Volume 2
Capítulo 70: Anel de Dissipar
GRIS
Transcorreram-se quase três horas desde o momento em que entramos na Orla Exterior. A escuridão é tamanha que quase me faz esquecer do brilho do Palácio Fúlgido. É contraintuitivo, hoje percebo, que o lugar mais seguro é justamente o mais assustador.
— E o que você fará depois que chegar em Lumínia, Gris? — pergunta Conor.
— Decidi que quero recuperar minhas memórias.
— Encontrar Ariel Beltrate, portanto...
— Ou juntar as trinta mil peças de ouro, aquilo que vier primeiro.
— Não querendo desanimar, mas isso aí é uma fortuna digna de um rei — comenta a loira.
— Você tem razão, Srta. Verônica.
— E como nós vamos juntar essa grana toda, Gris? — questiona Alienor.
— Nós? Achei que depois de Ticandar você seguiria seu caminho.
— Bateu a cabeça? Eu nunca disse isso. Humpf! — Ela cruza os braços e vira o rosto para o lado, fazendo beiço.
Apesar de eu ter certeza que do que ela disse, decido apenas ignorar esse assunto. — Pretendo ser um aventureiro — afirmo.
— Aventureiro? — questiona Kali, com um brilho nos olhos e as bochechas coradas.
— Então eu serei aventureira também, Gris. Uhum, uhum! — convida-se a ruiva. — Onde eu assino? — Ela olha para os lados.
— Creio que vocês gostarão de saber que a guilda abriu uma filial em Lumínia recentemente — comenta Verônica —, por conta dos demônios e tal.
— Eu também quero ser um aventureira — aduz Kali, enquanto se acomoda no banco e se inclina em nossa direção.
Eu nunca a vi tão animada com algo. Kali é sempre tão tímida e acanhada.
— Sei que aventureiros podem ganhar muito dinheiro, mas normalmente isso só ocorre quando alcançam a classe “C” — aduz Conor.
— Ele tem razão — concorda Verônica. — Meu grupo só começou a ver a cor do ouro quando chegou nessa classificação. Apesar que eles causavam tantos problemas que normalmente desembolsávamos tudo para pagar os estragos.
— Hihihi... — Kali dá uma risadinha, escondendo sua boca com as mãos. — Ai! Perdão, é que lembrei de alguém engraçado. Não quis ser desrespeitosa.
— Não há problema — responde a loira.
— Acontece que eu descobri como ter uma audiência com Ariel Beltrate. Se eu alcançar a classe “C” dentro da guilda, então terei uma reunião com a maga de vida.
Kali arregala os olhos ao ouvir minhas palavras e começa a vasculhar seus pertences dentro da bolsa, mas é Verônica quem se manifesta primeiro:
— Agora que você falou, faz sentido. Quando alcançamos o nível catástrofe, Lin foi chamado pela Guilda e passou três dias fora, depois voltou todo feliz, mas nunca nos disse exatamente o que ocorreu.
— Aqui está! — exclama Kali. — Este é um livro da Guilda de Aventureiros que eu tenho, e sempre me questionei a respeito do autor dele, mas nunca descobri quem era. Olhem só.
Ela mostra a capa do livro com um demônio preto canino e uma besta branca voadora desenhados. O título está escrito em linguagem lumen: A Guilda de Aventureiros: Um guia sobre as bestas e demônios mais comuns, por A. B.
— Só pode ter sido escrito por Ariel Beltrate — eu digo. — Afinal ela é a fundadora da Guilda de Aventureiros.
Nossa, que legal. — Kali observa de novo a capa do livro e passa sua mão sobre suas gravuras. — A fundadora...
— Não faz sentido, Gris — aduz Verônica. — A guilda existe há pelo menos três mil anos. Nem sequer lumens vivem tanto.
— A informação é relativamente confiável. Bom, eu não sei muita coisa sobre magia, mas imagino que seja possível ela viver tanto se considerarmos que é a maga de vida mais poderosa do mundo.
— Também acho — aduz Kali. — Se o Lorde Khan disse que ela é uma maga tão poderosa, isso seria fácil para ela.
— Em todo caso, esse é meu plano. Desejo ser um aventureiro para poder encontrar Lady Ariel Beltrate e pedir que ela devolva minhas memórias. Mas só farei isso se Kali vier comigo, pois prometi ao Lorde Khan que estaria ao seu lado aqui fora de Ticandar.
— Você não precisa fazer isso por mim, Gris — ela se encolhe em seus ombros e vira o rosto para o lado. — Nunca quis sair de Ticandar para me tornar um fardo.
— Eu nunca te veria como um, Srta. Kali. Farei porque é certo.
— Obrigada. Porém não deixarei você fazer isso de graça. Quero fazer parte do seu grupo e te ajudar.
— Obrigado, tenho certeza que será muito mais fácil com sua ajuda. E você, Sr. Conor?
— Estarei com Kali. Protegê-la é a missão dada por meu mestre.
— Ai, gente... Vocês me matam de vergonha — aduz a lumen.
— E a loirinha também fará parte do grupo? — pergunta Alienor.
— Seria uma honra, garotos. Porém eu não estou preparada ainda para isso. Creio que ficarei um tempo em Lumínia e depois pagarei uma carruagem para voltar para minha terra natal, Vindervel. Não sei se atuarei como aventureira novamente.
— Eu compreendo, Srta. Verônica. Mas se mudar de ideia, a qualquer instante, será bem-vinda.
— Obrigada, Gris.
— Há mais um problema, pessoal — comento. — Descobri que Malak fazia parte de uma organização muito poderosa. Provavelmente, outros como ele ou mais poderosos me atacarão de novo. Entenderei se quiserem se afastar de mim.
— Isso não muda nada. Já estou decidida — afirma Kali.
— Uhum, uhum! — resmunga Alienor. — Decidida.
— Não pude fazer muito para ajudá-lo contra Malak, mas da próxima vez você terá uma arma a mais ao seu lado — diz Conor.
— Está decidido! — exclama Alienor.
— Xiu! Não faça tanto barulho — digo, e ela tampa a própria boca em resposta.
— Desculpa — cochicha.
— Precisamos escolher um nome então — aduz Kali, toda animada. — Precisa ser um nome bem legal.
— Qual era o nome do seu grupo, Srta. Verônica?
— Ahm... — A loira olha para o piso da embarcação e esconde seu rosto com a mão. — O nome era muito vergonhoso. Eu não sei o que o Lin tinha na cabeça quando escolheu... Prefiro não dizer, se não se importar.
— Hihihi... — Kali dá outra risadinha. — Ele era bobo mesmo.
— Não tem problema. Eu entendo.
Imagino que seja doloroso para ela se recordar de seu grupo, ainda mais que faz pouco tempo que dois integrantes faleceram.
— Pensaremos nisso no caminho então... Ah! Srta. Verônica, eu gostaria de te devolver isso aqui. — Retiro a espada negra e sua bainha da minha cintura e entrego a ela.
Verônica pega a arma com cuidado, coloca sobre seu colo e passa seus dedos sobre o couro da bainha. Ela a segura pela empunhadura e a retira do repouso. A lâmina emite um fraco reflexo roxo-escuro ao espelhar a luz do cristal branco do centro da cabine.
Após admirar a arma em um silêncio cortante, ela respira fundo e finalmente diz: — Você é filho dele, então a arma deve ficar com você.
— Ela foi roubada — respondo. — Não é do meu feitio ficar com coisas roubadas.
Conor escuta isso e coça a própria cabeça, mas não diz nada.
— Esta arma foi comprada com o dinheiro do meu grupo, e eu sou a última membra dele. Portanto, é minha para dizer que será sua de agora em diante. — A maga de vida estende a arma em minha direção, e eu a pego novamente.
— Obrigado.
— Além disso, ela tem muito mais valor na mão de um imune. Lin gostaria que fosse assim.
— Então você sabe...
— Ficou óbvio depois daquela luta e, claro, depois de saber que era filho dele. Essa espada combina com você. Ela tem a capacidade de armazenar fluxo.
— Olha, não desmerecendo a arma, mas é algo comum em espadas mágicas — comenta Conor.
— Você entendeu errado. Ela não é uma espada mágica e não contém uma magia nela. A seletita pode ser imbuída e moldada com uma magia do próprio usuário em uma velocidade incrível, o que permite ser feito durante o combate. Nas mãos de Lin Kari, era capaz de cortar desde rochas até o aço maciço. Na verdade, nunca vi algo que resistiu ao corte...
Assim que termina de falar, Verônica franze a testa e leva sua mão à boca. Por um instante, achei que vomitaria.
— Não sabia que era tão incrível. Pensei que era só resistente, leve e equilibrada.
Veronica limpa o pigarro da garganta e responde: — Apesar do minério ser bem abundante em Fubuldjin, armas feitas dela são raras. O ferreiro que a forjou disse que se rompem muito fácil no processo de temperamento.
— Sr. Conor, eu posso te pedir um favor?
— Claro.
— Você me ensinaria a usá-la?
Eu o vi lutar, é um guerreiro formidável.
— Farei melhor que isso, se você quiser. Eu posso te ensinar o caminho do corvo.
— Caminho do corno? — questiona Alienor.
— Caminho do quê? — pergunto.
— Nunca te ensinaram sobre os caminhos da espada?
Eu balanço a cabeça em negação, e a ruiva diz: — Os guerreiros de Galantur aprendem o caminho da serpente. O Fineas lutava assim, Gris. Era por isso que ele conseguia usar aquela magia, mesmo com uma espada e um escudo em mãos.
E você só me diz isso agora?! Isso era importante!
— O Barathun... — sussurra Verônica — seguia o caminho do carcaju. Vocês o viram usar o Frenesi de Batalha, não é? E o Instinto Selvagem...
— Instinto Selvagem? — pergunto. — Isso tem algo a ver com o fato dele conseguir antecipar as explosões de Alienor?
— Você percebeu... Sim, é uma... digo, era uma capacidade mística do caminho dele: Pressentir o perigo.
— Caminhos são técnicas de espada que ligam o homem à natureza, Gris. O do corvo se especializa na enganação, furtividade e ataque explosivo.
— Você pode me mostrar quando chegarmos em Lumínia?
— Claro, mas já coloque algo em sua mente, você tem que parar de arremessar e largar sua espada. Eu vi você fazer isso diversas vezes, é um erro grosseiro.
— Tem razão, vou parar.
— Ótimo, sua arma é uma extensão do corpo, e você não sai por aí arremessando pedaços do seu corpo. Hehehe.
— Sim... — Ao olhar para uma das janelas da cabine, vejo um orbe de luz esverdeada pairar em meio às árvores lá fora, o qual se destaca em meio à escuridão. O brilho é familiar, e ele me chama.
— Pessoal, já estamos na borda da Floresta de Prata. Eu precisarei fazer algo sozinho aqui e encontrarei vocês depois na estalagem da Srta. Cintia.
— É muito perigoso — aduz Conor.
— Tem razão, mas eu conheço bem este lugar e tomarei cuidado.
— Quer ajuda com algo?
— Agradeço a preocupação, Srta. Kali, mas é algo que preciso fazer sozinho.
— Não se preocupem — diz Alienor. — O Gris sabe o que faz aqui dentro.
— Obrigado pela confiança. — Retiro meu colar de promítia e entrego para Alienor. — Guarde isso para mim, por favor. Eu buscarei logo.
— Tá! Só não demore, ou a Cintia nos matará.
Ao sair da cabine, Boromir deixa seus afazeres e faz um sinal para me deter. — Ainda não chegamos. Espere lá dentro, pois aqui ainda é perigoso.
— Eu vou descer aqui, Sr. Boromir. Muito obrigado pela viagem. — Curvo-me levemente perante ele.
— Vai o quê?! — O balseiro arregala os olhos. — Não, sem condições.
— Pode deixá-lo — diz Kali. — O Gris sabe se virar aqui na floresta.
— Ainda que seja verdade — ele me examina dos pés à cabeça —, não irei até a margem, sinto muito...
— Não precisa — respondo, ao passo que pulo para fora do barco e piso sobre as águas do rio.
— Ahm? — balbucia a lumen e se aproxima da borda da embarcação. — Como você consegue caminhar sobre a água?
— Ah! Isso aqui? — Confio em Kali, mas não posso dizer na frente dos balseiros o que é. — Magia de raposa. Só pessoas com sangue de raposa conseguem usá-la. Hehehe.
— Você inventou tudo isso agora, seu bobo. Hahaha!
— Depois eu te explicarei melhor, Srta. Kali — digo, enquanto aceno para todos.
Eles acenam de volta, enquanto se afastam contra a correnteza em direção a Lumínia. Então, salto sobre as águas e caio perto das margens.
Os insetos estão agitados, bom sinal. Olho para o alto e vejo a pouca luz do sol do entardecer, pego minha bussola e confiro o norte. Estou na área leste da floresta, o mesmo lugar que fica a cabana, território dos felinos.
Assim, caminho em silêncio até uma clareira e sussurro: — Acácia. — Crack! Crack! A casca de uma árvore gigante racha perante mim com um brilho esverdeado. Então seu tronco se contorce e abre até revelar um interior oco, o qual eu adentro sem delongas.
O tronco se fecha em minhas costas, enquanto a madeira se contorce, dando espaço à escuridão, que é quebrada por uma luz verde, a qual revela uma linda mulher de pele negra e cabelos esverdeados, em um vestido feito de folhas.
Ela indica com delicadeza para eu me sentar, enquanto ela própria se ajoelha e se acomoda também. — Gostou do meu presente, filho do caçador?
— Gris.
— Como desejar — ela sorri de forma presunçosa —, Gris.
— A senhorita poderia ter apenas me dito o que ele fez comigo, não precisava brincar com minha mente e me pouparia tempo.
— Não seria suficiente. Eu te observei por um longo tempo, e ambos sabemos quão grande era sua devoção. Você precisava ouvir da boca de todos, inclusive da dele, que ele é um monstro.
— Eu não sei quais são seus objetivos, Srta. Acácia. Em todo caso, eu vim aqui para só para agradecê-la.
— Se arriscou tanto só para me agradecer? Garoto curioso.
— Caso sua intenção fosse me ferir, teria feito há uma semana.
— Visto que já deixamos claro que minha intenção é te ajudar. Também gostaria de dizer que um amigo em comum me pediu para te entregar algo.
— Então é a senhorita a quem ele se referia...
Como resposta ao meu comentário, a dríade repousa sua mão sobre solo, e dele passa a brotar uma planta que cresce até a altura de minha cabeça, cria um botão e desabrocha em uma flor de rosa vermelha com um pequeno objeto dourado no centro. — É o presente que ele pediu para te entregar. Pegue-o.
Coleto o artefato do meio da flor e logo percebo se tratar de um anel com cinco joias pregadas nele, uma maior e cinza no centro, outras branca, preta, vermelha e verde nas extremidades.
— O que é?
— Um anel mágico. Possui uma magia de fluxos opostos: Dissipar. Coloque-o no dedo, toque três vezes com seu indicador, e ela se ativará. Toque de novo três vezes, e ela se desativará. Enquanto ativada, você não manifestará magias de nono ciclo ou inferiores.
— Caramba, obrigado. Antes eu usava a promítia para isso, mas este anel será bem mais prático.
— Mais do que prático, ele inibirá somente magias. Você poderá usar aquela técnica imunda que Ele te ensinou.
— Impetus.
Ela balança sua cabeça para cima e para baixo, ao passo que eu coloco o anel no dedo médio da mão direita e o toco três vezes. Em resposta, suas pedras emitem um brilho tênue.
— Cuide dele, é um objeto único.
— O que eu tenho que dar em troca?
— Nada, é um presente. Ele pediu apenas para que você não se desfaça dele. Mantenha-o consigo, sempre.
— Pode deixar, cuidarei dele para sempre. Um dia, espero conseguir retribuir sua ajuda, Srta. Acácia.
— Eu também.
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