama Laura, ao entrar na estalagem. — Srta. Verônica! Você também... — ela pula nos braços da mulher loira, a qual a recebe prontamente e a levanta em seu colo.
Então, a miniatura da Verônica olha para todos um por um, mas se espanta com um deles. Ela desce do colo, se aproxima da jovem lumen e diz: — Nossa, seu cabelo é da mesma cor que do Sr. Joatan, que legal! Só que ele é velho... — Ela cruza os braços e bate com o dedo indicador algumas vezes no próprio queixo, pensativa.
— Quer tocar neles? — pergunta Kali, enquanto se aproxima com seu rosto, e seus cabelos deslizam para fora do seu capuz verde.
— Quero! — Ela pega uma mecha e desliza por seus dedos diante dos olhinhos azuis. — Você é de verdade mesmo, moça?
Kali dá uma risadinha. — Eu sou um fantasma. Gosto de assombrar criancinhas. Buuuuu! — Balança os braços, toda desengonçada, imitando uma assombração.
— Hahaha! Eu sei que não é um fantasma. Isso não existe. Você... é uma lumen! — Ela aponta para a menina.
— Verdade, garota esperta. Sou lumen.
Verônica começa a chorar, enquanto vê a conversa das duas garotas. — Está tudo bem? — eu pergunto.
— Por Dara, perdão. — Ela seca suas lágrimas com as pontas dos dedos. — É que eu sou muito emotiva.
— Não tem problema... — Volto minha atenção aos demais. — Pessoal, onde está o V.?
Antes que qualquer um tenha a oportunidade de responder, Gris toma a palavra: — Nós nos separamos. Ele disse que já me ensinou o que podia, mas que é muito perigoso ficar perto dele. Voltamos por meio de uma balsa dos lumens, e ela era muito segura.
— Seus colegas me contaram sobre a balsa... Por que você ficou para trás, Gris?
— Eu precisava fazer algo importante, mas era bem na borda da floresta e não era perigoso.
— Você foi muito imprudente. Espero que não faça novamente algo assim.
O menino de cabelos cinzas olha para o restante dos presentes, e Conor o responde com sinal afirmativo com a cabeça. — Eu... Nós seremos aventureiros, Srta. Cintia.
Ao observar Verônica, ela balança a cabeça para os lados e indica que não é ideia dela.
— Você é muito novo. A Guilda não o aceitará.
Ele pega sua mochila, coloca no colo e remove um papel, o qual ele mostra para mim: — Com a ajuda dos meus amigos, já resolvi esse problema. A sua aprovação seria muito importante para mim, mas eu farei isso ainda que a senhorita não concorde.
— Você sabe que é muito perigoso. Eu te falei isso uma vez.
— Estou ciente.
O rapaz dá um passo à frente, junta suas mãos em um sinal visivelmente militar e argumenta: — Com todo o respeito, Srta. Cintia, mas eu vi a capacidade do Gris e dou minha palavra de que ele está mais que pronto.
Kali balança sua cabeça para cima e para baixo, concordando com o que ele diz. Verônica faz o mesmo, seguida de Alienor: — Uhum, uhum! — ela resmunga, como se a opinião dela tivesse algum valor, pobrezinha.
— Tudo bem, mas tenha cuidado. Não se arrisque mais que o necessário.
— Obrigado, Srta. Cintia. — Ele olha para os demais. — Acho que ainda está aberto, vamos lá?
— Posso ir com vocês? — pergunta a veterana. — Talvez eu possa ajudar em algo.
— Claro — responde o cafajeste do Conor —, sua presença é mais que bem-vinda. Eu conheço pouco a cidade, e posso acabar me perdendo por aí...
— Kali, antes que eu esqueça, nunca achei que você fosse uma espiã de verdade — aduz Alienor.
— Do que você está falando?
— Então, é que...
— Posso ir também, Srta. Cintia? — questiona Laura.
Antes que eu consiga responder, Gris se manifesta: — Eu cuidarei dela, Srta. Cintia. Se você deixar.
— Podem ir — respondo, e eles viram as costas e vão.
Eles sempre se vão.
— Você não tem medo, Gris? Aventureiros precisam matar demônios, e demônios matam gente.
— Claro que eu tenho medo. Eles são assustadores...
Sempre acaba assim, comigo em minha estalagem. Vejo eles entrarem, vejo saírem, mas nunca tenho certeza se voltarão. Tudo que posso fazer é vê-los partir e torcer por seu regresso, como sempre faço. Sou a melhor em não conseguir fazer nada.
Quando me dou conta, já estou com o pingente grotesco do colar em minhas mãos. Olho para ele, e a caveira me observa de volta com seus olhos vazios e ocos. Ela sorri com seus dentes aparentes por conta da falta de pele que os cubram. Que tipo de idiota daria um presente assim para uma mulher?
— Fico feliz que manteve sua promessa — diz um homem a minha frente que acaba de entrar, mas que não percebi até fosse tarde demais para soltar o colar.
Mesmo que seja evidente o fato de que esse homem saiu de uma floresta, ele cheira bem, está com roupas novas, cabelo cortado e a barba aparada.
— Pelo menos um de nós precisa manter suas promessas — respondo.
— Não me afastei deles mais que cem metros durante a travessia. Eu cumpri com minha parte, como disse que faria. Estão vivos, curados e em segurança aqui, ao alcance de suas mãos.
— O que ocorreu entre vocês dois?
— Eu fiz algo imperdoável para ele, e este é o preço a pagar pelo que fiz.
— Ficará por perto agora?
— Não posso. Fui chamado para um trabalho.
— Ah, é? E de que tipo?
— Um daqueles que não posso recusar.
— Esse novo visual tem a ver com o trabalho?
Ele observa suas próprias roupas. Uma calça marrom, camisa de botões e botas. Rústico, algo que se esperaria de um lenhador, porém muito melhor que antes. — Bom, eu disse que mantenho minhas promessas. Essa é uma que fiz.
— Humpf! Quer uma bebida ou veio aqui só para me aborrecer?
Ele se senta no banco a minha frente, ficando só um pouco mais alto que eu e, com um sorriso, responde: — Adoraria beber com você, mas desta vez só vim te aborrecer mesmo e fazer um pedido.
— Sabe como funcionam as coisas nesta estalagem. Eu não faço nada de graça, mas me diga o que você quer, fiquei curiosa.
— Cuide do garoto. Ele é importante para mim.
— Sabe que isso terá um custo — insinuo ao passo que removo alguns pedaços de galhos e folhas presas em sua roupa bonita.
— Diga-me o que você quer.
— Quero que fique vivo e volte aqui para beber comigo quando tiver mais tempo. Venha bem-vestido assim. Ahm... E a bebida será por sua conta.
— Você nunca me pediu algo tão fácil, Cintia.
— Nem você, V.
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