Volume 1 – Arco 1
Capítulo 5: Meu pútrido raio de lunar.
Os olhos ficaram na menina da frente qual deitava sua cabeça. O intervalo terminando, e a maioria da turma já havia retornado para sala, com Dois Meia lá, desde o começo, escrevendo um conto triste, sobre um homem que perdia suas partes toda vez que entrava em batalha. Oito Nove, paparicado, não era o modelo — não, Dois Meia diria, vendo como os olhares da sala ficavam nele, de como as meninas perguntavam sobre seus machucados, se ele estava bem — o que nunca na vida haviam te perguntado.
Se queixou, depois. Claro, o conto não era sobre ele, entretanto nenhum pedaço faltava. Ficou pensando como mudaria o final, dando voltas em lamúria, desistindo quando o exercício se tornou penoso, ouvindo a aula que irritava — tendo repentina epifania, sobre a vitória ser, por direito, um modo de suceder sua vontade. E, claro, incapaz de entender o que o cansado professor dizia, ele apenas ficou vagando entre seu conto e a forma como a realidade se desdobrava, chegando na bárbara conclusão que independente do resultado, vitória é o que aguarda aqueles que lutam.
Não, quer dizer, mal conseguia se concentrar, estando como aquela garota, de cabeça deitada na mesa da carteira, fingindo ser, até o fim da aula. Sonhos posteriores e lágrimas repentinas, além de sons distantes de sinos, te recobraram que ainda era, ouvindo os alunos se levantarem e saírem, fofocando sobre Oito Nove e exagerando a vitória.
Estava cansado, observando o movimento destes, cujo não lhe importava, sendo o último a deixar a sala, preocupado com outras coisas no mundo além da violência que uma pessoa pode cometer contra outra, seguindo pelos corredores de cabeça baixa, não prestando atenção nas diversas coisas que existiam, como os alunos do último ano fumando nos corredores, dos professores sentados naqueles bancos decadentes, pichados com os símbolos de gangues e palavrões, ou das meninas que andavam em rebanho pelo corredor, indo em direção ao banheiro.
Todo dia é uma merda, ele pensou, todavia, no refeitório, certo odor te atingiu, fazendo com que as coisas ao redor parassem, por um momento, e retornassem ainda mais monótonas em seguida. Era um odor desconhecido — um perfume pra ser exato, de mulher, de flores, como a do seu sonho.
E foi incrível, pois tudo se tornou mais bonito apenas com o mínimo da fragrância, com a paisagem monocromática da escola sendo tomada por tons pastéis de amarelo e rosa que até então não havia reparado, imaginando se o dia não seria diferente dos de sempre.
Próximo do portão do colégio, uma sensação estranha pairou, quase lhe dando certeza, onde percebeu sem querer a existência de uma carta no bolso de sua calça, olhando de um lado ao outro, procurando suposta pessoa que poderia ser o autor. O silêncio repentino sendo a resposta, sozinho com aquele pedaço pardo do qual carregava o mesmo inesquecível odor, além de uma letra delicada, a ausência de destino e autor, estando escrito:
— Vejo que não me vê; mas devo te vê outra vez; encontre-me às nove no beco leste do orfanato de Saint Mary; PS: está na hora de nos resolvermos logo.
As mãos de Dois Meia tremeram. Nunca na vida esperou que ainda houvesse um bom momento reservado para ti. E se não fosse, caso foi-se feito um equívoco, que mal teria em se iludir. Era um bom momento reservado para ti, em tempos onde não havia mais nada.
Nas distâncias andadas, sentiu alívio, além de uma euforia perturbadora, imaginando como seria a autora da carta. Talvez fosse a menina que ele dedicava poesia, mesmo que também pudesse ser outra. Independente de tudo, idealizou amor.
Curioso, pois as caixas não eram tão pesadas quando imerso, nem o ar era tão poeirento ou abafado na ideia, e as pessoas que gritam contigo nem mesmo pareciam existir. Trabalhava num galpão que ficava dentro do polo industrial do subdistrito F fazia seis meses e aquela foi a primeira vez que se sentiu realizado no próprio trabalho de logística.
Quando saiu, aliás, vendo a luz lunar atravessar o ambiente, foi além, sentido em todo seu corpo uma expectativa fodida, que mais parecia como se estivesse deitado num campo tranquilo, vendo constelações inteiras na escuridão do céu. Por exemplo, não conseguia tirar do rosto o sorriso, suas mãos tremiam e a bicicleta que te levava parecia o objeto mais leve do mundo.
Passeou pelas ruas, sonhando acordado, fosse pelos becos escuros, caminhando para longe do som das músicas sugestivas, dos cabarés da alta noite e boutiques; indo pelas zonas residenciais, em que crianças e adolescentes ficavam nos lances de escada, bebendo, fumando, jogando e falando merda. O orfanato ocupava uma quadra, e pedalando lentamente até lá, viu na luz obliqua uma silhueta que talvez fosse ela. O foda era que não sabia quem ela era.
— Ei você. — a figura te chamou. — É você mesmo?
Encostando a bicicleta próximo de uma lata de lixo e afundando seus pés na lama, ele olhou para ela, tentando reconhecer quem seria.
Ele perguntou:
— Você é a garota da carta, aquela que também me vê?
Não pôde mentir: seu coração batia rápido e pesado. Olhou nos olhos dela, viu a luz lunar iluminar brevemente seu rosto. O sorriso percorrendo seus olhos, de algum modo, lentamente indo à clavícula, às costelas, aos seios, à barriga... ela era, talvez, o ser humano mais lindo que já viu na vida, sendo negra, com cabelos cacheados tal qual um buquê, tendo olhos escuros como piche e um corpo com como dunas, como colinas; curvas onde ele se perdia.
— Em toda sua vida... — ela continuou. — Você esperou por esse momento não foi?
Talvez fosse, mas do que importa?
— Você não? — perguntou.
— Não.
— Então o que faz aqui?
— Vim ver se você ainda é a mesma pessoa. — ela acendeu um cigarro, parecendo ser o último ponto de luz naquela escuridão.
— Por que eu seria outra pessoa? — ficou pensando em Franker.
— Mudar sempre foi uma qualidade sua. Se adaptar. Pelo que sei, é bem difícil de você ser a mesma pessoa de ontem, ou a de anteontem.
— E se eu for a mesma pessoa de ontem?
— Se for, quer dizer que está morto.
— E acha que eu estou?
— Morto? Não, eu não acho.
Olhou para como ela descartava o cigarro, vendo também a luz se apagar. Decepção, uma palavra que veio na sua cabeça, também se perguntando sobre quem ela era. Ele ficou, esperou uma resposta, ansioso — com a eternidade do silêncio roubando seu ar.
— Quem é você? —finalmente perguntou.
— Você é um verme do caralho, sabia?!
Ela te golpeou com um pedaço de pau na costela, também o acertando na cabeça.
— Me diz... — disse. — Quanto tempo você viveu pra dissimular a natureza assim? Quanto eu teria que viver pra destruir seus ídolos? — ele não entendeu, enquanto sentia seu estômago revirar, seu diafragma arfar, seu braço entortar e o sangue verter do roxeado de sua pele.
Seu rosto na lama, parecia até o início do dia. O amor que sentiu desfeito — claro: ele nem sequer existiu. Na verdade, o que ele buscava não era amor, deve ter sido por isso que lágrimas escorreram, pois sentiu, por outro lado, que nada nem ninguém nunca o salvaria.
Ela não importava mais, concluiu — poderia te matar, vender seus órgãos, destruir seu ser. Tudo que ela poderia fazer, não doeria tanto quanto o que já fez.
— Você não precisava disso tudo. — foi dito depois. — Porra, ele era ninguém. — As luzes se apagam.
O sangue se derramando na lama, se misturava, e sem ao menos perceber, viu as naves em alto céu pontilhando como estrelas. O pensamento na cabeça, a certeza de não haver dias bons — chorando como criança — seus soluços como de um bêbado; no relento sendo tão velho quanto Franker.