Aelum Brasileira

Autor(a): Marin


Volume 2

Capítulo 69: A Balsa

GRIS

 

— É aqui — afirma Kali, a qual toma a dianteira e se vira para nós. — Docas da ala norte.

Como dito, estamos no térreo da parte norte de Ticandar, área das docas. Eu estava muito preocupado, pois passamos do meio dia e para atravessarmos a Floresta de Prata precisaríamos caminhar pelo anoitecer, o que é muito perigoso. Entretanto Kali me tranquilizou, pois há uma alternativa mais segura.

Aqui, há diversas balsas de pequeno e médio porte, distribuídas por uma dezena de píeres feitos de rochas que se prolongam por uns cinquenta metros rio a dentro.

As maiores possuem uns vinte metros de comprimento de formato retangular e com uma cabine no centro, e todas são feitas de madeira. Entretanto, são bem diferentes dos barcos que vimos em Lumínia. Estes até parecem esculpidos de uma peça única de árvore gigante, ou era o que eu acreditava. Parando para pensar agora, acredito que foram feitas por magia de criação.

Há um cristal ligado a um artefato na parte traseira das embarcações maiores, então creio que se movam por meio de magia. Quanto as pequenas, vejo os balseiros navegarem por meio de uma espécie de remo grande que toca o fundo do rio.

— Tem certeza que eles nos deixarão? — pergunto.

— Sim, tenho certeza — responde a lumen. — Os balseiros só não podem trazer estrangeiros a Ticandar, mas levá-los embora eles podem.

Um dos lumens nos vê, sai de um dos barcos maiores e vem até nós. — Srta. Kali, eu já disse que não podemos te levar nem para dar uma volta, não adianta mais insistir. Já recebemos até ordens vindas da Alta Câmara especificamente sobre você.

— Sr. Boromir, desta vez é diferente. Não quero só passear, tenho passagem permitida para fora. — A lumen levanta seu punho e apresenta as costas de sua mão, onde agora há um anel dourado. — Eu tenho a permissão do Lorde Khan.

O lumen analisa o objeto e arregala os olhos. Ele nos espreita um por um, desconfiado, e pergunta: — Todos vocês vão?

— Todos — eu respondo. — Somos cinco no total.

— É uma moeda de ouro por pessoa. Porém, não cobrarei de Kali, então são quatro moedas pela passagem até Lumínia.

— Obrigada, Sr. Boromir.

Coleto as quatro moedas de minha algibeira e entrego ao lumen. — Aqui estão, Sr. Boromir — digo.

— Certo, podem entrar e se acomodar. Não toquem no cristal branco e falem baixo durante o trajeto.

Todos olhamos para Alienor, mas ninguém diz nada. — Que foi? — ela pergunta e, sem entender, coça sua cabeça.

— Qualquer dúvida, perguntem a Kali ou para mim.

É a primeira vez que subo em um barco e, no momento que piso em seu convés, ele balança em minha direção. É grande, imagino que barcos menores sejam ainda mais difíceis se equilibrar.

Todos subimos a bordo, salvo uma determinada pessoa de cabelos ruivos, a qual está a um passo do barco. — Venha, gatinha, eu te ajudo — diz Conor, com um sorriso no rosto, ao estender a mão para ela.

— Sai fora — ela responde e dá um tapinha na mão de Conor. Depois a ruiva pisa com seu pé esquerdo sobre o barco para checar, mas recua de novo.

— Alienor, tem medo de barcos? Você sabe até nadar.

— Eu sei nadar, mas isso aqui é totalmente diferente! — Ela cruza os braços, vira o rosto para o lado e faz beiço. — Humpf!

— Fracote — provoca Kali, enquanto coloca suas mãos na cintura a abre um sorriso. — Tá com medinho, é?

— Vai cagar!

— Você parece bem acostumada, Srta. Kali — comento.

A lumen leva suas mãos para trás e observa a embarcação com uma certa melancolia. — Minha mãe era balseira também. Ela me levava para passear nos dias de folga, em torno de Ticandar, quando eu era bem pequena.

Verônica coloca sua mão no ombro da garota. Elas se encaram, mas não dizem nada.

Enquanto isso, Conor leva a mão ao queixo e, pensativo, sugere: — Que tal se eu te desmaiar com magia, ruiva? Aí, você nem perceberá nada. Pode deixar que eu cuido de você durante a viagem. Hehehe. — Ele esfrega as mãos.

— E que tal se eu te explodir pelos ares e depois atear fogo nos seus restos?! — Os três balseiros param de ajeitar a embarcação, olham para a ruiva e fazem cara feia.

— Hehehe. É só brincadeira dela — eu digo, e eles volta com seus afazeres. — Alienor, você é a garota mais forte que eu conheço. Isso é fácil para você — Estendo a mão para ela.

A ruiva observa meu gesto, pega minha mão e sussurra: — Tá... — Então dá seu primeiro passo e entra na embarcação.

Ela enfrentou um poderoso usuário de impetus. Foi praticamente a primeira subir naquele elevador, que era muito mais perigoso. Já pulou de um penhasco, com um ferimento fatal, no Rio Magenta. Todavia, tem medo de barcos. A mente de Alienor deve ser uma viagem muito doida.

Tuc! Levo um peteleco na testa. — Ai! — resmungo.

— Você está pensando idiotices que eu sei — afirma Alienor.

— Podem ir para a cabine — orienta Boromir, ao apontar para o centro da embarcação. — A Srta. Kali já sabe como funciona tudo aqui, mas qualquer dúvida é só me chamar.

— Muito obrigada, Sr. Boromir — responde Kali. — É por aqui pessoal.

Somos guiados pela lumen até a porta da cabine central. Ao abri-la, nos deparamos com uma sala com uns vinte metros quadrados, com bancos de madeira nos cantos, três claraboias nas paredes e um cristal branco reluzente no centro protegido por uma grade de metal.

— É uma pedra mágica? — pergunto.

— Sim, ela gera a mesma magia que protege Ticandar das bestas, mas em uma intensidade menor.

— Que legal, Ticandar tem um monte de pedras mágicas.

Ai... acho que vou vomitar — reclama Alienor.

Ah! Isso acontece às vezes — explica Kali, ao passo que toca o rosto da ruiva. — Fique parada... Sanari.

— Passou... Que quentinha sua mão. Dá ela aqui — A ruiva a segura pelo pulso e leva a mão de Kali para sua outra bochecha.

— Pare Alienor, todo mundo olhando.

Navegamos na balsa dos lumens por toda a Orla Interior. Durante o trajeto inicial, podíamos conversar, pois estávamos dentro da magia de Ticandar. Porém, na maior parte, precisamos ficar em silêncio.

Claro que Alienor não perdeu tempo em fazer um monte de gestos para me provocar, e algumas vezes ela quase esqueceu de fazer silêncio, todavia a viagem foi tranquila.

Quanto mais longe de Ticandar, maior é a escuridão. Os vaga-lumes prateados diminuem gradativamente à medida em que navegamos pelo Rio Reluzente em direção à Lumínia, tornando a Floresta de Prata cada vez mais sombria e tomada por uma névoa.

— Agora estamos na Orla Exterior. Aqui vocês já podem conversar, só não exagerem com o barulho.

— Obrigada, Sr. Boromir — responde Kali, e o balseiro fecha a porta da cabine.

— Você falou mais cedo que sua mãe era uma balseira... — eu comento.

Queria perguntar onde ela está e se Kali se despediu antes de sair da cidade, mas Verônica segura meu pulso e me interrompe.

— Acho que é um assunto delicado, Gris — alerta a loira.

— Está tudo bem. Eu já superei isso... Minha mãe era uma balseira e morreu trabalhando, é um ofício perigoso. Quando eu tinha uns seis anos de idade, ela saiu em uma viagem para o Porto de Lumínia, ao sul, e nunca mais voltou. Creio que algum acidente tenha ocorrido dentro da Floresta de Prata.

— Eu sinto muito — digo.

— Obrigada. Já faz quase vinte anos isso. No começo, eu esperava por ela todos os dias, acreditando que retornaria a qualquer momento para me buscar; mas, com o passar dos anos, entendi que isso nunca aconteceria.

— Espero que esteja nos braços de Dara — comenta Verônica.

— Obrigada.

— E seu pai? — eu pergunto.

— Gris, não seja inconveniente — diz Alienor.

Logo você a dizer isso?!

— Nunca o conheci. Minha mãe nunca falou para ninguém sobre ele. Ela voltou grávida em uma de suas viagens e me criou sozinha. Meus avós maternos morreram há muitos séculos, e não os conheci também.

— Você é lumen, não é? Seu pai deve ser um, imagino.

— O Lorde Khan sabe quem é, mas se recusou a me dizer. Só disse que é lumen e um criminoso. Nos festivais que eu participei, o telão dizia que eu era lumen, então acho que você está certo.

— Pensa em tentar encontrá-lo? — questiona Conor.

— Não, eu não tenho qualquer pista. Além disso, ele nunca demonstrou interesse, então tenho medo de achá-lo e descobrir que ele não liga para mim.

— Sei como é... — respondo. — Você conheceu meu pai, não foi?

— Sim, ele foi meu primeiro amigo. Depois que minha mãe desapareceu, eu passei a viver em um orfanato em Ticandar, mas quando tinha uns sete ou oito anos, o Lorde Khan percebeu que eu havia nascido... com algo diferente. — Ela olha para suas próprias mãos.

— Foi no orfanato que você conheceu o Lin? — pergunta Verônica.

Uhm, uhm... — resmunga e balança a cabeça. — Não, eles me tiraram de lá e passei a viver no andar mais alto de Ticandar, reclusa, e só interagia com alguns poucos lumens que eram autorizados a se aproximar de mim. Foi lá que eu conheci Lin Kari.

— Aquele arruaceiro teve permissão para entrar em um lugar assim?

— Não, mas o Lin nunca precisou de permissão. Ele sempre fez e foi onde quis — explica Kali, então ela se escora no encosto do banco, ergue sua cabeça e passa a admirar o teto da cabine.

— Parece o Lin que eu conheci — diz Verônica.

— E você, Sr. Conor, o Lorde Khan disse algo sobre seu irmão — eu comento.

Ah! Sim, eu tenho um irmão mais velho, seu nome é Laofan. Ele é incrível, e você gostaria dele. Era o garoto mais corajoso da Aldeia de Hulha, e... Ele é muito forte, nasceu para ser um alfa.

— Ele também podia se transformar naquele demônio, igual a você?

— Eu... — Conor franze a testa em tristeza e olha para o lado, tentando esconder o rosto — não me transformei. Aquilo foi uma invocação, mas não farei de novo, não se preocupe.

Hey! — exclama Alienor — Seu palerma, eu sei que não foi uma invocação. Todo mundo sabe que você se transformou.

— Alienor, não seja assim — diz Kali.

— Então é verdade — digo —, aquele demônio era mesmo você, Sr. Conor. Foi muito maneiro! — Conor volta sua face para mim e arregala os olhos. — Você consegue fazer de novo?

— Ahm? — O rapaz inclina a cabeça para o lado, confuso. — Você não medo?

— Claro que tenho. Eu quase desmaiei naquela hora, mas era você...

— Rá! — Ele se inclina para frente, apoiando-se em seus joelhos, pensa por um tempo e diz: — Seu esquisito. Hahaha!

Olho para a Srta. Verônica, e ela aduz: — O quê? Aquilo foi medonho. Nunca mais quero enfrentar algo assim. — Ela dá de ombros.

Kali concorda com a loira, acenando com a cabeça, toda acanhada. — Só o vi de relance, mas era um demônio assustador.

Ué! Até parece que vocês nunca viram um demônio... — comenta Alienor.

— Você não tem moral nenhuma para falar, sua barcofóbica — provoca Kali. — Humpf! — Cruza os braços e vira o rosto.

— Humpf!

— Mas, Sr. Conor, como você consegue usar tantas magias de alteração corporal? — eu pergunto. — Eu sei que magos de criação se especializam em uma ou duas...

— É verdade, foi muito estranho — concorda a loira. — Os magos de criação mais talentosos da Faculdade de Magia conseguiam usar no máximo três, mas eu vi você usar umas cinco diferentes pelo menos.

— Concordo — diz Kali. — Eu só consigo duas também: A transformação em lobo de prata e a celeridade felina. O máximo que vi alguém conseguir foram quatro, e é um dos anciões de Ticandar. Claro, o mestre Khan consegue várias também, mas não tem como comparar.

— Caramba, o Sr. Conor é tão bom assim?

Ain... assim vocês me deixam com vergonha, seus bocós. — Ele leva as mãos ao rosto e se contorce como uma serpente, todo envergonhado. Todavia, recobra sua compostura e diz:

— Às vezes, surgem pessoas como eu, que podem usar magias de alteração com facilidade. O Lorde Khan chama isso de Dom da Metamorfose. Meu mestre viu isso em mim um dia pelos olhos de um Karakhan.

— É por isso que você pode assumir a forma de outras pessoas?

— Sim, mas o problema é que eu tenho muita dificuldade de usar magias de criação externas. Só consigo conjurar uma arma simples ou criar aquele clone de barro, por exemplo, mas é só.

— Que maneiro. Mesmo assim, magias de alteração são muito fortes.

— Uhm... — resmunga Alienor. — Eu queria fazer essas coisas legais também. Até a sardenta ali consegue usar magia de luz...

Me chamou do quê?!

— Vocês todos são muito talentosos — diz a loira. — Incluindo você, Alienor. Eu nunca vi alguém da sua idade conjurar magias tão complexas e na velocidade que você faz.

— Obrigada, Srta. Loirinha. Enfim alguém que sabe apreciar a arte das explosões. Mas eu devo isso a minha mãe, ela teve muita paciência... Ah! E eu devo muito disso ao Sr. Bulgar também.

— Senhor quem?

— Sr. Bulgar. É aquela raposa de fogo selvagem que eu falei para você, Gris.

— Você tem um familiar também? — questiona Kali.

— Familiar? Não, o Sr. Bulgar não é um familiar, ele é uma raposa de fogo selvagem e falante, muito poderoso. Até os wyverns de fogo têm medo dele.

Todos nós nos entreolhamos. Conor franze a sobrancelha, mas sou eu o primeiro a dizer: — Alienor, você prometeu que pararia de mentir.

— Não é mentira. Eu posso te levar até ele quando formos em Galantur. Apesar que ele não gosta muito de visitas... — Ela leva seu indicador ao queixo e fica pensativa. — Por outro lado, ele também disse que se eu fizesse um amigo, deveria apresentá-lo, então acho que não terá problema. A verdade é que o Sr. Bulgar é um pouco confuso e difícil de entender às vezes.

Se Alienor diz que alguém é confuso, então deve ser grave.

— Então está combinado — respondo. — Se algum dia formos a Galanthur, leve-me ao Sr. Bulgar, pois quero conhecê-lo.

— Combinado. Tenho certeza que ele adorará te conhecer. Será muito maneiro. Uhum! Uhum! — Ela balança a cabeça como se tentasse acomodar as ideias malucas lá dentro.

 

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