Volume 1 – Arco 3
Capítulo 23: A nação pontifícia.
A moto era silenciosa, cuja propulsão tomada pela transformação de energia elétrica em micro-ondas, atravessava trilhas e canais secos que levavam até a base João V da Lapis Regio, região sul da Nação Pontifícia. A pouco mais de cinquenta quilômetros após a fronteira, Carlos seguiu um curso secundário, através de atalhos, fugindo das tropas perseguidoras e mísseis dissidentes. Um caminho acidentado, que corria por sulcos e elevações, até chegar a um conjunto de platôs, onde, tomado por grande surpresa, contemplou monumentos saudosos e que, curiosamente, não constavam em nenhum arquivo ou dossiê, e nem era algo que se tinha notícia ou que parecia ser de conhecimento geral, também nem sendo de alguma inteligência internacional além cortina de ferro — monumentos esses, os domos opacos erguidos a mais de 20 metros do solo e com uma área de pouco mais de 30 hectares. A estrada principal que conectava os dois países tinha como cenário no platô árido que se conectava ao vale, esses monumentos pontuados até onde a vista alcança, além de militares trajados com as vestes formais brancas do Pontifício Papa, protegendo as estradas, e naves e tanques e caminhões de campanha, sobrando ao redor das fábricas de gases, artilharia antiaérea pesada de canhões de antipartículas e mísseis de prótons.
Carlos se aproximou da fronteira, onde a questão sobre quem financiava e fornecia recursos entrou em pauta. O ministério final de terraformação acabaria por ser deixado para trás, ou pior — teriam perguntas severas sobre qual a autorização regia o empreendimento, demandando burocracia, que até então norteava as extensões do processo de reestruturação da atmosfera marciana. Um ou dois domos até poderiam passar batido, com apenas uma multa ou uma declaração oficial do Papa sobre. O clima, por si só, era caótico. O entendimento de outras pessoas enviando mais informações, poderia, em um estalo, aniquilar regiões inteiras com enchentes ou secas, levando recursos essenciais a ruína, também podendo arruinar a fina camada de ozônio, ou perturbar a já perturbada ionosfera, o que simplesmente era inconcebível naquela etapa de transição; havendo, aliás, grande possibilidade de aniquilar toda a vida em Marte em 10 anos ou menos, ou criar um período de fome ocasionada pela mudança dos períodos sazonais.
No computador de mão, escreveu algumas anotações em espanhol, guardando as informações das sinapses direto no dispositivo de memória do lobo temporal. Foi quando uma patrulha vespertina, estacionada ao pé da fronteira, apontou suas armas, dando dois tiros de aviso. A voz rouca de um militar foi amplificada por um dispositivo de som, pedindo que deixasse o veículo e que largasse todas as armas. O fez, e quando se aproximaram, disse jovialmente, e sem parecer assustado com aqueles fuzis apontando para sua cara, sobre quem era e o que havia para fazer ali. O chefe da operação pediu que repetisse, pausadamente, por conta do sotaque.
— Sou amigo de Roma. Cabo Carlos Andrade de Sávia, inscrição 284.371.956-ME. Soldado formado na base Adriática. C-A-R-L-O-S, Carlos Andrade.
Eles deram uma coronhada no peito dele, no seco. O que parecia ser o líder (reconheceu pela voz no amplificador), ficou observando o computador de mão, esperando a confirmação da base. Sem ar, Carlos escutou:
— Não restou muitos de vocês, não é. Na verdade, parece que só existem 3 soldados ativos... Hmm... realmente. Sendo sincero, eu não te entendo: se eu estivesse em seu lugar, teria corrido com meu rabo entre as pernas. E se foi que nem nas notícias — eles chamam de noite vesuviana — eu não teria aguentado! Imagina ficar sob as brasas de fósforo branco, vendo o domo de ferro ser corroído de pouquinho em pouquinho, até as bombas caírem uma após a outra e a infantaria chegar como surpresa, sem ter noção do que realmente acontece, cego no brio infame desse químico. Eu só vi o poder desses profanos no meu treinamento e até hoje me arrepio. Os veteranos sentem medo quando escutam sobre as chamas e eles tem razão!
— É — ele respondeu, retomando o fôlego — e mesmo assim ainda levo porrada de graça.
O homem, que mais tarde descobriria ser o tenente Francisco Bórgia, riu, o ajudando a se erguer.
— São nesses tempos que a gentileza morre.
— Para um povo em Cristo, dizer isso nesses termos é quase herético.
— Um homem divertido. — Disse, limpando a poeira do capote de Carlos. — Siga a estrada — e que leve benções para onde vá, e que abençoado seja seu caminho.
Carlos deu uma ou outra olhada nos soldados, antes de dar partida novamente.
Por lá, passou por postos sem que ninguém o atrapalhasse. Depois de cinco minutos estrada a dentro, já conseguia ver a base no horizonte, numa colina do platô, assim como um trânsito que se estendia por 500 metros.
Foi pelo acostamento, tentando escapar do trafego, e, para mais uma surpresa, encontrou-se com o tenente Hans Reiter e sua moto quebrada, esperneando e xingando em mil línguas enquanto batia na mesma. Hans nem o reconheceu, ocupado talvez pela própria frustração. Entretanto, ao se aproximar, pareceu feliz, ou algo parecido com uma expressão de felicidade por trás do seu rosto enfaixado e dos intensos olhos azuis de espectro. Disse um olá, perguntando em seguido como havia chego tão limpo, e sem feridas e Carlos respondeu que veio por um outro caminho, mais demorado. Esperando juntos, Hans comentou sobre a sucessão de eventos.
— Você foi esperto tomando trilhas secundárias em vez da principal. Alguns enxertos de Profana perseguiram os veículos leves pela estrada Roma-Abençoada. Eu fugi por sorte, mas muitos ficaram pelo caminho, em combate.
Ficaram meia hora no trânsito — que descobriram ser culpa da burocracia da base em relação aos entrantes — antes de serem admitidos, não sendo surpresa nenhuma o fato de que eram os primeiros, depois dos Técnicos Adriano e Augusto, que nada tinham para falar, apenas que foi muita sorte. Os técnicos, naquela tarde, tiveram uma infinidade de coisas para fazer, então apresentaram Carlos e Hans a um tenente coronel chamado João Bento, que explicou melhor sobre onde eram os dormitórios, o horário de refeição e informou sobre a bateria de treinamento que seriam submetidos dali aos próximos dias, e que por enquanto estavam livres, pelo menos até a chegada do restante do esquadrão ou da inserção de membros repositórios caso acontecesse o pior.
— Eu entendo. — Hans comentou cabisbaixo, completando que ia se informar com a inteligência da base, sobre os drones encarregados de monitorar o comboio vindo de Roma. Se tudo estivesse de acordo, parte do esquadrão assim como os remanescentes da base Lúcio Antunes poderiam contra-atacar.
Carlos decidiu ficar no pátio, fumando seu cigarro numa mesa de descompressão. Hans voltou com a notícia logo depois. Ficou sabendo, perguntara, um monstro surgiu na área e destruiu tudo. Ele estava com um computador de mão, mostrando as últimas imagens captadas.
— Encouraçados Humanos — completou — Trajes pessoais de guerra, do tipo B.
No vídeo, pareciam gorilas, com quase três metros de altura, revelando-se pelas luzes que eram emitidas do traje. Seus fuzis como postes reluzentes disparavam estrelas azuis de radiação de antipartículas, partindo tanques de guerra em incandescência e caminhões ao meio. Eram monstros mesmos. Hans comentara que era assim que Marte pereceria. Carlos concordou, no íntimo. As carabinas de antipartículas eram recentes, tendo os canhões surgidos nas Guerras das planícies marcianas, quando o UHD havia reparado que guerras tradicionais, com soldados tradicionais, custaria mais do que simplesmente pouco se importar com qualquer noção de direito. O uso de munição inflamável, drones, Veículos Não Tripulados e fuzileiros encouraçados foi uma solução cara, mas perspicaz. O legado e o terror deixavam a maioria das nações emergentes sem ter muito o que fazer.
Ficava claro no vídeo, sobre como uma unidade de não mais de dez pessoas conseguiam oprimir quase um batalhão inteiro com 120. Os raios ultrapassavam os escudos, e a linha de disparo era superior. Além de que, por velocidade, as granadas de PEM não surtiam efeito e a munição AF e AE[1] não ultrapassavam a blindagem dos circuitos. O certo seria se aproximar e fuzilar de perto com munição explosiva, mas o feito se tornaria complicado pelo enxerto ainda ter propulsão que o tomava a dominar os céus e ter vantagem de terreno, além de serem ilegais no contexto da guerra.
— Se essa batalha durou mais de uma hora, é possível que profana já tenha bombardeado tudo. — Hans dizia.
— Profana não é tripulada, eles precisariam do envio de novas ordens no console para ultrapassar os limites propostos.
Hans o observou com desconfiança, desligou o vídeo dos drones do celular.
— Como caralhos você pode saber dessa porra?
E sem perceber que havia falado merda, explicou, com algum êxito, que era pela inteligência que recebeu da base adriática, ao observar o comportamento das naves em exercício nas fronteiras.
— Vai se foder! Profana está em atividade desde a primeira guerra das planícies mais de cem anos atrás e foi ativa em todos os embates militares. Desde a guerra das cerejeiras, de 675, a revolução patriota de 710 e a retomada de sinus em 720. Eles só não entraram em combate nas guerras das federações em 740 e na unificação do ATM, que começou em 745 e só terminou em 765, porque foram tudo guerras entre as nações das planícies. Você sabe, estudou história militar. Tá no seu histórico como no meu. E desde então ninguém tinha essa informação. Todo mundo sempre pensou que fosse tripulada.
— É..., mas as informações mudam. E aliás, as guerras das federações terminou em 745, e profana participou sim. No bombardeio das três vilas esquecidas[2], que ocasionou na unificação do ATM.
— Ainda não explica como você pode saber que elas não são tripuladas.
Carlos tirou o computador de mão, passando um arquivo criptografado para Hans.
— Informação da base adriática. Começamos a treinar para poder reagir. Eu estava lá, foi assim que me promovi tão rápido para cabo.
Hans leu atentamente. Seu rosto enrugado por trás daquelas faixas, tinha um olhar perceptível de descrença, surpreendendo Carlos com ímpeto, onde tomou seu colarinho e olhou diretamente naqueles olhos castanhos e austeros, que pareciam se isentar de qualquer culpa.
Isso explica muita coisa, disse Hans, soltando o colarinho e se ajeitando na cadeira, com os olhos em direção ao teto recém engessado do corredor.
— Esse esquadrão foi feito com pessoas selecionadas a dedo. Você sabe. — Carlos comentou, para aliviar o clima.
— É, mas eles terem dito porra nenhuma é complicado.
— Você não é de Roma. Quase ninguém ali é de Roma. Eu e Natalie Biancucci somos e mal nos falamos — porque ela é da base d’Itália e eu da Adriática e ela me culpa pela queda de Roma, por não ter defendido Genoa ou atrasado o avanço para o restante do País. Você deve ser de Eden, ou Coríntia, Nova Israel eu sei que não é e nem Levítica, se fosse chutar, diria que é da própria Nação Pontifícia.
Hans era silêncio, ainda observando o computador de mão, como a ignorar Carlos. Mas do que fosse, Carlos apenas fumou seu cigarro em languidez, observando o desenrolar registrado pelos drones.
— A base nos deu motos não pelo objetivo de sermos mais rápidos, mas para que nos destacássemos como batedores. Quando em combate, seria o último foco, dando preferência pelos veículos pesados e caminhões de campanha.
— Onde você quer chegar?
— Agradece a Deus, Hans... nós não perdemos um filho da puta sequer.
Carlos se retirou, indo tomar um ar. O fuzil atravessado ao peito o dava um ar não de militar, mas de militante, desapegado das leis marciais e da ética de um bom soldado. O cigarro na boca, o capote negro com a insígnia vermelha de Roma.
Os militares da Nação pontifícia usavam vestes verdes com detalhes brancos. Os de alta patente usavam roupas puramente brancas. Se algum deles levasse um tiro, suas roupas revelariam o pânico. Engraçado.
O dia caiu e ficou sem nada para fazer. As tropas parecendo agitadas, saindo aos montes em caminhões de campanha; enquanto naves brancas, cinzas, e negras chegavam. O Heliponto até teve que ser expandido às pressas, pois o volume de naves parecia não cessar e não cessou. Ao final do dia, mais de 500 naves militares encheram os céus como uma nuvem, tendo naves de carga militares e de combate. Recrutas de um lado ao outro eram vistos tirando suprimentos, caixotes e armas dessas naves de diferentes nações, todas em igualdade em uma coisa: — eram das nações eclesiásticas. Todas as 10 insígnias, desde Eden, Coríntia, Levítica, Salomea, Nova Israel, Belém, Jesusítka, Eclésia, Petrólita e, claro, da Nação Pontifícia, figuravam naqueles brasões, naqueles uniformes.
No dossiê, escreveu agora em grego: — uma só nação.
As diferenças que antes podiam ter afundado esse gênero de terceiro mundo, pareciam ter se tornado menos aparentes desde o início da guerra. E sendo sincero, Carlos tinha sérias considerações sobre como o ataque a Genoa foi um tiro no pé. As relações diplomáticas pendiam muito mais contra as nações eclesiásticas, principalmente depois da unificação do Mar de Terra Arabia.
Por exemplo, Atenas e Alexandria, Latinía e Nova Paris, mesmo apenas enviando ajuda humanitária e diplomática, acompanhavam de perto a situação dos direitos vigentes, ajuizando as questões dos possíveis crimes contra a humanidade cometida nos conflitos, segundo consta nas notas oficiais e notícias — havendo um clima de expectativa, antecipando suas inserções no que já era chamado de segunda guerra das planícies.
Os cinco estados Han, Pangeia, e Afrikanyer, por outro lado, as chamadas nações afro-asiáticas, que representavam, talvez, as nações mais populosas e ricas das planícies, não só se isentaram, como apoiaram o ataque do UHD à Roma.
Essas nações tinham em igualdade sérias questões para serem contra as Nações Eclesiásticas, pontuando principalmente Eden, cujo líder ditador, em certas declarações e posicionamentos, parecia ter um gênero que excluía descendentes e fundadores de etnias ‘terceiro-mundistas’, apontada primeiro no livro ‘o fim’, onde Oliver-Pine culpa as nações subdesenvolvidas por destruir a Terra pela sua ignorância, livro que foi essencial na formação apostólica que regia a filosofia eclesiástica, além de fundamental para o primeiro êxodo dos distritos.
Essa posição dava uma margem de vantagem curiosa para o UHD, além da já existente, no sentido produtivo, técnico-científico, populacional e econômico.
Observando os cinco estados Han, que ocupam grande parte do oeste de Marte, vê-se uma Autocracia, controlada por cinco famílias cujo patriarcas são fundadores com relação direta ao UHD, sendo eles Kensaku Watanabe, antigo gerente executivo de tecnologia da Mars Arms; Jee-Woon Kim, ex gestor de relações replicantes, cargo político da Megatorre 3; Zhang Ziyi, fundador e ex CEO da Parfurm Vitae, empresa de cosméticos; Han Aidi, que havia sido ministro do interior por um mandato durante 624 a 632; e Jun’ichiro Tanizaki, geneticista sênior da operação replyka. O descontentamento aparente contra o UHD não foi suficiente para aproximar as nações eclesiástica a Han, tendo nessa relação um complexo e lucrativo sistema de trocas, tanto cultural, quanto econômico e filosófico.
Caso parecido com Afrikanyer, uma república representativa, e que recentemente teve um presidente replicante, chamado de Gnoam M’bala, o que por si só, em diferentes termos, era um absurdo — não sendo reconhecido por 6, das 10 nações eclesiásticas — mesmo que houvessem multinacionais importantes, como a mineradora Níquel Power e a fabricante de armas Glass Unit e sendo apontadas como, fora o UHD, a nação economicamente mais importante de Marte, tendo uma relação diplomática bem proveitosa com o ATM e as nações helênicas, por mais que demonstrasse apoio ao UHD contra as nações eclesiásticas, por motivos mais culturais do que estratégicos.
Carlos repassava as informações na sua cabeça, pensando em como poderia desenvolver um plano de ação. Rapidamente, lembrou-se de Pangeia, também uma república federativa, sendo sua democracia dominada por famílias fundadoras e latifundiárias, e gozando de um território constituído por uma faixa de terra setentrional, no centro oeste marciano, onde fábricas de gases se tornaram fábricas verdes e passou-se a produzir mais de 2 quintos da produção mundial de alimentos. Seu atual primeiro ministro, Luís Tolaux, era primo de primeiro grau de André Tolaux, representante final dos distritos não-desenvolvidos e que curiosamente havia mandado uma puta (era uma puta mesmo? ele não se lembrava) para Dois Meia como favor.
Essa é uma relação bem particular, ele pensou. As nações mais importantes terem tamanha afinidade com os distritos. E Carlos Andrade também tinha para si que a guerra tendo como princípio a morte de alguns cientistas, parecia justo, tendo em conta a primeira guerra das planícies, onde o sequestro e morte de dois geólogos tornou os distritos a tomar a primeira posição bélica na história de Marte. Entretanto, visualizando o quadro geral, a guerra não ia trazer ninguém de volta. Pelo contrário: viveriam a guerra eterna.
Talvez se Oliver-Pine morresse, como era de desejo de Um, as coisas se acalmassem. Mas não era tão fácil. Dez nações eclesiásticas, tendo suas próprias, por mais semelhante que fossem, legislação, autonomia, sistema governamental e instituições, não se deixariam desaparecer, ou mudar, fosse o que fosse, seus próprios ideais, pela morte de um homem. A vida em si não tem significado intrínseco. Nem a morte. O que faz a vida ser especial é o ato de viver; e no caso dos eclesiásticos, viver em Deus. Mas o que seria Deus se até aquele momento, Carlos só tivesse visto orações mal desenhadas de gente que talvez nunca tenha tido uma resposta. Será que Deus era uma mentira, ou será que seus súditos haviam perdido a fé? Pelo que entendia, Deus era a espada que sustentava essa guerra. Nesse caso, talvez se importasse, talvez quisesse queimar a Sodoma de Marte. E sendo desejo de Deus, claro que também o seria de seu profeta.
No refeitório, devorando suas batatinhas, comendo o feijão transgênico com leveduras sintéticas, soube de notícias. O esquadrão havia retornado junto com parte do corpo da base Lúcio Antunes. Houve-se baixas, muitas. Metade não sobreviveu. Mas toda a tropa técnica auxiliar estava lá.
Carlos, que foi informado pelo exausto Hans Reiter, se juntou a ele nas tendas de enfermaria, se encontrando primeiro com um sorridente Lykaios, depois com uma ausente Biancucci, seguida de uma Magalhães ferida, junta de um Mattia sem perna, um Pérez sem olho, um Versalhes que faltava um braço, e Antunes sem graça, sendo observado por um Bacci sério num canto.
— Você é um filho da puta sortudo. — Bacci disse sem cerimônias. — Ficamos duas horas sob uma chuva de artilharia, sem saber de nada.
Hans perguntou os detalhes, e Lykaios, que não perdia o encanto do próprio sorriso, disse que primeiro precisavam comer, e que, sentados no calor e com uma comida quente, diria tudo sobre seus pesadelos e monstros; gente profana e sagrada.
Carlos e Hans tomaram a iniciativa, com um sorriso austero e complacente. Biancucci, por outro lado, pediu permissão para se retirar, que formalizaria um relatório, enquanto Bacci perguntou se pelo menos valia uma rodada de cerveja.
— Quantas você quiser. A partir de hoje, já podem se considerar veteranos.
Biancucci voltou na palavra, indo com aquele grupo de homens estranhos, cuja opinião só podia se resumir em ‘desnecessários’ ou ‘cadáveres fardados’. E por mais que ela se considerasse uma sobrevivente por nenhum motivo que fosse, as costas de Lykaios e Carlos tinha um quê de fazer inveja, rindo ao pensar que a piada deles serem largos atrás, tinha um símbolo sedutor de potência — uma potência suicida que nos soldados fazia-os parecer idiotas, como também corajosos, destemidos, bravos. Carlos Andrade, cujos arquivos fez questão de ler após a reunião com os oficiais em Lúcio Antunes, era um mistério. Sobrevivente do ataque em Genoa, e escolhido a dedo para essa tropa pelo então promovido comandante do quinto apoio, Enrico Mazzale; e sendo filho de um tenente-coronel morto em batalha e de uma famosa divulgadora feminista, chamada Cecília Meirelles — ele parecia estranho em relação as suas próprias atitudes, não reconhecendo o desejo de vingança e nem mesmo o de impotência, como se tudo estivesse sob seu devido controle. Ficou sabendo também que sua mãe ainda estava viva, tendo viajado para o ATM antes do início da guerra e retornado no decorrer, indo para Eneida. Seu último paradeiro era desconhecido. Como uma arquivista, Natalie se sentiu incomodada e como sargento, desconfiada. Havia conversado com a recruta Magalhães sobre os homens do esquadrão e a opinião dela era pior.
— De um lado temos um monte de marmanjo que mais parecem crianças brincando de guerra; no outro, veteranos suicidas que parecem que irão nos levar a morte certa apenas por um gostinho a mais de sangue. E tem nós duas, com marido e filhos em casa, ansiosas demais para saber sobre qualquer merda.
Conversaram um pouco nas vésperas do ataque à base Lúcio Antunes — podendo contar nos dedos os minutos antes das sirenes serem acionadas. Seu comportamento foi bem similar ao que dito nas instruções, aproveitando a meia hora de antecedência pra pegar o que quer que fosse, e se adiantar o quanto antes no evacuamento da base (o alto comando havia decido ceder, para minimizar baixas). Foi quando ela o viu, já na sua moto, gritar meia dúzia com um recruta, sobre não ter tempo para miudezas, que tudo viraria cinzas no sonho de Nero. Carlos havia se tornado um covarde nos olhos dela. Não sabia que sentimento era aquele, parecido com desprezo. Lykaios, que havia a ajudado a por suas coisas nas bagagens de couro, por outro lado, um príncipe; Pérez como uma estátua de ébano conduzindo sua moto, um amante em potencial. Até a lésbica da Magalhães te soava atraente. Mas sentada naquela cadeira dura do refeitório, levemente embriagada pela cerveja insossa de Roma, e olhando aqueles olhos castanhos, ela pontuou e descobriu que realmente era desprezo, enquanto as crônicas de uma noite desesperada era narrada pela voz animada e infanta de Lykaios.
— Foi logo depois do bombardeio da base. — dizia quase com gestos — A gente conseguiu ver as chamas ao longo da estrada. Vocês sabem, usam inflamáveis pra penetrar os escudos antibalístico e o domo de ferro. Não é grande coisa. Enfim, vimos luzes atravessar o crepúsculo, pensando ser naves de apoio. Quando os fuzis de antipartícula rasgaram a escuridão, eu só sabia que estava fodido. Você tinha que ver: caminhões de campanha e tanques antiaéreo, coisa de uma tonelada, sendo cortados como manteiga ao meio, além dos corpos sendo mutilados na sequência dos feixes. Mas é engraçado, é só um borrão. Quando você vê, tudo está destruído. É monstruoso!
Carlos deu um bom gole na sua cerveja.
— Parece que o batismo correu bem então.
Lykaios e Bacci levantaram alto suas latinhas, comemorando. Hans, com um sorriso desanimado, avisou que ainda faltavam três anos de catequese. Biancucci aproveitava a cerveja com um olhar de julgamento, como se os três fossem idiotas.
A segunda guerra das planícies nem havia começado ainda, Carlos pensou, talvez por isso ainda sorrissem. Talvez tudo ficasse bem. Ele observou Biancucci de cima a baixo, ela era bonita com aquelas roupas militares, com aqueles olhos azuis de nobreza; e ela percebeu, querendo mata-lo ao se sentir desejada — não entendendo o que um homem tão desprezível queria ou achava o quem ela era.
Lykaios chorou. Disse que sentia saudades da sua família.
Tudo vai dar certo; alguém disse ao fundo.
Tudo deu certo hoje, vai dá certo amanhã.
[1] Antieletrônica e Antifotônica. Determinados equipamentos, dotados de inteligência quântica, não eram mais afetados pelas munições tradicionais, e por efeito, munições que atrapalhassem a passagem de informação ótica e processamento se tornou necessária num novo contexto de guerra, apesar desses recursos não serem comuns.
[2] As três vilas esquecidas, em Xanthe Terra, nas terras sem pátria, cujo interesse de Eden, cidade das nações eclesiásticas, Atenas e Alexandria, que na época tinha o apoio do UHD pelos acordos diplomáticos de 730 e as mil vilas do deserto não governadas, acabou no embate militar indireto, pelo apoio de milícias locais e grupos extremistas. A participação do UHD no fornecimento de armas foi um escândalo, mesmo que as guerras fragilizassem os governos das planícies, o que acabou em uma série de acordos antibélicos e não agressão que norteou o meio século de paz entre o UHD e as nações de marte. As três vilas esquecidas eram agrupamentos militares estratégicos, cuja guarnição de alimentos apoiava Éden e as milícias alinhadas. O bombardeio, operação pouco conhecida até então, foi primordial para o balanço dos três poderes interessados no pedaço de terra que compunha a região.