WebNovel – Primeira Parte
Capítulo 9: Bolos Não Deviam Ter Gosto de Arrependimento
Entre a morte e o nada, havia um espaço suspenso, onde o tempo não tocava e o corpo não existia.
Nem pensamento. Nem lembrança.
Apenas Aquilo.
E dentro de Aquilo, o que restava de “Shirou” foi arrastado de volta ao ponto onde o nada o havia deixado, sem desejo, sem consciência.
Não houve resistência.
Mas algo o costurou de volta, teimosamente, como o que se recusa a desaparecer.
Shirou abriu os olhos, assustado. Tentou desesperadamente respirar, mas o ar não chegava. Sua traqueia estava obstruída, seus pulmões incapazes de funcionar, destruídos por dentro. O coração, que não batia porque já não existia — reduzido a uma massa dilacerada de carne e sangue — também não pulsava. Mesmo assim, seu corpo ainda mantinha algum traço de vida.
Com ambas as mãos, ele agarrou a viga de metal que o prendia no chão, forçando seu corpo a se mover com as poucas forças que restavam. O metal frio ficou tingido de vermelho à medida que pedaços de suas entranhas se prendiam nele, tornando-o escorregadio. Shirou parecia um animal aprisionado, lutando desesperadamente contra a armadilha de um caçador implacável. A dor era insuportável, lasciva, e cada esforço só aumentava seu sofrimento. Mas, com esforço, ele conseguiu finalmente se largar no chão.
Mais uma vez, tentou puxar o ar pela boca, mas tudo o que veio foi uma golfada de sangue. A única forma de escapar daquela situação seria se dividir ao meio.
Agarrando a viga com mais força, Shirou contorceu o corpo, tentando se libertar. Ele gritou enquanto seus pés deslizavam no chão coberto de sangue e intestinos que escapavam de sua carne. A cada movimento, a ferida em seu abdômen se abria ainda mais. A dor começou a se dissipar à medida que seus nervos se entorpeciam e suas pernas já não respondiam. Finalmente, ele rompeu o fio que ainda o mantinha unido.
Sua parte superior começou a se mover, arrastando-se pelo chão. Suas pernas, ainda erguidas, pararam diante dele, imóveis. Shirou, com esforço, ergueu o braço, apontando para elas, enquanto seu corpo mutilado pulsava, dilacerado, mas obstinado a continuar.
— ...
O tronco de Shirou ergueu-se e se conectou à parte inferior de seu corpo. Os tecidos se restauraram, o coração voltou a bater em seu peito, e as entranhas retornaram ao lugar de onde nunca deveriam ter saído. No entanto, o sangue não seguiu o mesmo caminho. Ele permaneceu espalhado pelo chão, deixando Shirou com uma palidez inquietante.
Curvando-se para a frente, ele firmou os pés no chão para evitar desabar devido à tontura que o dominava. Permanecendo imóvel por alguns momentos, Shirou respirou fundo, sentindo o ar dolorosamente voltar a circular por seus pulmões recém curados. Apesar de não estarem mais feridos, a sensação de agoniante de não conseguir respirar ainda pairava como um fantasma insistente.
— Essa vida... de... merda... que... nem sequer... me permite... morrer...
Seu olhar caiu sobre o sangue que tingia o chão enquanto ele passava a mão pelo abdômen exposto, visível por entre os farrapos de suas roupas. Cada toque confirmava a presença de feridas já fechadas, mas a lembrança da dor persistia.
Cambaleando, ele se aproximou de sua mochila, pegando-a com mãos trêmulas. Sua palidez era assustadora, e o gosto metálico de sangue impregnava sua boca. Tudo o que ele queria naquele momento era um gole de água, algo para lavar o amargo gosto ferruginoso que não saía de sua língua.
— Tenho... que evitar falar palavras rudes perto de... Aiko. Não, é um linguajar adequando para ela.
Um vulto pequeno se moveu na escuridão, atraindo o olhar de Shirou. Ele grunhiu, respirou fundo mais uma vez, sentindo a tensão crescer em seu corpo, e começou a caminhar na direção da sombra, sendo atraído como um imã. No entanto, o ambiente ao seu redor parecia estar em desordem, como se sua visão estivesse envolta em uma névoa de angústia e tumulto, seus olhos escarlates exibindo uma visão distorcida e enviesada da realidade, tornado sua cabeça pesada como chumbo e a sombra, uma crescente forma ameaçadora.
O vulto, correu na direção oposta. Os olhos de Shirou se arregalaram com um brilho feroz e ameaçador. Seu instinto tomou o controle, e ele serrou os dentes com força antes de se lançar em uma corrida frenética. A criatura correu pelos corredores do shopping, virando rapidamente à esquerda e desaparecendo por um momento de sua visão.
Sem perder o ritmo, Shirou saltou contra a parede, usando-a como apoio para ganhar mais velocidade, a cabeça ainda pesava, mas o instinto carregado de adrenalina fazia-o sentir-se leve. Quando avistou a pequena figura negra correndo à frente, ele se impulsionou com precisão, lançando-se no ar. Com um movimento certeiro, envolveu a criatura em seus braços, agarrando-a com força antes que pudesse escapar, ambos agora estavam no interior de um banheiro ainda no andar térreo do shopping.
Era um gato. O felino, espantado, encarou Shirou com seus olhos amarelos. Desvencilhou-se de seus braços usando as patas traseiras e dianteiras, resultando em um arranhão superficial em sua bochecha. A dor aguda foi instantânea, e o sangue rapidamente formou um fio vermelho no queixo de Shirou. Mas, em um instante, a ferida começou a fechar-se, como se um zíper tivesse sido puxado, selando o tecido e não deixando um vestígio sequer do que a pouco era o ferimento.
O gato saltou para uma das pias e depois para o chão e passou pela pequena porta do banheiro, que dava acesso ao corredor que a pouco estavam. Shirou não compreendeu totalmente o que havia ocorrido nem o motivo pelo qual fora atraído pelo felino. A sensação de falta de sangue no corpo atingiu-o com um baque súbito, levando-o a desabar no chão sujo e úmido do banheiro. A adrenalina o havia levado a perseguir o gato, assim que o felino desapareceu, evaporou rapidamente, dando lugar a uma fadiga avassaladora.
Lutou para que a consciência não se esvaísse, recusando-se a permitir que seus olhos se fechassem como persianas. A recuperação completa não demoraria, mas, até que isso ocorresse, ele não podia se dar ao luxo de perder a consciência e desperdiçar preciosas horas naquele lugar.
Com esforço, ele se forçou a levantar. Após erguer a cabeça e o tronco com grande dificuldade, apoiou-se em uma das pias. Mantendo a cabeça baixa, tentava controlar a respiração, aguardando pacientemente que sua força retornasse. Seu peito subia e descia com um ritmo cuidadoso, como se os pulmões pudessem se estilhaçar como vidro a qualquer respiração mais forte. Talvez o desgaste mental o tivesse feito reagir ao gato, como se enxergasse nele uma alma errante, acreditando ser mais uma chave para outro plano. Mas não podia ser isso. Recentemente, havia lidado com uma, e ainda não tinha enfrentado a conversa com Aquilo. As memórias estavam confusas – como sempre ficavam após consumir uma alma. Sua mente estava sobrecarregada, e isso levava tempo para se curar, diferente de sua carne.
Caminhou de volta para casa devagar, passos lentos de quem não tinha pressa – mas ele tinha. Muita, mesmo. No caminho, ele se trocou, vestindo roupas mais limpas para não assustar Aiko com sua aparência de alguém que havia enfrentado uma batalha. O eco persistente da dor que sentira com o metal frio o perfurando, ainda assombrava sua mente quando parou debaixo do poste familiar, o brilho intermitente da lâmpada parecia amplificar sua fadiga e o latejar de suas têmporas. Ele ergueu os olhos para o poste, desejando que o piscar incessante parasse.
O poste se curvou até a altura de Shirou, suas curvas formando espirais sinuosas. Sem saber como, uma lâmpada surgiu em sua mão, como se sempre estivesse ali. Com um gesto automático, ele entregou-a ao poste, que a pegou e, de forma quase cômica, encaixou-a no lugar da lâmpada falhando. Em seguida, voltou à sua forma habitual, erguendo-se imóvel. Shirou piscou indiferente e virou o rosto para a rua, como se nada tivesse acontecido, como se a cena tivesse sido uma ilusão provocada pela fadiga. Mas ele sabia que não era.
Aiko o esperava sentada à porta, com o ânimo baixo demais para quem costumava sorrir. Shirou notou o curativo no joelho dela e, sem que precisasse de explicações, entendeu que a culpa não vinha só da queda. Era também pelo estado da casa.
Doces caíam do teto em um fluxo irregular, como gotas de uma chuva suave e errática. Shirou a observou em silêncio, enquanto Aiko desviava o olhar, imersa no sentimento de culpa.
Ao entrar na sala, ele ficou imóvel no centro do cômodo. Acima dele, o teto parecia vivo, produzindo doces com a indiferença de uma nuvem carregada. As balas pingavam no chão e sobre os móveis, algumas se empilhando, outras rolando lentamente pelo chão.
— Maninho... Aiko não fez por querer. Eu só... só queria doces. E aí... eles começaram a cair.
Shirou respirou fundo, as mãos na cintura, os olhos passeando pelo caos açucarado.
— Todo mundo, pra fora, agora...! — ordenou com firmeza.
A queda cessou no mesmo instante. As balas amontoadas estremeceram com sua voz e, como uma correnteza viva, deslizaram em direção à porta. Era como se a casa respirasse e obedecesse. As balas arrastavam tudo, quase levando os irmãos com elas.
Quando a porta da frente se fechou, selando o silêncio, Aiko resmungou com um desânimo sincero:
— Não ficou nenhumazinha para eu comer.
O irmão não reagiu ao comentário.
— Arrume suas coisas, Aiko.
Ela permaneceu olhando a porta.
— Hum?
— Nós vamos em frente.
— Em frente?
— Sim — disse ele, virando-se lentamente — para um novo cenário.
— Nós vamos... nos mudar?
— Sim. Nós vamos.
A seriedade na voz dele soava estranha. Como se algo tivesse se quebrado lá dentro. Aiko percebeu, e quis aliviar a tensão. Se aproximou, silenciosa, e o abraçou por trás quando ele mal havia subido o primeiro degrau da escada. O gesto o paralisou. Ele virou-se devagar, e começou a acariciar seus cabelos. Aiko se aninhou mais nele, seus movimentos lembravam um gato manhoso, e a respiração quente contra o peito dele fazia tudo parecer um instante roubado de alguma outra vida.
— Eu vi... um gato hoje.
— Um gato?!
— Hunrrum. — A mão dele continuava nos fios dela. — Preto. Mas ele fugiu de mim quando o peguei.
A expressão de Aiko murchou um pouco, como uma flor ao entardecer. Seus braços ao redor dele afrouxaram. Por um instante, ela teve a sensação de que havia esquecido algo, mas logo esse pensamento se esvaiu.
— Ah... Eu quero comer bolo hoje.
Ao ouvir isso, uma sensação nauseante subiu pela garganta de Shirou. A menção ao bolo trouxe à mente o gosto doce do glacê, que agora parecia misturado com um sabor metálico e amargo, lembrando-lhe o sangue. A memória do sabor do bolo, que antes parecia inofensivo, transformou-se em um tormento em seu paladar.
Sem conseguir controlar o impulso, ele cobriu a boca e correu escada acima, sentindo como se algo repulsivo estivesse prestes a sair. Ao entrar no banheiro, inclinou-se sobre a pia. O vômito explodiu de sua garganta com uma força brutal — um fluxo grosso e viscoso que parecia torcer seu estômago. O líquido denso desceu pelo ralo com um som horrível, um mingau espesso e ácido que misturava restos do bolo com sucos gástricos, sangue e bile. A água da torneira aberta misturava-se ao conteúdo, arrastando tudo para o ralo. O gosto residual do açúcar — uma combinação nauseante de doce e metálico — persistia em sua boca, amplificando ainda mais seu enjoo e perturbação.
Com as mãos apoiadas nas bordas da pia e a visão turva, Shirou não entendia o motivo de tudo aquilo. Havia anos que ele se acostumara com a sensação de almas sendo digeridas em seu estômago. Teria sido a carne arrancada com tanta veracidade do corpo daquela mulher? Não, não podia ser isso.
Ele puxou o ar com dificuldade; seus pulmões ainda pareciam frágeis como vidro. Não — sua mente é que estava frágil. Impossível, pensava ele, já deveria saber lidar com tudo aquilo. O envolvimento com esse ambiente estava se tornando mais profundo do que imaginava. Talvez fosse por isso que se sentia tão relutante em permitir que Aiko interagisse demais com esse mundo. Não queria vê-la se fundir com essa realidade, assim como estava acontecendo com ele.
Aiko estava parada na porta do banheiro, olhando com preocupação.
— Maninho Shi?
— Aiko, já pedi pra não me chamar assim.
Ela abaixou o olhar, segurando com força o tecido do vestidinho que usava.
— Desculpa...
Ele fechou a torneira, ergueu-se com esforço e limpou a boca, forçando um sorriso. O gosto da mulher ainda queimava em sua língua. Doce demais. Não era só o glacê. Era a essência dela. Cada pedaço do bolo trazia as falhas, os desejos, os pecados. Mastigar aquilo era devorar uma alma inteira.
E era isso que ele odiava.
Não o sabor. Mas a intimidade.
Todo alimento que tocava agora era uma vida. E nenhuma delas voltava. Nenhuma.
— Tudo bem... acontece. — Ele forçou o sorriso outra vez. — Quer bolo? Tem na geladeira.
Aiko balançou a cabeça em negação.
— Humhum. Não precisa mais.
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