Volume 1 – Arco 3
Capítulo 27: O sangue de marte.
O vento é turbulento, e a chuva se derrama por completo em meio ao deserto. A lama negra, a tropa técnica tentando sobreviver a peleja — seus trajes abarrotados, seus computadores vazios, os pallets de ração e de armas pesando, jogado aos destroços; as armas que, enfim, de tambores sussurrantes, dizendo sim, venha, mate o homem com essa espada! E os olhos que acordam em meio à confusão, isolado numa barraca, com Amanda sozinha em frente ao console holográfico, apoiando a cabeça com as mãos enluvadas por grafeno.
— Você não parece bem...
Assustada, ela se virou, querendo dá uma olhada no fantasma que geme rente ao solo.
— Eu jurei que você não acordava hoje. Sua cara tá péssima.
— Tive um sonho ruim.
— Ah é? Que sonho ruim foi esse, que é capaz até de acordar um homem dopado.
Ele se aproximou dos ouvidos dela:
— Um sonho em que você não estava.
Era agora com um sorriso que ela se virava, e olhando para o mar outonal, perverso, aquelas dunas âmbar de maldade e falsidade, alisou os cabelos, disse que ele estava confundindo as coisas. Antes fosse, ele diz, mas você não me disse para parar, seus lábios subindo naquele pescoço ibérico, escalando os Pirenéus até o encontro com aqueles lábios.
— Você não vai meter essa língua suja em mim — ela disse — escova os dentes antes de pensar em me foder. — e ele riu.
— Você é uma mulher difícil, não é.
— Você que achou que eu era muito fácil.
Ele pôs seu traje, pôs a pistola no coldre e se sentou ao lado de Magalhães, conferindo os códigos que se desenrolavam no monitor.
— O sistema não vai voltar assim, vamos ter que dá uma olhada no hardware antes de qualquer coisa.
— Ordens de Hans. Eu tô tentando catalogar os erros na estrutura, até agora a única coisa que tá funcionando é o CPU e a memória secundária. Os periféricos foram de ralo e os barramentos parece que foram cortados ao meio.
— Eu vou encontrar Hans, me avisa de qualquer coisa.
— Estamos sem comunicação, lindão. Leva um rádio de curto alcance que é única coisa que a interferência não tá comendo.
Ele abriu a lona e viu a chuva que caía — a visão de dessabor, com pitadas insonsas de agonia. Carlos descia a colina em que a tenda fora montada, vendo Lykaios e Pérez, com cordas amarradas na cintura, arrastando pallets de suprimentos para longe da costa arenosa; viu Biancucci montar uma antena amplificadora com a ajuda de Antunes; e Bacci com Versalhes tirando as motos no meio da duna molhada. No meio do cenário, sentado como se escondido nos destroços da nave, Hans observa todo trabalho.
E eu tenho que ser o filho da puta ao seu lado.
Se aproximando do tenente Reiter, o saudou, sendo recebido com um abraço seguido de tapinhas nas costas. É muito bom ver um herói de pé, sua situação estava deplorável, Hans diz, e Carlos, com um sorriso, responde que ainda estava melhor que ele.
— Isso é fácil, soldado. Quem estiver coberto por essa pele vai receber todo azar que disponho. Enfim, pega um lugar, me acompanha numa bebida.
— E no cigarro?
— Só se você tiver o seu!
O humor de Hans parecia contradizer a situação no qual se encontrava, isolados no meio do deserto de Hellas, com uma tempestade arrasadora. Esse bom astral era pela sobrevivência, ou fugir como um covarde era suficiente para fazê-lo se ver como herói?
Carlos observa o desenvolvimento da chuva, para os pequenos pontos que não se atam, que continuamente se entregam ao trabalho. Pequenos serafins escravos, foi o que passou na sua mente, com aqueles trajes cinzentos na distância.
Com um sorriso de orelha a orelha, segurando a cerveja numa mão e o cigarro na outra, aquela suspensão fez Carlos querer gritar, dar dois tiros para o alto. Comentou:
— Eles são uns filhos da puta — disse, e Hans, como se sossegado, olhou Carlos com profunda atenção — eles queriam saber se sairíamos vivos dessa, só pode. Que situação merda do caralho. Veja, eles poderiam ter nos postos numa nave de combate, ou numa pilotada manualmente. A desculpa de ter que nos esconder no meio do material de logística simplesmente não cola, principalmente com o desvio que fizemos. Você viu o quadrante que caímos? É o limite de lugar nenhum com a zona de ninguém.
— Estranho pra cacete mesmo — Hans comenta — Mas esse desvio foi proposital. Profana está ocupada demais com o oeste de Levítica, então fazer caminho circulando pelo leste foi uma proposta inteligente. Não à toa, eu aprovei.
Carlos pegou um macarrão, comendo como se com raiva.
— E por qual motivo eles estavam patrulhando nessa distância?
— Você é mais inteligente do que isso...
Se protegiam da chuva e da lama pelo casco escuro da nave. A cerveja estava quente, o cigarro também. A chuva, por outro lado, era gelada. Mas estava protegidos, então está tudo certo, não? É só esperar um sinal de Eden, Levítica ou qualquer comando da União Eclesiástica, Carlos imaginara: “ou a própria chuva passar”.
— Eles estão demorando...
— É essa tempestade.
— Não é melhor meter o pé?
— Seria, — Hans disse — o problema é que não sabemos nada do inimigo.
Nem se ele tá vindo pra cá, pensou, mas Hans não: ele tinha outras coisas em mente, como essa chuva, os relâmpagos, e os suprimentos. Isso vai se tornar um pântano logo, logo. O céu negro era a única constante, e as gotas pesadas, onde se escorre rios na areia magmática. Lykaios e Pérez, com seus corpos atléticos, levam agora apenas as caixas dissidentes não destruídas pelo impacto, enquanto Amanda e a sargento Biancucci tentam encontrar algum sinal com a antena instalada.
— Sinto que é melhor não ficar muito tempo aqui. Essa areia fofa é traiçoeira, daqui a pouco a nave é engolida.
— Você parece muito preocupado.
— Pensei que acordaria em Levítica, não aqui. Já tinha preparado até mesmo meu flerte, minha pior cantada.
Hans riu, a cerveja talvez estivesse dando resultados.
— Isso não é um filme, e talvez fosse Amanda que limpasse sua bunda. Mas se bem que você já deve tá acostumado.
— Ela é bonita, não me importo de uma mulher bonita limpando minha bunda.
— Quando me feri em Roma, pensava assim também. Uma pena que quem cuidou de mim foi um negão, um cara chamado Riyad Kanté, de Afrikanyer. Tinha uma mão leve, mas não os olhos verdes de Amanda, ou o sorriso bonito da sargento Biancucci.
Carlos quis perguntar como foi o ataque, mas ficou com medo de passar dos limites. Ele sabia, mas não da boca de Hans.
Mas é estranho, a minha necessidade de escutar dele o que o atormenta.
Eles ficaram um tempo tomando um gole — golinhos de cerveja e potes vazios de macarrão. Há alguma coisa errada nessa parte do mundo. O som da chuva, os cliques das gotas batendo do lado de fora — corredores vazios de concreto. Carlos teve uma lembrança, uma lembrança ruim. Do coldre, tirou um cigarro. A chuva marciana cai, é e é bonito para caralho. Tem alguma coisa errada em andar caminhos tão dissonantes e Hans não reparou — não! — ele estava ali, com seus olhos de espectro, seu rosto enfaixado, os cabelos loiros desgrenhados — um alemão filho da puta, um alemão que talvez estivesse se tornando seu amigo.
— Como foi?
Hans olhou para Carlos com olhos embolorados.
— Como foi o quê?
— Você foi acertado por fósforo branco...
Um sorriso. Que coisa estranha, as pessoas são mesmo esquisitas. Ou será que é apenas eu?
— É como um fogo de artificio lançado pelo tridente do diabo. Você não sabe quando vai parar de queimar. Mas bem, tive sorte. O antigo pelotão debandou: morrer ou correr, e alguns correram. Minha sorte foram os destroços que esconderam meu corpo. Mas estou bem: a paz de deus está ao meu lado, e com ele, nada me falta. Apenas prometi a mim mesmo não consertar meu rosto até o fim da guerra. Tenho planos maiores agora...
Dois... digo, Carlos Andrade de Sávia ainda tinha o sorriso dele em lente, trágico como Dante e obscurecido pelas nuvens. Ficou pensando na paz de deus, na Deopax e em tudo que resulta dos nossos esforços.
Será que eu fico contente? Sinto que eu apenas sou muito bom nesse trabalho.
Os computadores de pulso soam, uma mensagem: Alerta vermelho para a região magmática, e todo trópico marciano — risco de alagamentos e derrapamentos em toda região.
— Porra! — Hans gritou — Porra!
Próximo a colina onde acordara, agora um par de tendas balançavam contra a turbulência. As motos de motor de micro-ondas eram carregadas por cordas, subindo a inclinação com a calma dos músculos de Mattia, Bacci e Versalhes. Hans bufa, tudo está errado, ele disse, tudo errado nessa porra! Não pensou que talvez não significasse nada.
— Teremos que derrubar profana para sermos tratados com o mínimo!
Subindo por uma rota lateral, viram que até a sargento Biancucci ajudava na peleja, usando o máximo dos seus calcanhares e ombros para subir aquela moto pesada.
— Preciso que um de vocês vá até o Norte. A base mais próxima fica a dois dias. A gente vai ficar ilhado aqui por algum tempo. Formem duplas, trios, não sei. Mas se não entrarmos em contato com o comando, vamos ficar aqui por muito mais tempo do que eu gostaria.
Os soldados, suando por debaixo dos seus trajes, apenas olhou Hans como a dizer: precisamos terminar isso aqui? Carlos acompanha, observando a direção em que o Norte vinha, tendo um insight bem doentio na mente. A batalha seria travada à leste, em Afrikanyer, mas profana já pintava no território Levítico. Quem for ao norte só retornaria com más notícias — isso se retornasse. O que é mais inteligente de se fazer? Ir a leste, se encontrar com as tropas organizadas! Hans ainda não tinha pensando nisso, mas Carlos refletiu, enquanto os tambores dos trovões se davam o direito de beijar aquele negro solo.
— Controle para T.T.A! Controle para T.T.A! — Os computadores de pulso de Hans e Carlos gritam ao mesmo tempo.
Que porra! A tempestade, entretanto, não permitia, não queria não queria e não queria. A imagem borrada seguida do áudio entrecortado pouco revela. Controle para T.T.A. Tropa Técnica Auxiliar. Controle para T.T.A. Dizia.
— Vamos ficar um bom tempo por aqui. — Carlos comentou, como se não doesse o contexto.
Hans, entretanto, que clicava em exaustão contra o display do computador, se acanelava de ódio, esperneando maldições, xingando a alma de todos que não fossem ele, que não pensassem como ele. Não queria saber quanto tempo estariam ali, não queria saber quanto tempo morreriam por ali. Queria, de verdade, fugir das coisas que o destrói — queria morrer, sim, queria, mas como herói.
As nuvens aglomeradas sem querer dá um vestígio de paz ao homem, corpos transbordando com as chuvas de Marte — o deus ornado de sílica aparece e diz um olá, as armas alocadas sendo sua espada de prata. Sentados na tenda levantada horas atrás, no solo encharcado de gotas transparentes, Hans anda como um tonto, indo de um lado ao outro.
— O Norte parece estar comprometido! — Hans parecia instável. — Mesmo essa chuva não deveria ser capaz de foder nossas linhas de comunicação de tal maneira... — ele tinha em mãos um cigarro, e às costas, um quadro (onde haviam recuperado?). O projetor queimou e o computador de mão parecia instável. — A planície de Hellas está comprometida, por mais que o ataque contra nossa nave por profana tenha sido apenas um teste contra nossa linha logística. O Norte foi perdido. O Leste, no fronte Afrikanyer, parece a solução, mesmo que o caminho seja longo, e de termos tão pouco tempo...
Foi decidido que Amanda, Biancucci e Pérez iriam com as motos na frente, fazendo a interseção do sinal. O restante seguiria com os suprimentos a pé.
As trilhas enlameadas deixando para trás as tendas, a nave destruída — registros ópticos de coragem e bravura. O significado do nada retorna, as mochilas pesam.
Era noticiada como a pior chuva dos últimos cem anos, uma tempestade programada pelo ministério de terraformação marciana no tocante da criação de novos espaços verdes e grandes lagos. A chuva de marte recompensaria. O trabalho nas geleiras no último século, aquelas estacas térmicas fazendo derreter metros de calotas anualmente, as águas que se tornam vapor — os sonhos daqueles que esbravejam o Mar de Terra Arabia.
Os soldados estavam cansados, as pernas tremem, a areia suga suas botinas, lama que rouba seu tórax — verdades que não condizem à guerra urbana, e o dezembro violento violentamente relembra que não era para estarmos aqui.
O primeiro dia de viagem foi marcado por um longo silêncio. Os rostos, escondidos por detrás dos capacetes tácticos, guardando rancor? Talvez uma dúvida? Suas faces na escuridão, seus corpos como atlas, um atlas de sílica, ornado de metais pesados e radiação — um atlas que carrega nas costas um peso insignificante, um peso de uma grama, de um grão de areia.
Bacci e Lykaios se injetaram adrenalina, mastigaram como bala octaedros de aprilamina; Antunes reclamou dos tornozelos e levou uma carga de anfetamina na bunda por Mattia, que carregava na bolsa dois uísques e uma cachaça. Hans não diz nada, ele não tinha palavras. Fervia em ódio, mas fervia calado. Carlos, o observa, talvez tivesse algo para compartilhar, talvez tivesse alguma decência para limpá-lo do abismo que encarasse.
38 horas desde o fim do contato. Carlos havia apagado por dez horas, tomando quase uma grama de Deopax para não ficar sequelado. A arma, na mão; um céu estrelado de naves além da linha bélica. Hans queria ser um herói? Ou só ser tratado como um já basta? Na verdade, Carlos tinha suspeitas mais elaboradas, sobre Hans não está necessariamente irritado, pelo contrário: ele vibra, mas não pode dizê-lo. Um homem de Terra Arabia, adivinhou, desejando dançar nessa chuva.
Mas sendo assim, o que ele estaria fazendo em Roma? Na verdade, o que qualquer pessoa está fazendo em Roma? Pensou: talvez essa seja uma tropa de traidores, iguais a mim? Mattia, Pérez, Lykaios, Magalhães, Versalhes, Bacci... todos esses filhos da puta tem algo em comum... e Hans também. O único que não guarda segredos é Antunes e Natalie, mas tal como o sonho de Nero, talvez eles queimem. Não resista aos delírios bélicos, não resista a vontade de Um, a traição de Dois Meia — aos mil anos em Marte!
A tenda que levantaram na alta noite, pouca intenção tinha de protege-los do frio, mas ao menos permitia dormir em seco chão, nas suas lonas de dormir tão aconchegantes. Carlos, Hans e Mattia sentados do lado de fora, na chuva em trégua, mesmo que relâmpagos apontassem horizonte acima.
— Andamos cerca de 40 quilômetros. — Mattia diz — Posso perguntar do porquê não conseguirmos contato até agora?
Hans fumava um dos seus últimos cigarros, não à toa parecia aprazê-lo tanto, com aqueles olhos azuis encarando estrelas por detrás de nuvens negras.
— Esse é o deserto dos tártaros. — Hans respondeu a Mattia. — Sente? A vida vai passar, vamos adoecer, e mesmo assim não haverá glórias. Estamos caminhando ao destino da nossa própria morte. O que você pensa disso?
Mattia, que ainda vestia seu capacete, retirou, preocupado de não transparecer o que realmente sentia. O que você sente? Carlos ficou curioso, queria saber o que Mattia, um autêntico líder militar, teria a dizer a outro.
— Desde que eu não morra afogado...
Eles riram.
Talvez haja poder na escolha, em pelo menos sabermos como mais nos satisfaz nossa própria morte. O estilo de Mattia também pareceu menos compromissado, sentado como queria, também fumando um cigarro enquanto dava golinhos na sua garrafa de uísque. Carlos não o havia visto comer, mas beber ele bebia como um degenerado. Que coisa. A frase “as pessoas são estranhas” não mais se encaixa. Elas estão além disso. Elas são uma coisa muito além do que podemos entender. E Carlos talvez estivesse mais satisfeito com essa resposta.
— O deserto dos tártaros... — Mattia gesticulava de um modo estranho... — um deserto... dos...
Porra! Suas mãos ligeiras, seus olhos inexpressivos — sua arma que aponta para o crânio de Mattia que aponta para o crânio de Hans.
— Mazzale me traiu? — perguntou.
— Você me traiu? — Hans se sentia estranhamente bem.
Porra! O olho biônico conseguia ver a alma do filho da puta, a suja alma que não parecia estar brincando. Qual foi! Pensou naquela cabeça ensanguentada, rachada pela pistola fosca que era do seu pai, aquela belezinha velha, sem gravuras: aquela coisinha linda e mortal.
— Tira essa porra da minha cara. — Hans continuou. — Se eu quisesse te matar já teria te arrebentado todo. O subtenente aí, olha: ele é uma máquina, você sabe. Sobreviveu a profana duas vezes! E você, fez o quê? Se escondeu como a porra de um mercenário, traidor de Roma, de Latinía. Um mercenário falido, sem contratos com ninguém. A guerra veio em um tempo bom, não veio? Se não, estaria agora no U.H.D, vendendo drogas, armas... traficando gente... eu não me interesso pelos seus negócios, Giancarlo..., mas posso te falar? Fala pros seus meninos pararem de se drogar, antes que as drogas parem com eles. E você também, para de ficar me evitando. Eu sei quem são os homens que eu comando, porra!
As talas que cobriam o rosto de Hans, mesmo firmes, caíram, revelando um pouco das suas cicatrizes, um pouco das queimaduras, um pouco dos cabelos partidos. Giancarlo baixou a arma, riu.
— Pensei que você fosse um covarde. Falar a verdade na cara de outra pessoa... eu vou falar com os meninos..., pode ficar tranquilo.
Mattia deixou Carlos e Hans sozinhos naquela escuridão.
— Eu estava doido para apertar esse filho da puta desde que o vi pela primeira vez. Mazzale arrombado. Ele achou que eu ia assumir essa bronca sem ter meus contatos? Ele é maluco se pensou.
— Você não se importa?
— É claro que não. Como vou me importar? Tropas são tropas, e todo soldado é o mesmo com um fuzil na mão. Mattia pelo menos teve a decência de não ir pelo caminho fácil. Deve ter alguma honra ainda, diferente de todos os outros covardes que encontrei pelo caminho.
Carlos guardou a pistola no coldre. A noite estava feia pra caralho e sentiu que a chuva do dia seguinte seria a pior de todas. As mãos de Hans tremiam. O frio repentino dos ventos do sul. Imaginou como estaria o distrito e suas freiras, como estaria as belezas dos dias além deste. Se sentia espirituoso e feliz ao mesmo passo. Queria fazer, por outro lado, algo inédito. Tirou a arma rapidamente do coldre, apontou para o alto. Não há balas, pensou, nem mesmo inimigos. Deixou o dia seguinte para o dia seguinte.
Uma fala:
— A caminhada, que sinto não ser a mesma apesar dos dias serem o mesmo, engana bastante. Como pode, subirmos a mesma colina todos os dias e o peso de carregar nosso próprio corpo diferir tanto? Agora mal reconheço as nuances de meus passos. Me arrependo de não ter abraçado mais minha mãezinha, me arrependo de não ter dito adeus aos meus irmãos — Lykaios.
A chuva retorna, o céu caiado e esgarçado, novamente negro, pétreo, fechado, com notas azuis de tupã e cálidos ventos ao solo. Quem será o próximo? Pensaram. O arrombado que morrer queimado, terá por essas areias sua cova.
As mochilas pesadas parecem caixões, o traje com o suor acumulado, seus quartos quentes com comida na mesa. A fila nas dunas amanteigadas, as trilhas de rocha magmática — os raios estrelares e a radiação de fundo.
Posso ver além dos meus próprios passos? Pérez entrou em contato: a coisa está feia aqui, ele disse.
— Profana?
— Pior: chuva. Parte da base cedeu com a terra. Dizem que o Norte também sofre. Os ventos fortes estão levando nossas naves. Além do mais, os satélites estão sofrendo interferência. É a pior chuva dos últimos cem anos!
Pérez também informou que estavam ilhados, que próximo da serra de Argos, tudo se tornara pântano: as colheitas abaixo de 70 centímetros de água barrosa, os caminhos desaparecidos, os silos e fazendas sendo levados pela água.
Hans tinha um sorriso por trás da viseira, e seus olhos pareciam admirar o espetáculo — o mar de marte! O sonho de um sendo o pesadelo do outro. Carlos sabia, sabia de onde esse filho da puta era; e como estariam os outros, aqueles cujo sonham com o mar de Terra Arabia. A guerra está tomando rumos estranhos, essa chuva, essa tempestade! O sangue de marte virá antes de todos os nossos anseios!
Sabia, por exemplo, do gelo extraterrestre que o ministério de terraformação vinha colhendo dos anéis de Deimos. Sabia também que as estacas térmicas atingiam já vinte metros no espesso gelo marciano. Sabia da temperatura: 6 graus mais quente que a cinquenta anos atrás; 80 graus mais quente do que mil anos atrás! O sonho dos raios solares, o sonho dos nossos lasers terraformadores!
Mas que tristeza, que tristeza é esse solo, para aqueles que não sonham com a terra, com os mares. Para aqueles que passarão fome, àqueles que perderão suas casas.
O sonho de um é a tragédia do outro, pensou Carlos, enquanto as trilhas enlameadas e o cascalho molhado, vertem com o arenito e tornam as dunas insuportáveis, as palmeiras em miragem e a grama em mãos de moiras graves.
Na segunda noite de caminhada, se esconderam no topo de um aclive, próximo de uma costa arenosa, que parecia se tornar um grande e pétreo lago. As tendas de campanha balançam incessante, enquanto suas paredes plásticas guardam o calor de um fogareiro diferente, quase estrangeiro pelo tipo de elemento que o guarda, o elemento que assim, raro, fazia valer o sorriso de uma refeição quente, de um jogo de cartas ao redor deste, de pessoas alegres e exaustas, depois de mais de 60 quilômetros percorridos.
— Você acha que estamos bem aqui? — Hans perguntou a Carlos.
— Estamos melhor aqui do que em qualquer outro lugar...
— Isso é verdade. — Hans tinha um cigarro entre os dedos. — Mesmo assim não me sinto bem. A guerra não vai parar por conta dessa chuva.
— Isso é verdade, mesmo assim essa pausa, essa suspensão das coisas, é melhor do que se fôssemos ao tudo ou nada agora. Sinto que perderíamos feio.
— Você acha isso?
— Acho. Estamos dependendo de técnicas e táticas nunca antes vistas neste lado de Marte. Introduzimos novas tecnologias bélicas, novas unidades de inteligência artificial e drones. O que não significa muito quando confrontado pelas tecnologias já estabelecidas pelo U.H.D. A verdade é que, apesar da ajuda, precisamos lembrar do que nós somos feitos, da criação destas terras. Precisamos lembrar de nós mesmos. Uma guerra feita de pessoas. Nossa sobrevivência mesmo, foi graças a ninguém menos que eu e você. Se dependêssemos de uma inteligência artificial ou o contato com o Q.G, estávamos fodidos. Assim como nossa sobrevivência agora depende inteiramente dessas mãos. Talvez essas chuvas lembre que a guerra vai ser vencida pelos fuzis que empunhamos e não pela memória semicondutora, e barramentos de aquilítio. Seremos melhores do que eles, no que eles se esqueceram que são.
Carlos definitivamente acreditava, acreditava no sonho do homem, no sonho de uma nova fundação humana. O fim da eternidade, pensou. Mas esse era um pensamento de Carlos, não do traidor.
— Parece justo. — Hans comentou. — Talvez derrubemos uma dessas naves deles. Chega aqui.
Seguindo para o lado de fora das tendas, Hans o levou até um caixote, carregado por ninguém menos que Lykaios.
— Eu disse que se ele carregasse, eu o deixaria empunhar uma. Veja só que belezinha. As que usamos no treinamento na Nação Pontifícia.
Eram um amontoado de peças foscas, negras, que quando conectadas formavam um canhão de antipartículas, com distância balística de pelo menos 30 quilômetros efetivos. Tinha telescópio eletrônico apoiado por uma tecnologia chamada PARABELLUM, uma inteligência artificial que imaginava parábolas de disparos e imprimia na lente os locais da queda do disparo. Útil com o apoio de uma BCPU, que curiosamente Carlos tinha desde a aurora dos tempos, e não à toa a de um deus, de alguém além daquilo tudo.
— Acho que eu faço um estrago com essa belezinha aqui...
Carlos começou a montar. As peças eram feitas de aço vanádio com revestimento interno de grafeno. As baterias tinham 5 disparos, e eram alojadas na parte lateral da arma. 2 cabos se conectavam da parte inferior, próximo a empunhadura, até o núcleo e o telescópio. Se tivesse que dizer, parecia mesmo uma arma marciana, alienígena.
— Acerto Marius Orfán daqui. Sua cabeça seria pulverizada sem nem ver.
— Isso não foi feito para matar pessoas... — Hans ajustou o telescópio da arma.
— Destruir o deus daquele que carrega a espada, é mais efetivo do que tentar quebra-la.
Se fosse fácil matar Deus, nossos inimigos já teriam caído... Hans pensou. A garrafa de uísque abraçando-o em calidez, a paisagem sobrenatural das nuvens acima do deserto. Oásis distantes derramados, palmeiras desabadas, apoiando-se firmes ao solo.
No terceiro dia de caminhada, fez sol. Um sol arrebatador! Mas que sol! eles pensaram enfurnados naqueles trajes. Mas que mar! Toda a planície de Hellas era uma poça, uma poça transparente em meio as areias castigadas pelos lasers terraformadores, pelas guerras constantes, pela ausência de pátria no seu seio e a divisão de suas beiradas. Tanto o lado leste de Afrikanyer, quanto o norte de Levítica, ou o oeste do UHD com suas fábricas verdes e campos de mata fechada — todos viram aquela piscina de água parada, o sol que lambia a planície. Um mar em Hellas, Hans queria que fosse verdade; Um mar em Terra Arabia!
Pelo que a humanidade luta, desde o princípio dos tempos? Um pensamento entrecortado, um homem que se dispunha ao lado de Dois Meia; se houvesse um motivo, guerras seriam fáceis de explicar. Às vezes, uma guerra se inicia por arrogância e se mantém pelo ódio; Às vezes, a guerra é só um processo natural da ignorância; mas em meu pensamento, a guerra é apenas a epítome do fenômeno que é o homem.
Franker via o mar com Dois Meia, via aquela porção de terra inundada, pensando na guerra, e em como esse milagre se tornaria apenas coadjuvante desses tempos malucos.
— Você tentou me tirar de você, Dois Meia. — Ele disse no persistir do silêncio — E, apesar de não querer me responder, eu sei do que você é feito, sei o que você está pensando. O mar de Hellas, um sonho antigo. Mas ele irá secar, não choveu o suficiente. Aliás, nas condições em que está, isso aqui sequer é um mar, é um grande lago. Agora, pensa comigo, tenta adivinhar?! O que deve estar batendo no peito dessa gente, correndo nessas veias? É o sangue de Marte, não é? Tamanha admiração eles têm nessa tragédia, que seus passos não cansam, que o suor não os atormenta, que o corpo como se suspenso, flutua nessa lama densa. A maioria nunca viu um corpo d’água tão belo, eles nunca viram o grande lago de Iron Gate, os rios e quedas da fábrica de gases número 1, nem mesmo o choro e a destruição de tantas vidas pelas enchentes. Quem ri para a chuva, chora? Apesar de não sermos tão diferentes, Dois Meia, pode dizer: eles parecem animais, não parecem? Suas bases desabaram, suas forças estão fracas — seus fuzis enferrujados. Mas uma chuva de três dias, uma relés tempestade, que os fará passar fome, que fará subir o preço dos eletrônicos, dos imóveis, e que mudou a vida para sempre, que será, em pouco, apenas mais uma nesse ciclo miserável até que não tenhamos mais sonhos, apenas mares; apenas uma chuva! Uma chuva que para eles é o mundo; é o sangue que corre em suas veias.
Carlos parecia conflitoso. Alguém falava com ele, mas as palavras não pareciam ser dirigidas. Hans que seguia ao seu lado também estava quieto, seus olhos marejados com lágrimas, sua pistola vacilando no coldre da cintura.
— A réplica de um homem não pode ser considerada um homem. Reduzimos todos vocês a vermes, e mesmo assim, se sentiram no direito de apontar suas armas contra nós. Uma pena, antes fosse algo do espírito; não a fé cega que une os cordeiros!
O sol da tarde trazendo uma serração sem serra, uma névoa sem voz — o silêncio inadvertido que atravessa o pensamento da criatura.
— Você esqueceu quem você deve trair, não esqueceu, Dois Meia?
A arma aponta para os seus; a pistola fosca arranca da mente o sangue, a massa cinzenta... um prelúdio entre duas coisas: a guerra que parece se mostrar no horizonte, e a traição que se prosta, se inclinando aos verdadeiros mestres de um “homem”.
O judas paira, abre o capacete. A brisa é calma.