Volume 2
Capítulo 27: A Areia da Ampulheta
VERÔNICA
É sempre assim, ele age por impulso, e nós temos que arrumar a bagunça depois.
Falei para ele não chamar a atenção na taberna, pois os anões são sempre bárbaros e inconsequentes, mas é como pedir para a tocha acesa não tocar no barril de pólvora.
O que ele faz em resposta? Os chama para uma competição de beber cerveja. Esse canalha, ele é sempre óbvio, impulsivo e irritante, maldito seja.
O que se faz quando chega em uma terra de anões? Os desafia a tomar cerveja!
Como se não fosse suficiente, os venceu ainda por cima, então começaram a brigar como um bando de idiotas.
Agora estamos aqui, precisamos levantar um dinheiro rápido para pagar pelos estragos, ao invés de focar no que importa.
Hum... Onde será que ele guarda tanta bebida, afinal ele deve ter o que, um metro e setenta de altura? E é bem esbelto ainda por cima.
Trum! Ele desaparece e reaparece ao meu lado.
— Se me olhar muito, vou pensar bobagens, Verônica — diz o belo lumen, depois de perceber que é observado por mim.
— Você sabe como eu te acho irritante, quando você começa a fazer esses truquezinhos aí.
— Ah, vamos lá! Não fique brava. Esta aqui é a nossa aventura, e não é para isso que nos aliamos? Pense nisto como um breve contratempo, o qual servirá de base para uma ótima história no futuro e vamos dar risadas aos montes, ao passo que tomamos mais cerveja, brigamos e quebramos tudo novamente.
— Humpf.
O sorriso dele é tão bonito, e tenho que admitir que é bem divertido fazer parte deste grupo. É difícil de argumentar contra alguém assim.
— Pare de irritar a Verônica, ou ela não vai querer te curar depois. Além disso, não use os saltos, pois nós não sabemos ainda qual a nossa tarefa e pode ser que qualquer fluxo faça falta — diz Barathun, nosso companheiro anão.
Barathun possui em torno de um metro e sessenta, ele é um gigante pelos parâmetros dos próprios anões de Fubuldjin, sua terra natal, a qual estamos agora. Possui cabelos loiros e curtos, também uma barba longa e bem cultivada. Ele leva consigo uma armadura pesada, completa, um escudo torre e um martelo de guerra, ambos enormes e pesados, mas ele os manuseia com facilidade.
É nossa confiável muralha e força bruta, porém o que mais o destaca é sua grande sabedoria, principalmente em batalha.
— Deveria ter vergonha de si mesmo, Lin Kari, pois alguém, tão mais novo que você, é visivelmente mais sábio.
Lin passeia em minha direção, sem desviar seu olhar dos meus olhos. Tanto eu, quanto o anão, não fazemos nada além de observá-lo. Ele é tão gracioso, que chega a ser quase hipnótico ver seus movimentos.
É semelhante a um belo tigre albino que se aproxima de sua presa para emboscá-la, e me odeio por não conseguir impedi-lo.
— Ora, você diz que não é sábio querer aproveitar cada segundo que temos? A areia da ampulheta não para em momento algum, e será que não sou sábio por querer contemplar cada grão dela, enquanto os observo caírem de forma tão bela? — diz o galanteador lumen, o qual está agora a centímetros de mim.
Seus olhos prateados quase me fazem esquecer que estamos na penumbra da parte subterrânea da Capital do Aço. Ele está tão perto que quase sinto a sua respiração, e ele só desvia o olhar lentamente para contemplar minha boca.
Por impulso, eu o imito. Olho para seus lábios avermelhados e depois para seus cabelos brancos, longos e lisos.
Viro o rosto, por vergonha, e cruzo meus braços para impedi-lo de se aproximar mais. Estou segura que meu rosto está todo vermelho agora, o que me deixa ainda mais envergonhada e irritada!
— Cof! Cof! Os pombinhos não esqueceram do anão aqui, verdade?
Obrigada, Barathun, pois achei que morreria aqui.
— Hum... Devo admitir que é bastante areia, mas eu acho que se eu fizer algumas viagens... — comenta Lin, na medida em que analisa o corpo arredondado do anão.
— Muito engraçado, muito engraçado. Mas vamos deixar este papinho para depois, pois já chegamos à guilda. Não vamos esquecer do Filemon, pois se não levarmos o pagamento para o dono da taberna, ele lavará canecas e limpará o chão pelo resto da vida dele.
Enquanto eles falam, eu sinto algo sinistro e parece com uma maldição, por isso olho para os lados e pelas ruas para procurar a origem. Assim, eu vejo, em um telhado distante, vários tentáculos negros e translúcidos que se movem de forma frenética.
— Hey, tá zureta?! Eu disse para entrarmos logo, pois Filemon vai nos matar se demorarmos muito — diz Barathun, enquanto me puxa pelo braço. Desvio o olhar e, quando procuro novamente pelo telhado, já não vejo mais nada.
Deve ter sido impressão minha, pois a escuridão da caverna é gigantesca.
Assim, entramos na Guilda de Aventureiros de Fubuldjin, ao passo que percebo todos os presentes pararem imediatamente o que fazem, se calarem, e nos observarem. Creio que as histórias dos nossos feitos chegaram até aqui. Apesar que eles possuem um conterrâneo em nosso grupo e isso deve ter facilitado um pouco.
— Caramba, aquele ali é o Barathum, o matador de vigias.
— Sim, é ele mesmo, conheço ele desde pequenino. Apesar que ele era até que bem grande até naquela época.
— Ouvi dizer que o grupo deles é de nível catástrofe — comentam os anões pelo salão.
É, realmente eles nos conhecem. Recentemente matamos uma horda de vigias, dentro de um labirinto, e o completamos em sequência. Depois disso, nosso grupo foi reconhecido pela guilda como catástrofe.
— Vamos até o balcão, pois precisamos pegar uma missão com uma recompensa bem alta — diz o lumen do nosso grupo.
— Sim, vamos.
Agora entendo o motivo do Lin ter tomado a dianteira para pegar a missão, tendo em vista a bela atendente que ali se encontra. Pelos seus traços, deve ser uma humana de Thar, pois possui cabelos pretos e corpo bem atlético.
— Ai, Sr. Lin, eu disse que não podemos abrir exceções, você vai me complicar de novo.
— Vamos lá, Bianca, me ajude nisso, por favor. Eu prometo lhe compensar depois, afinal nós estamos prestes a realizar um trabalho que vai nos remunerar muito bem. Poderei comprar aquele par de brincos que você disse que queria e, também, ninguém vai notar se uma única missãozinha parar na minha mão. Além disso, você sabe que eu sou bom em guardar segredos.
— Sr. Lin, você é sempre assim, não é? — responde a bela atendente, toda envergonhada, na medida em que pega sorrateiramente uma missão e entrega a Lin.
— Tsk! — deixo escapar minha indignação, a qual é respondida por um belo sorriso do lumen.
Esse idiota, ele vai ver depois. Na hora que vier sangrando e todo ferrado, eu vou deixá-lo sofrer.
— Bom, e essa missão aí, o que temos que fazer? — pergunta o anão.
— É uma razoavelmente perigosa, mas nós conseguiremos. São alguns golens, que os anões perderam o controle. Eles obrigaram os mineradores a deixarem uma mina de seletita.
— Seletita, sua espada é feita disso, não é, Lin? — pergunto a ele.
— Sim, o material negro da seletita é delator. É um metal muito resistente, leve, bem raro e caro, por isso que eles querem reaver a mina o mais rápido possível.
— De fato, faz todo sentido pagarem bem pela missão, mas não faz tanto sentido ser de nível catástrofe.
— Isto é porque eles querem que matemos os golens, mas sem danificar as estruturas da caverna. Todavia, isso será como um passeio no parque para nós, não é mesmo? — indaga Lin.
— Creio que sim. Pois bem, vamos lá. Caso contrário, o Filemon vai ficar de mau humor.
— Vamos — respondo.
Ainda não chegamos às cavernas, mas estamos agora bem distantes da cidade anã. Aqui é uma vasta gruta, tão grande que posso ouvir os ecos dos nossos passos repercutirem por ela, mas vejo muito pouco a minha frente.
Para os outros dois é mais fácil, pois eles conseguem enxergar melhor no escuro, mas eu sou humana e não tenho estes privilégios.
— Posso conjurar uma magia de luz? Pois não consigo ver nada — digo aos demais.
— Hmm... creio que não há problema aqui, mas não devemos fazer isso perto dos golens. Se nos virem, farão uma bagunça — diz Barathun.
Lin faz um gesto afirmativo com a cabeça.
— Luminare — digo isso, na medida em que junto as mãos em um sinal semelhante a uma oração. Assim, uma forte luz se projeta acima de minha cabeça e paira no ar. Agora consigo ver melhor os detalhes da...
Siiip! Sinto uma picada no meu pescoço, será um inseto?
— Gah! — tento falar, todavia minha voz não sai, mas somente sangue.
Coloco a mão no local da picada e percebo que uma flecha atravessou meu pescoço. Droga, não poderei me curar se não recitar as palavras.
Siiip! Katchin! Faíscas surgem, pois Lin defende uma flecha que viaja em sua direção. Ou melhor, agora vejo que é uma seta de besta caída no chão.
— É um ataque! — grita o anão, o qual levanta seu escudo e empunha seu martelo de guerra.
Me sinto fraca, estou tonta. Caio de joelhos.
— É veneno! — alerta Lin.
Não consigo falar. Estou inutilizada.
Sinto uma presença sinistra novamente e olho para a origem do que parece ser uma poderosa maldição. São como tentáculos pretos e translúcidos que pairam em torno de alguma criatura. Eu não sabia que era possível uma maldição tão poderosa existir. Ela deve ser mais poderosa que a das dríades.
— Quem é você? Mostre-se, covarde! — diz Barathun.
Assim, de um local que a luz da magia não alcança, da origem da maldição, surge um homem muito alto e forte, com barbas e cabelos pretos e longos. Apesar de ser um homem bonito, poderia ser confundido com um andarilho, pois está sujo e descuidado.
Entretanto, suas roupas delatam o seu ofício, pois, aliadas a outros detalhes marcantes, elas são verdes e marrons.
Ele é um caçador.
Olho para Lin, ele é um dos homens mais fortes que conheço, porém seu semblante é um que eu jamais pensaria ver em seu rosto: ele tem medo.
— Está longe de casa, Monstro da Floresta de Prata! — diz Lin, depois de juntar forças para falar.
O homem não parece ter a intenção de conversar: ele saca de sua adaga.
— Se preparem! Ele é perigoso! — exclama o lumen.
— Fiquem atrás de mim, vou segurá-lo! — responde Barathun.
O caçador corre em nossa direção. Ele é extremamente rápido, algo que parece não se encaixar, dada sua estatura.
Ele tenta dar a volta pelo anão e alcançar Lin. Parece que o lumen é seu alvo.
— É um usuário de impetus! — alerta o anão, que se interpõe no caminho para evitar o ataque ao lumen.
O caçador aproveita seu impulso, o chão racha sob seus pés, e ele dá um soco com as mãos nuas no gigantesco escudo.
BAM! O escudo é dilacerado. Sinto daqui a onda de impacto, e meu corpo estremece.
— Aaah! — grita o anão, que solta o escudo já estilhaçado.
Seu braço esquerdo quebrou.
Impossível, o Barathun é o melhor usuário de impetus que conheço. Até mesmo um gigante não faria isso com ele.
Sinto sono, que só não é maior que o meu medo. Neste ritmo, o efeito do veneno vai me apagar. Droga, não posso fazer nada.
Com um chute frontal, o caçador arremessa o anão a vários metros, e ele impacta contra a parede da gruta.
Bram! Escombros caem sobre o Barathun.
— Pare com isso, Valefar, eu não lhe fiz nada! — grita Lin.
— Você precisa morrer, Lin Kari, mas seu filho viverá — responde o amaldiçoado.
Filho?
— Do que você está falando, caçador?
A resposta do caçador é sacar de sua segunda adaga.
— Então que assim seja! Provarei para os lumens que até você pode morrer!
Trum! Lin desaparece e ressurge nas costas do caçador. Ele aproveita a surpresa para arriscar um golpe forte com sua espada, mas o caçador é rápido e defende com facilidade.
Katchin! Trum! Outro salto espacial, ele aparece novamente nas costas do caçador e tenta outro golpe. Por seu turno, o amaldiçoado o contra-ataca com ainda mais ferocidade. Lin não conseguirá aguentar este golpe!
Entretanto, a espada negra e a adaga não se chocam, mas atravessam uma a outra, assim como ambas transpassam os corpos de seus adversários, sem causarem dano algum.
É outra habilidade única do Lin, ele pode se tornar intangível por alguns segundos. O caçador não parece surpreso com o que vê.
Sinto um fluxo cinza se reunir em Lin. Ou melhor, na espada negra de Lin. Ele pretende acabar a luta com o próximo golpe, assim que seu corpo perder a intangibilidade.
Com ambas as mãos na empunhadura, a lâmina da espada do lumen brilha com uma luz estranha, a qual somente pode ser definida como uma luz negra. Melhor dito, é o contrário de luz, pois ela parece emitir trevas e drenar o brilho de minha magia.
É o seu ataque mais poderoso, e nada pode sobreviver a isto.
Mas o caçador não se acovarda. Ele se prepara para apunhalar o lumen também.
A lâmina de Lin atravessa o ar como se cortasse o espaço ao meio, em um ataque ascendente, o que distorce a luz a sua volta e emite um som que se assemelha ao grito de uma mulher aterrorizada:
Rhiiiii aaaaahhhhhhh! O ruído do golpe é tão estridente e perturbador, que meu medo faz com que os pelos do meu braço se arrepiem, ao ponto da minha pele doer.
A espada do belo lumen atravessa pela metade o torço do gigantesco homem, em um corte diagonal. Assim, o corpo do caçador é divido em dois e desaba pelo chão. Todavia, a adaga do amaldiçoado também golpeia a barriga de Lin, mas não parece ser um ferimento fatal.
Lin vence, eu sabia. Ele é o mais forte. Estou tão feliz, pois nós sobrevivemos a essa abominação.
Agora, caída no chão, vejo Lin vir na minha direção para me resgatar. Parece que o jogo virou, pois ele é quem vai me curar. Já posso ouvir o lumen caçoar de mim. Ele é tão irritante e previsível, mas não me importo mais.
Entretanto, Lin cai de joelhos e olha para o ferimento de sua barriga.
Depois o lumen me espreita com tristeza em seus olhos prateados, os quais tentam me procurar, mas ele não me encontra.
Ele diz algo, porém eu não escuto. Não, ele foi envenenado também! Quero curá-lo, mas meu corpo não se move.
A uns cinco metros atrás do lumen, percebo algo se mover e levantar: é o caçador. Suas roupas estão todas rasgadas no local do corte e cobertas de muito sangue, por toda parte, mas ele não tem mais qualquer ferimento pelo corpo, nem mesmo uma cicatriz.
O caçador se aproxima de Lin, que ainda está ajoelhado, segura com as duas mãos a cabeça dele e a torce em um movimento seco.
Clack!
— Gaaah! — Minha voz não sai, mas somente lágrimas dos meus olhos e sangue pela minha boca.
O amaldiçoado pega a espada de Lin, depois a observa minuciosamente e, com um certo carinho, a limpa do sangue e a guarda em sua mochila.
Ele caminha em minha direção. Deve me matar também.
Todavia, ele se ajoelha, remove a flecha do meu pescoço com cuidado, pega de sua mochila uma poção com um líquido azul. É uma poção de cura, a qual ele despeja na minha garganta e o resto pela boca. Eu não o impeço, pois estou congelada pelo veneno.
Poções como esta são caríssimas e, com o valor de apenas uma, nós poderíamos ter resolvido a dívida do bar e sobraria muito ainda.
Percebo o ferimento no meu pescoço se fechar, mas o veneno ainda me apagará.
— Você deve ser uma maga de vida... Em todo caso, tome esta outra poção, por garantia. É para seu amigo anão. Use-a quando você acordar. Sua vida ou sua morte não tem valor para mim, portanto não tente buscar vingança, assim eu não te matarei.
— Reme... — Eu tento usar uma magia para impedir o avanço do veneno, mas tenho minha boca fechada pela mão do caçador.
Não aguentarei mais.
— Agora só falta comprar uma lembrancinha — diz o amaldiçoado, enquanto olha nos meus olhos, mas eu não entendo o que ele quer dizer. — Hum... isso foi mais rápido do que eu esperava, pois achei que ele deixaria vocês para trás e fugiria. Parece que o Lin melhorou um pouco seu caráter com o tempo.
Sinto muito, Lin, pois não consegui fazer nada. Eu queria tanto te curar e dizer que...
Eu te amo.
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