WebNovel – Primeira Parte
Capítulo 8: Memórias Com Gosto de Açúcar
Dizem que, no fim da vida, tudo passa como um filme diante dos olhos, cada cena embaçada, uma corrida vertiginosa por momentos que já se foram. Mas ninguém avisa o que acontece quando é outra pessoa quem assiste a esse filme. Quando alguém está ali, no lugar de quem morre — sem poder tocar, vendo cada lembrança ruir. Há algo monstruoso em assistir ao fim de alguém. É uma agonia silenciosa, como ver uma casa desabar por dentro e continuar de pé, imóvel, entre os escombros.
A mulher, que minutos antes respirava como qualquer outra, agora se movia com cuidado, como se o chão tivesse rachado sob seus pés. Evitava olhar para ele; parecia temer que um único segundo de contato despertasse algo irreversível. Havia, no medo dela, uma lucidez terrível — como se a morte, ali, tivesse ganhado forma e respirasse entre eles.
Shirou lhe deu as costas, movendo-se com uma calma quase dolorosa. Sabia que aquilo a deixaria mais desconfortável, mais confusa. Ela estava à beira de um precipício, e ele era a única coisa entre ela e o vazio. O som dos passos dele soou leve, quase ausente, enquanto voltava ao seu lugar. Era como repetir um gesto que o corpo lembrava, mesmo quando a mente já havia esquecido. A pergunta da mulher ainda pairava no ar, mas parecia ter perdido o sentido. Tudo o que restava era o espaço entre eles, denso e silencioso, como se o ar também tivesse medo de se mover.
Ele reorganizou sua postura, fez um esforço consciente para suavizar a expressão que, ele sabia, poderia estar mais terrível do que qualquer monstro que ela já tivesse encontrado. Como alguém que finge ser outra pessoa, só por um momento. Talvez, ele pensou, ela quisesse ver alguém mais humano. Alguém que não parecesse saído de uma lenda, ou um pesadelo.
— Você é mais novo do que eu imaginava... — A voz dela vacilava, frágil. Shirou percebeu o medo, silencioso e pesado.
— Eu não sou quem você pensa. — A resposta veio firme, distante, sem emoção aparente.
Ela hesitou, o olhar caindo, o rosto contraído pela dúvida. Parecia procurar algo nos olhos dele, algo que não estava lá. Shirou observava sem pressa, sem a necessidade de quebrar o silêncio. O desconforto dela era palpável, preenchendo o espaço como uma carga elétrica que o ar mal suportava.
— ...Eu morri mesmo? — perguntou, a voz quebrando, como a de uma criança perdida.
— Certamente. — respondeu ele, com uma suavidade que quase soava gentil. Mas não era. O “certamente” foi apenas uma concessão ao inevitável.
A mulher parecia menor agora, mais esmagada pelo peso de sua própria existência do que antes, como se a simples confirmação da morte a tivesse feito murchar, uma flor que ainda tentava se manter de pé mesmo após perder a luz. Ele a observou, atento, mas não com compaixão. Não mais.
— Não se lembra de como morreu? — A pergunta parecia simples, mas caía sobre ela como ferro quente, uma marca de fogo que jamais poderia apagar.
— Não... — A voz falhou, trêmula, cada sílaba carregando um fio de desespero.
Shirou avançou alguns passos, calmos, precisos, cada movimento medido. O som dos pés no chão preencheu os intervalos de silêncio entre os diálogos como se fosse sólido, pesado demais para o espaço pequeno. O tic-tac de um relógio invisível parecia marcar não o tempo, mas a inevitabilidade do que vinha.
— Se arrependeu de algo, isso é evidente.
— Me arrependi...? Passei minha vida inteira aqui... Não pensei que voltaria... pra cá. — Ela falava mais para si mesma do que para ele, como se tentasse organizar os próprios pensamentos, se agarrando a uma lógica que já não existia.
— O número de pessoas que se arrependem e encontram este caminho... é menor do que você imagina. — Shirou a observou, os olhos vazios, impassíveis. — Você tem sorte. Muita sorte.
A mulher não respondeu. Parecia sem palavras, mas Shirou sabia que não era isso. Estava tentando entender por que ele estava ali, por que ela estava ali, e o que tudo aquilo realmente significava. Mas algumas coisas simplesmente não tinham respostas. Nem para ela, nem para ele.
Ela olhou ao redor como se só agora percebesse onde estava. O lugar era o mesmo — paredes brancas, balcão baixo, o computador onde passara décadas digitando relatórios, como quem cava a própria cova com uma colher de chá. Mas algo estava errado. O ar parecia pesado, como se alguém tivesse enchido a sala com gás de riso e medo ao mesmo tempo. Havia um cheiro estranho também, metálico e doce, como sangue derramado sobre açúcar refinado.
Shirou não disse nada. Apenas a observava. Parado. Silencioso. Tão imóvel que, por um instante, ela pensou que ele fosse um manequim — um daqueles que parecem reais demais, até você perceber que estão respirando. Mas ele não respirava. Ou, se respirava, fazia isso de um jeito contido, como uma fera treinada prestes a morder o adestrador.
A mulher tirou os óculos e os limpou, mas a mancha na lente não saiu. Talvez estivesse por dentro.
— Eu... não lembro de como morri — ela sussurrou, como se falar mais alto pudesse fazê-la despencar de volta ao corpo. De volta à vida.
Shirou deu um passo. Só um. Mas a sala pareceu encolher em torno deles.
— Lembra do que deixou de fazer? — ele perguntou, num tom calmo demais, o tipo de calma que vem antes de algo ruim acontecer.
A mulher abraçou o próprio corpo. Os dedos cravaram na pele, buscando algum tipo de ancoragem.
— Eu só... eu só queria mais tempo, sabe? — ela encarava o vazio, tentando puxar uma lembrança, um rosto talvez, mas tudo se dissipava feito névoa na manhã quente.
Shirou não respondeu de imediato. Inclinou a cabeça, como um cão que escuta algo distante. De fato, ele escutava — não as palavras dela, mas o que vinha do fundo.
Aquelas palavras tinham o gosto metálico da culpa, fria e antiga.
E então algo mudou nele. Um estalo sutil, como uma corda de piano que se arrebenta sozinha num quarto escuro.
— Tempo, é o que ninguém tem.
E a voz dele soou diferente. Menos humana. Mais... inevitável.
Ele avançou com passos leves demais para o peso que carregava. Num instante que durou o suficiente para ser sentido, mas impossível de prever, ele a mordeu.
Não houve aviso. Nem ameaça. Só o som seco do impacto, como um livro pesado caindo da estante, e o chiado úmido do sangue quente e viscoso que escapava, rompendo a pele.
Ele mordeu o antebraço dela com uma força inesperada. As mandíbulas se fecharam com um estalo seco dos ossos que ecoou pela sala. A mulher, atônita e assustada, se contorceu desesperada. Shirou permaneceu imóvel, fixo, como um predador faminto, mesmo enquanto ela tentava afastá-lo, empurrando sua cabeça com mãos trêmulas.
Com um movimento quase meticuloso, ele arrancou um pedaço da carne dela. A mulher desabou sobre o computador, a visão turva, tentando estancar a enorme ferida que jorrava sangue. O líquido vermelho se espalhou pelo chão e pelos objetos ao redor, misturando-se ao cheiro metálico que impregnava o ambiente — um cenário catastrófico e desesperador.
Os olhos escarlates de Shirou a encaravam de perto, com uma expressão neutra, sem vestígio de qualquer traço de humanidade. Aquela mesma expressão que antes transmitia conforto agora parecia tão vazia que a fazia tremer, questionando se aquilo era uma provação ou um pesadelo realista demais — um que a fazia sentir até mesmo as dores das feridas que eram e não eram visíveis.
A sensação de estar quase engolindo pedras desceu por sua garganta, o sufocando por alguns instantes. Após respirar fundo, ele tentou limpar o próprio rosto, enquanto o cheiro nauseante da pobre alma, ainda agarrada ao corpo que teve em vida, o envolvia.
Ele havia posto para fora, de forma literal, as dores daquela mulher, cujo nome sequer havia perguntado. A abordagem cruel — que fazia o medo e o desespero emergirem de forma abrupta — era um atalho para o arrependimento forçado, despertando uma sensação sufocante de vida ou morte. Mesmo que as lógicas escapassem em meio ao caos daquele plano entre a vida e a morte, ainda era um atalho que ele não gostava de tomar.
— Desculpe. Eu tenho pressa...
A mulher estava petrificada; seus óculos manchados com gotículas do próprio sangue. A ferida feia em seu braço não doía, por mais estranho que parecesse — mas ela não percebia isso, devido à estranha leveza que sentia no próprio corpo.
— Eu... Eu...
Shirou desejou, em silêncio, que ela não dissesse nada. Não queria ser visto como um monstro. Mas seus olhos já revelavam o que ele preferia não saber.
Sem dizer mais uma palavra, ela desapareceu.
No lugar onde esteve, sob o balcão, restava apenas um bolo redondo de glacê branco com morangos. Um dos morangos estava faltando, assim como um pedaço do bolo, retirado de forma descuidada por alguma mão apressada. O glacê se espalhava pelo local onde a mulher havia se contorcido, e também pelo rosto de quem causou toda aquela cena. Ela gostava de bolos — talvez isso refletisse sua personalidade doce, pensou Shirou, enquanto limpava o rosto com as costas da mão.
Aquela situação nunca poderia proporcionar uma experiência positiva a quem a vivenciasse de forma tão chocante. Pelo menos, era isso que Shirou preferia acreditar. Embora fosse direto em muitas de suas ações, ele não era adepto da crueldade. Sempre que se encontravam, Aquilo questionava suas escolhas, considerando sua compaixão como algo desprovido de lógica.
Para Aquilo, as pessoas que conseguiam atravessar os labirintos e encontrar aquele limbo entre a vida e a morte não precisavam de mais tempo. Manter as almas ali por mais um minuto era desnecessário, já que, no caminho em busca de seus arrependimentos, boa parte de suas memórias já se perdia. No entanto, para Shirou, as almas mereciam algum tipo de dignidade — uma chance de compreenderem seus erros, seus arrependimentos, ou de sentirem paz em sua total completude. Assim poderiam seguir em frente sem deixar nenhum fragmento de si mesmos para trás.
Shirou acreditava nisso com a mesma convicção com que respirava. E por mais estranho que fosse, mesmo ali, respirar ainda era necessário.
Mas o próprio Shirou não sabia de tudo. Enquanto consumia o bolo, não tinha consciência de que, após todo o espetáculo que oferecia às almas individualmente, nada as aguardava além do vazio. O fim absoluto. A boca do coelho faminto realizava a completa deglutição, apagando qualquer traço do que aquelas pessoas um dia haviam sido.
Ele levou outro pedaço à boca, tentando ignorar o gosto. O bolo não tinha gosto de bolo. O bolo tinha o gosto de uma vida — como todos os alimentos deixados pelos mortos. Cada mordida trazia as experiências, arrependimentos e lembranças da pessoa que acabara de desaparecer. Era como engolir um álbum de fotografias queimado, uma biblioteca úmida, um beijo dado tarde demais.
Vivenciar vidas inteiras era cansativo demais. A expressão de Shirou estava sempre marcada por uma sombra de cansaço, como uma febre que não cede. Seus olhos carregavam aquela vermelhidão constante de quem já chorou tudo e não tem mais o que oferecer.
Ele sabia que as pessoas que passavam por ele estavam perdidas, desorientadas, e esperavam dele alguma forma de direção. O papel que desempenhava não era fácil. Guiar aquelas almas enquanto enfrentava as próprias rachaduras era algo que o corroía pouco a pouco. A solidão tornava o fardo mais esmagador.
A primeira vez que encarou uma alma, a intensidade do momento quase o fez revirar as próprias entranhas. Sentiu como se tivesse engolido uma estrela em colapso. Emoções densas, brilhantes demais, todas condensadas num único fragmento, queimando por dentro até quase apagá-lo.
Pelo menos ela vai descansar agora, pensou, com a ponta de uma compaixão que se recusava a morrer.
Mas não era verdade.
Aquilo se divertia com o segredo que escondia da mente do coelho. Apesar de astuto, Shirou não fazia ideia de que, ao final de todo aquele trabalho, o destino das almas era a aniquilação. Nada de paz. Nada de recomeço. Apenas o nada.
Aquilo filtrava o que Shirou podia saber, como se controlasse a entrada de luz numa sala escura. Deixava visível apenas o que lhe interessava. Era divertido. Uma piada de mau gosto com gosto de eternidade.
E então ele ria.
Não era um riso comum. Era um som úmido, escabroso, arrastado, como unha em carne viva. Ou como algo maior do que a garganta deveria conter tentando sair. Aquilo ria não com a boca, mas com o mundo ao redor. Ria pelas paredes, pelo chão, pelo espaço entre um pensamento e outro.
Urgh, pensou Shirou, ao engolir o último pedaço de bolo. Ele sabia que, por um bom tempo, passaria a odiar bolo, como acontecia sempre que consumia as almas condensadas de alguém.
Ele sabia, de algum modo, que precisava consumir. Que cada pedaço de memória, cada alma que se desfazia dentro dele, era a única maneira de seguir. Não era uma escolha, mas uma obrigação — uma dança silenciosa com o vazio. Os pedaços de vida que engolia se dissolviam em sua garganta, não como lembranças, mas como chamas pequenas e incandescentes que ele não conseguia apagar.
O ciclo nunca realmente acabava. Cada nova alma, cada pedaço de si mesmo que se partia, abria um novo caminho, mas não o levava ao fim que desejava. Não havia descanso. Amarrado àquela maldição que o tornava imortal, a dor permanecia, constante. Cada golpe, cada retrocesso de tempo, cada reinício era doloroso. As pegadas eram apagadas, mas as memórias dolorosas permaneciam, acumulando experiências terríveis.
Mas algo mais estava começando a se esconder das suas mãos. Ele sentia as lacunas, as partes da sua própria memória se dissipando como fumaça. Não era a primeira vez que ele se dava conta de que algumas lembranças começavam a desvanecer, e isso o incomodava. Algo estava apagando seus próprios vestígios, e ele sabia que, se não fosse cuidadoso, perderia até mesmo o que restava de si.
Aquilo não era só um ciclo de morte e recomeço. Era mais do que isso. Mas ele não conseguia ver todo o quadro. Ele sentia os fios que o prendiam, mas ainda não sabia como cortá-los.
Ele precisava sair daquele lugar e voltar para casa com sua irmã. A estrada à frente era uma espiral sem fim, mas ele sabia que o que realmente importava era o que ainda o aguardava, do outro lado da neblina.
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