A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 3: Limiar

"Nas interseções do destino, encontramos não apenas o reflexo de nossas próprias escolhas, mas também a interconexão de todas as coisas no universo, mostrando que estamos todos ligados por fios invisíveis de destino."

(Reflexos do Destino, Yuki Kazehana)

 

1ª Lua Cheia do ano 1833

Lua da Seca, dia 24

 

 

Três meses se passaram, trazendo consigo os dias quentes do início do verão. A rotina se enraizara nos dias de Yuri, como uma sombra constante. Ele sabia exatamente a hora em que o primeiro cliente entraria no café todas as manhãs, assim como o pedido da senhora com o cachecol colorido, que sempre se sentava sozinha perto da janela.

Trabalhar no café tinha sido desafiador no início, mas a rotina proporcionava estabilidade e o distraía da solidão que parecia já fazer parte dele. Enquanto servia xícaras de café e interagia com os clientes, sentia-se conectado ao mundo, mesmo que por um breve momento. Observar os rostos desconhecidos à sua volta e imaginar suas histórias era uma forma de escapar do passado.

No entanto, a rotina apenas prenunciava um grande acontecimento. As coisas começaram a mudar quando, na madrugada de uma quinta-feira, alguém bateu à porta de Yuri. Seu coração disparou enquanto se levantava para atender. Quem poderia estar ali àquela hora? Para sua surpresa, deparou-se com sua irmã mais nova parada no corredor.

— Otsu? O que está fazendo aqui? — Agora, estava completamente desperto.

— Eu precisava tanto te encontrar... — Ela deixou as palavras escaparem, lutando para conter as lágrimas.

Yuri a olhou com ternura. Com um gesto delicado, segurou o braço da irmã e a puxou para dentro. Enquanto Otsu acomodava-se no sofá, suavizando sua expressão.

Ela estava vestindo seu uniforme escolar e suas mãos estavam grosseiramente enroladas em ataduras. Yuri nunca a tinha visto assim antes. Era desconcertante. Ela seguiu seu olhar e encarou as próprias mãos com um sorriso sem graça.

— Sou horrível nisso, não é?

— Até que não ficou tão ruim assim. — Yuri tentou animá-la, mas não conseguia disfarçar a preocupação. — Está tudo bem?

— Papai quer que eu herde a academia em seu lugar. — respondeu baixinho. Embora seus olhos estivessem voltados para as mãos, Yuri viu o brilho das lágrimas neles e sentiu uma pontada de culpa por vê-la daquela maneira.

— O que aconteceu? — Yuri perguntou, sentando-se ao lado dela.

— Eu o enfrentei. — disse Otsu com amargura. — Na frente dos discípulos dele.

Yuri fez uma careta, curvando-se para ver melhor o rosto dela.

— Me conte tudo.

Durante um bom tempo, eles conversaram sobre as brigas em casa, a pressão familiar e a angústia que os atormentava. E, aos poucos, as palavras de Otsu foram ficando mais intensas, e ela deixou escapar as frustrações e mágoas que vinha acumulando.

— Você achou que estava fazendo o melhor para si, mas... — A voz de Otsu falhou. Seus olhos brilharam com uma raiva contida por tempo demais. — E quanto a nós? E quanto a mim? — As palavras escaparam de seus lábios como uma explosão, a dor tão clara quanto sua voz trêmula. — Você foi embora... — Ela engoliu em seco, respirando fundo antes de continuar. — ...quando eu mais precisava de você!

Yuri sentiu o peito apertar, mas não soube o que dizer. As palavras de Otsu eram como punhais, perfurando cada camada de sua resistência. Ele sabia que tinha machucado a irmã, mas nunca tinha parado para pensar no quanto. “Eu realmente a deixei sozinha”, pensou, enquanto a culpa crescia dentro dele, pesada como uma âncora.

— Você não entende, Otsu. Eu precisava fazer isso.

— Eu sei que você tinha seus próprios demônios para enfrentar, Yuri, mas isso não diminui a minha necessidade de você. — As lágrimas escorriam pelas bochechas dela. Sua voz agora era um sussurro. — Senti sua falta todos os dias. Me senti sozinha e sobrecarregada. E agora eu não sei o que fazer, estou prestes a deixar todos os meus sonhos de lado para fazer a vontade do nosso pai.

Yuri soltou um suspiro e se aproximou devagar.

— Desculpa, deve ter sido difícil para você. — Sua boca tinha um gosto amargo, mas engoliu seus próprios sentimentos e continuou. — Sei que vai levar tempo para reconstruir a confiança que você tinha em mim. Mas prometo que farei o meu melhor. Me perdoe por não estar lá quando precisou de mim.

Com lágrimas nos olhos, Otsu deu um passo à frente e abraçou Yuri. Ele curvou seu corpo retribuindo, sentindo a dor em seu peito evaporar com o abraço inesperado.

— Que tal um pouco de chá? — sugeriu, com a voz abafada contra o cabelo dela.

Ela assentiu e voltou a se sentar no sofá gasto, ao passo que Yuri se dirigiu ao fogão. Enquanto preparava o chá, ele percebeu que Otsu percorria todo o ambiente com os olhos, provavelmente só agora percebendo como o apartamento era pequeno e simples em comparação com a casa em que cresceram. Até que o olhar dela grudou na máscara de lobo que Yuri havia deixado em cima da estante. Era um artefato antigo, símbolo da herança e tradição da família Koyama. A visão daquela máscara trouxe à tona uma lembrança vívida, tão clara como se tivesse acontecido no dia anterior.

O cheiro do chá se misturou com o aroma de memórias antigas enquanto Otsu ergueu a mão lentamente e tocou a franja que escondia a cicatriz em sua testa.

Quando Yuri tinha doze anos e Otsu quatro, ela o convenceu a ensiná-la alguns golpes. Naquela época, ele fazia de tudo para agradar o pai. Em meio a uma sequência de movimentos acabou acertando a testa dela sem querer com a espada de madeira.

Yuri aproximou-se devagar, levando duas xícaras de chá.

— Eu me lembro daquele dia — disse ele com um leve sorriso. — Quando vi o ferimento em sua testa, entrei em pânico. Sabia que o pai não aprovaria a negligência. Corri para pegar um curativo e fiz o possível para escondê-lo antes que ele notasse. Foi nesse dia que algo despertou dentro de mim... Foi quando percebi que nasci para ajudar as pessoas.

Depois de tomarem o chá, continuaram conversando, deixando de lado as mágoas que os separaram. Otsu tomou banho e Yuri fez novos curativos em suas mãos. Agora, um silêncio confortável tomava conta do ambiente. Era bom voltar a ser apenas eles mesmos por um tempo. Porém, Yuri sentia que seu coração ainda parecia ser puxado por uma âncora, arrastando-o facilmente para as profundezas.

Enquanto observava a irmã se aconchegar em sua cama, falando sobre algum assunto qualquer, sabia que, no fim das contas, não poderia fugir. Precisava tomar uma decisão. 

 

***

 

Otsu já estava acordada quando Yuri se levantou pela manhã, talvez nem tivesse conseguido dormir. Segurava uma xícara de chá enquanto olhava pela janela. Seu cabelo casualmente jogado para trás percorria toda a extensão de suas costas, lembrando a Yuri o quanto ela se parecia com a mãe.

— Acho que já está na hora de voltar para casa — disse ela, sem se virar, pegando-o de surpresa. Yuri esperava que ela ficasse ao menos alguns dias. Na verdade, a ideia de tê-la por perto parecia muito acolhedora.

— Bem... se quiser ficar um pouco mais, não teria problema nenhum.

— Não — respondeu ela, virando-se. — A mamãe deve estar preocupada. Além disso, agora que sei onde você mora, posso vir te visitar com frequência. — Por um momento, ela pareceu tão madura que Yuri ficou sem reação. Quando não se vê alguém todos os dias, uma barreira começa a se formar. Era como se ele estivesse diante de uma pessoa diferente. Mas então ela sorriu, voltando a ser a Otsu que ele conhecia. — E você sabe que o papai me mataria se eu deixasse de ir para a escola.

— Tudo bem — concordou Yuri. — Estarei aqui sempre que precisar.

— Não se esqueça que tem uma irmã, hein? — Otsu disse sorrindo, deixando a xícara na pia e pegando a bolsa. Aproximou-se e deu um abraço rápido em Yuri. — Preciso ir agora. O trem sai em meia hora e você também precisa ir trabalhar, não é? Ligo assim que chegar em casa e garantir que está tudo sob controle.

Ele deu um grunhido de concordância, impressionado com a confiança que ela demonstrava agora, em comparação com a noite anterior. Ela sempre foi determinada, pensou, ao contrário dele, que costumava fugir das situações difíceis. Fechou a porta para ela e entrou preguiçosamente no banheiro, espalhando uma névoa de vapor pela porta entreaberta. Saiu ainda consideravelmente molhado, com a toalha enrolada na cintura, e pegou o uniforme preto do Kokoro Café. Vestiu-se um pouco apressado devido ao frio matinal. Arrumou o cabelo com as pontas dos dedos fazendo uma careta para o espelho antes de enfiar os pés em sapatos desgastados e descer as escadas da entrada.

Na saída do prédio, fez carinho no gato que sempre aparecia pela manhã e seguiu despreocupado, parando somente quando avistou a fachada, agora tão familiar. Suspirou, atravessou a rua e adentrou as portas de vidro. Em poucos minutos, o aroma do café recém-preparado tomava conta de todo o lugar. Yuri pegou uma xícara, encheu-a de café até o topo, deu um gole e a colocou de lado, passando um pano úmido no balcão. Deixou escapar outro suspiro enquanto retomava a xícara e conferia o relógio na parede ao lado. Ainda tinha cerca de meia hora antes que Keid e Emi, os outros funcionários, chegassem.

Morar em Itakawa não chegava a ser entediante, mas a rotina fazia parecer que estavam parados no tempo. O que poderia acontecer de diferente? Nada. Era nisso que ele pensava no momento em que a porta do café se abriu com um estrondo, o sino balançando freneticamente.

Yuri virou-se, já com a frase "bom dia" na ponta da língua, mas as palavras morreram em sua garganta. Uma mulher, vestida da cabeça aos pés com uma armadura samurai, entrou lentamente. O brilho metálico contrastava com a luz suave do ambiente, e o som de suas passadas reverberava pelo chão de madeira. Seus olhos, embora cansados, emanavam uma força desconhecida.

— Posso... ajudá-la? — ele perguntou, mas sua voz soou mais baixa do que pretendia. Havia algo estranhamente familiar nela, mas antes que pudesse identificar o que era, ela cambaleou, caindo de joelhos.

O rastro de sangue no chão finalmente quebrou o encanto.

Yuri congelou, sentindo seus lábios adormecerem. O ar pareceu subitamente pesado. Por um segundo, pensou em fugir dali, mas seu instinto de médico falou mais alto. Ele precisava fazer algo, ou aquela mulher morreria diante dele. Pegou o celular no balcão e começou a digitar o número da ambulância, mas percebeu que não haveria tempo. Ela perdera sangue demais, não aguentaria até o socorro chegar. Ele teria que salvá-la com suas próprias mãos.

Impulsionado pelo desespero, disparou pela porta do café. Nunca tinha chegado em casa tão rápido. Subiu as escadas e abriu a porta do apartamento quase com violência, retirando uma caixa que havia guardado em cima do armário sem nem sequer abrir. Mas ele sabia o que havia dentro: ataduras, agulha, linha de sutura e antisséptico. Infelizmente, não tinha anestesia, mas serviria.

Todo o seu corpo tremia quando se aproximou da mulher caída no chão. Ele a deitou com cuidado e desatou a parte da frente da armadura, revelando o ferimento que sangrava copiosamente. Usou as ataduras para pressionar o corte. Depois do que pareceu uma eternidade, conseguiu controlar o sangramento. Sentiu uma mistura de alívio e gratidão quando conferiu seu pulso. Ainda havia muito a fazer, mas pelo menos ela estava viva.

Dar pontos enquanto lutava para controlar os tremores que vinham em ondas pelo corpo, foi um verdadeiro desafio. Quando terminou, estava recoberto por uma camada grudenta de suor. Olhando-a agora, reparou o quão jovem aparentava, devia ter aproximadamente a idade do próprio Yuri. Fios de cabelo prateado contornavam seu rosto bronzeado e espalhavam-se pelos ombros dela. A armadura tinha detalhes de ondas cuidadosamente entalhados. Solta na parte da frente, revelava um grande rasgo no tecido do kimono que vestia por baixo. Ele baixou os olhos para o ferimento novamente, agora coberto por ataduras, um corte profundo na lateral do abdome. Não sabia qual poderia ter sido a causa, mas duvidava que fosse uma simples faca.

Encarou as mãos que ainda tremiam. Não conseguia acreditar no que acabara de fazer, até aquele dia, acreditava que jamais seria capaz de fazer algo assim novamente. Ela ainda precisaria de atendimento em um hospital de verdade, então, pegou o celular novamente e ligou para o pronto-socorro. Mas enquanto tentava explicar a situação, percebeu que ela não estava mais onde a havia deixado. Ele correu até a janela, o coração martelando no peito, esperando ver alguma pista de para onde ela poderia ter ido. Mas o beco lá fora estava vazio, como se nada tivesse acontecido. “Impossível”, ele pensou. Com aquele ferimento, ela mal conseguiria ficar de pé, muito menos desaparecer tão rápido. Olhou de volta para o chão do café — o sangue que antes encharcava o piso havia sumido, como se nunca tivesse existido.

Yuri ficou parado por um momento, o silêncio preenchendo o ar pesado. “Isso realmente aconteceu?”, ele se perguntou, levando a mão à testa, sentindo o suor frio escorrer. Seus dedos ainda estavam manchados de sangue, a única prova de que a mulher realmente esteve ali. O telefone em sua mão ainda zumbia, mas ele não tinha palavras. Algo estava muito errado. E naquele instante, Yuri soube que não poderia mais ignorar o que vinha tentando afastar por tanto tempo: o passado, o legado de sua família, estava voltando para assombrá-lo.

 

 

 

Notas:

A roupa usada por baixo da armadura samurai é chamada de "kimono" ou "shitagi". O shitagi é uma peça interna leve, semelhante a uma camisa, usada para absorver o suor e proteger a pele. Já o kimono ou juban pode ser uma camada adicional, tradicionalmente usada embaixo da armadura. Esses tecidos permitiam mobilidade e conforto durante o uso da armadura pesada.



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