Volume 1 – Arco 1
Capítulo 7: O silêncio prévio de Redneon
Estamos vivos, em plena atividade. Dois Meia questionou: eu estou vivo, em plena capacidade — mas não questionou a que vida e a que atividade.
Acordou no seu próprio sangue, na própria merda, não preocupado ao que deveria ser seu cadáver, levantando e olhando cada canto, procurando tardiamente ao que se sugere ser um sonho. Estava acostumado ao eclipse, isto é: às ruas nebulosas e gente esfumaçada, se questionando de como poderia buscar algo apenas para ti. Talvez sendo outra pessoa, ele concluiu. O problema é que ele tinha quase certeza de que sempre seria a mesma merda.
Pegou sua bicicleta — sua roupa estava suja de tudo. Sorte que naquelas ruas embranquecidas de céu, ninguém se importaria. Foi violentado? Foda-se. Foi morto? Foda-se. Se pudesse se vingaria. Não hoje, claro, não hoje.
E entre pedaladas, observou as ruas amontoadas de lixo, vendo homens vestidos de terno transitando entre as pequenas lojas, recarregando suas partes biônicas em público, além de moças e rapazes desorientados, acordando do coma de uma noite regada a álcool e drogas. Apontou seu dedo, disparou mil vezes. As máquinas de asseguramento social, uma bala. Fodam-se os tanques do governo, fodam-se todas as pessoas. E foi pedalando que viu seu reflexo nas lentes de sílica daquelas máquinas, nos membros de polímero, parando em frente a uma fábrica de peças de aço e alumínio, que trabalhava também com fibra de vidro e espelhos, vendo, finalmente, a si mesmo — sua totalidade — sem distorções, ou deturpação, encarando o rosto amarelado, o cabelo castanho sujo e desgrenhado, as olheiras berrantes, no entanto, nenhuma cicatriz ou marca. Até o seu corpo magro, com ombros curvos, não estava ferido de todo, parecendo até bem mais saudável.
Um sorriso: melhor cenário possível. E novamente estava sem rumo, indo de lugar a lugar, passando por toda rua e beco enquanto a vida ainda permitisse. A força como uma afirmativa, o modo como se influencia o arredor arbitrariamente. Poderia ter ido para a aula, mas se conteve. Parecia como se tivesse renascido. Preferiu ir à praça, sentar onde considerava ser o centro do mundo.
E lá esperou, em breves minutos, que algo realmente mudasse. Uma gangue de meliantes juvenis fumando e se drogando, riam enquanto escutavam algo de post-music, admirando certa arma que levavam. Aquele pequeno revólver, de apenas oito balas, nunca se esquecia: semiautomático, com a logo da Lest-Taurus esculpido no cano, e da distribuidora Mars Arms no cabo. Se lembrava... É, se lembrava muito bem. Foda que além disso, não havia mais nada. A fuga daquela praça acontecendo após um longo monólogo, e ele fugindo para algum lugar.
Não havia nenhum lugar, entretanto, não havia muita coisa na sua mente. Seu mundo tão pequeno quanto um grão, no caso de os grãos serem infinitos e sufocantes em toda sua diminuta circunferência, pareceu menor. Pensou em sair, fugir — ir pra Hellen Point, ou pra Giant Tree. Impossível. A velocidade de escape era de uma demanda imprescindível, cuja energia lhe faltava. Quer dizer: o que mudaria mendigar em outra cidade? Nada. Preferiu suas memórias. A distância idealizada de uma criança. E, curiosamente, lembrou do seu amigo, aquele que dormia na cama ao lado, e da tristeza que lhe tragou, percebeu a insignificância das pessoas neste mundo. Quer dizer: lembrava nem dos números dele, só do apelido idiota. Hide, muito idiota. Ele e Hide iam pra um ferro-velho, que meio que tinha uma colina, cuja permitia ver quase todos os distritos num dia limpo. Era embriagante. Melhor: sufocante.
E foi pra lá que foi, revendo-a das grades enferrujadas, de seu topo dominado por capim e árvores que eram comuns de se ver nas bordas do distrito, perto do interior, nas chamadas fábricas de gases. E também foi lá que se lembrou.
Hide, Heh. Ele gostava mesmo de se esconder. Nunca lutou com ninguém, preferia se esconder. Melhor: lutava consigo mesmo. Ele também gostava de se cortar, gostava de ver o próprio sangue e um dia parou de se esconder. Nunca escorregou na névoa, sendo que, na verdade, Hide morreu. Se matou. E Dois Meia lembrava — ele realmente se matou. E olhando aquelas colinas dominadas por quadrados cinzentos, amarelados, vez ou outra de tijolos vermelhos, ou estruturas espelhadas, imaginou como seria se ele ainda estivesse ali.
As favelas de Hellen Point e Dirty Roots tinha uma nova facção. Escutou de uns meninos na escola. Foda-se. Estava sozinho naquele mundo, e não impediu ele de morrer. Mas é foda, porque era Hide quem quis sangrar até a morte, que nem a porra de um porco — Hide sempre quis — mas era Dois Meia quem segurava a culpa, quem chorava por esse merda. Por que? Por que ele se matou? Pensou que talvez fossem esses novos traficantes, talvez pelo fato de que na Megatorre 5 tenham pleiteado as inserções de corpos d’água nos distritos A e B, ou também pelo fato de que o pai de Hide tinha estourado os miolos da mãe dele e depois se matado. As Megatorres são enorme, não são? Ele sempre dizia.
— Parece que irá cair sobre nós
— Não. — Dois Meia respondeu para ninguém.
Era o símbolo final da soberania, essas torres, do homem contra tudo, assim como contra a si mesmo — de toda imponência magistral devorando o significado democrático de distrito e humanidade.
Pra ser sincero, Hide não entendia, não entendia essa imponência, por isso preferiu se matar. Dois Meia não, Dois Meia estava encantado com esses significados, com o mundo, com a dignidade — e é o trabalho que traz ao homem todo sentido de sua dignidade. Foda-se que te vissem como um inseto. Quem não é um inseto? Foda-se. O sistema é digno. As pessoas não o são. Mas se o sistema foi criado por pessoas, o que então seria dignidade. O trabalho. Não a morte. Foda-se Hide. E Dois Meia chorou, inscrevendo numa daquelas árvores os números 273.891.645.