A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 4: Luzes e Sombras

"Em cada batida do coração de pedra, ecoa a melodia da redenção, enquanto um herói amaldiçoado busca quebrar as correntes do passado e encontrar a verdadeira força que reside em seu interior."

(Coração de Pedra, Krisha Mari)

 

13ª Lua Cheia do ano 1646

Lua do Lume, dia 9

 

 

Akemi despertou com os primeiros raios da manhã filtrando-se pelas frestas das ruínas do templo Yumi. A luz tocava o chão de pedra como dedos hesitantes, revelando o pó suspenso no ar. Com um gemido abafado, sentou-se devagar, lutando contra a tontura. Uma dor aguda atravessou seu abdômen. Ao tocar o local, sentiu a textura áspera de um curativo improvisado. Alguém a havia tratado. Disso, agora, tinha certeza.

A mente ainda embaralhada buscava fragmentos do que acontecera. Tentou ajustar a armadura frouxa sobre o corpo, mas o esforço lhe escapou pelos dedos. Ao lado, suas espadas jaziam como cães fiéis à espera. Esticou-se e as agarrou, sentindo o metal frio trazer-lhe alguma segurança. Não sabia quanto tempo se passara desde o confronto, mas a intuição sussurrava que soldados do império ainda podiam estar por perto.

Movendo-se entre os escombros com a leveza de quem aprendeu a sobreviver nas sombras, manteve-se rente às paredes quebradas, espionando o exterior pelas fendas. Nenhum movimento. Nenhuma voz. Mas, ao se aproximar das portas semidestruídas do templo, o arrepio na espinha veio antes da ameaça.

Girou, empunhando as espadas num reflexo afiado. Mas era tarde demais.

Sombras líquidas deslizaram pelo chão e subiram por suas pernas, imobilizando seus braços com firmeza sobrenatural. Era como se a própria escuridão a tivesse engolido.

— Devo admitir... estou impressionado — disse uma voz profunda, surgida do nada. — Raramente conseguem sentir minha presença.

As trevas ao redor se adensaram, tornaram-se quase sólidas. Akemi mal conseguia distinguir formas. Virou-se em direção à voz, os olhos buscando algo entre o negrume.

— Quem é você? — sua voz saiu rouca.

— Boa pergunta... Quem é você e como chegou até aqui? — sussurrou a escuridão, antes de revelar, como surgido de um pesadelo, o brilho opaco de uma máscara de lobo. Ela pairava no ar, flutuando diante do rosto de Akemi, como se pertencesse a um espectro.

Tentou se soltar, mas as sombras apenas apertaram mais, provocando uma onda de dor que irradiou de seu ferimento. Cada batida do coração parecia empurrar mais dor para sua pele.

— Vim até aqui lutando contra os soldados do Império da Água — conseguiu dizer, ofegante.

A máscara e o poder sombrio ao redor confirmaram suas suspeitas. Estava diante de um guerreiro do clã Yamagawa, inimigos jurados do imperador. Já ouvira histórias sobre aquela máscara. Apenas os mais letais a usavam.

Ele inclinou a cabeça, a voz agora mais fria.

— Encontrei seus companheiros perto do Lágrimas de Jade. Vai me dizer quem é você... ou prefere se juntar a eles?

O som metálico de uma lâmina sendo desembainhada cortou o silêncio. A espada subiu, tocando sua armadura com precisão até alcançar seu pescoço. Um movimento, e sua cabeça rolaria.

Os olhos por trás da máscara brilhavam como brasas contidas. Um calafrio subiu pela espinha de Akemi.

Os olhos dele se demoraram nas ondas esculpidas na armadura. O emblema falava por si. Ela não era qualquer samurai. O suor escorria por seu rosto. Havia sido caçada, exaurida, quase morta. E mesmo assim, ali estava, diante de um novo inimigo. Mas como poderia convencê-lo de que não era mais leal ao império?

— Sei o que você vê quando olha para mim: uma general, serva do império, responsável pela morte de inocentes. — Fez uma pausa. — Mas não sou mais aquela pessoa. Abandonei o exército. Não serei mais uma ferramenta do imperador. Luto agora pelos meus próprios ideais. Por justiça.

Suas palavras ecoaram pelo templo. O guerreiro hesitou. A tensão entre eles se condensou como a umidade antes de uma tempestade e Akemi sabia que sua vida dependia da próxima decisão dele. Se conseguisse convencê-lo, poderia encontrar um aliado. Se falhasse, precisaria usar todas as suas habilidades para sobreviver.

— Estou à procura do legítimo herdeiro do trono. Acredito que ele ainda está vivo e quero ajudá-lo a recuperar o trono.

Um lampejo atravessou o olhar oculto pela máscara. A simples menção ao príncipe era um ato de alta traição ao império.

— O que você sabe sobre ele? — ele perguntou, baixando a espada devagar, mas mantendo, porém, Akemi presa pelas sombras.

— Apenas rumores. Mas há quem diga que o dia do retorno dele está próximo.

O guerreiro ponderou as palavras de Akemi, os segundos se arrastaram devagar. Finalmente, ele soltou os braços dela, permitindo que se movesse, mas voltando a espada em sua direção.

— Ideais corajosos, General. Mas você serviu ao Império Mizushima. Por que eu deveria acreditar em você? — Era perceptível a repulsa em sua voz.

Akemi inspirou, escolhendo cuidadosamente suas próximas palavras.

— Sei que não posso apagar o passado, mas agora estou disposta a arriscar tudo para fazer o que é certo. O príncipe é nossa única esperança.

Ele permaneceu imóvel, mas Akemi podia perceber que o deixara pensativo. Por fim, ele abaixou a espada e deu um passo para trás.

— Suponhamos que eu acredite em você — disse o guerreiro, sua voz sugeria algo mais que mera desconfiança. Talvez fosse cansaço, o mesmo tipo de cansaço que Akemi conhecia bem, aquele que vem de anos lutando por uma causa que já não se sabe se vale a pena. — O que sugere que façamos?

— Junte-se a mim. Vamos encontrar o príncipe. Unir os clãs. Restaurar a honra do nosso país.

Ele ficou em silêncio por um momento, antes de assentir lentamente.

— Desista.

— O que? — De todas as respostas possíveis, essa era a que menos esperava.

— Não vale a pena viver à mercê das palavras alheias, muito menos perseguir sonhos que não são seus.

— Então que eu morra tentando. Não vou parar. — Suas palavras eram um sussurro, mas saíram com determinação.

Ele soltou uma risada incrédula.

— Boa sorte com sua busca — respondeu, já se virando para ir embora.

A escuridão se dissipou, revelando-o à medida que se afastava. Vestido inteiramente de preto, a máscara de lobo se destacava com um brilho perolado. Seus cabelos longos caíam com leveza pelas costas.

Akemi pensou em rebater, mas já não via motivo para isso. Estava livre para seguir seu caminho.

Ele partiu, levando consigo aquela escuridão angustiante.

Com as mãos trêmulas, Akemi removeu a armadura e a deixou cair no chão. Sufocando um gemido, apertou firmemente o obi sobre o ferimento, em seguida prendeu as espadas. Respirou fundo e retomou a caminhada. Pelo menos agora tinha certeza de que não havia mais soldados do império por perto. Precisava encontrar um lugar seguro antes do anoitecer.

Saiu do templo, cerrando os olhos sob a luz do sol, enquanto tentava lembrar do vilarejo mais próximo.

 

***

 

As ruas lamacentas de Inazuma surgiram em sua mente como um sussurro. Sabia que era um sonho, mas a pressão habitual em seu peito tornava tudo dolorosamente real. A sombra pequena projetada nas paredes, a dor familiar dos arranhões nos joelhos, tudo indicava que revivia memórias de sua infância. Sentia os pulmões queimarem a cada respiração, a boca seca, o coração pulsando em seu peito como tambores de guerra.

Ao final de um beco sem saída, seus perseguidores a cercaram, vociferando ameaças. Ela, no entanto, já não os ouvia. Um silêncio súbito tomou conta de sua mente. Tudo que existia agora era ela, a espada em sua mão e o caminho que precisava percorrer até seus inimigos.

Curvou seu corpo para frente e esticou seu braço direito para trás, posicionando cuidadosamente a espada. Sua posição era quase uma mesura, um cumprimento solene ao caos que viria em seguida.

Os olhos dos homens pousaram nela como se não passasse de uma piada, como sempre fora. Riam com escárnio, mas os risos cessaram rapidamente. Em questão de segundos, o beco estava coberto de sangue, os corpos caídos, as gargantas cortadas como se fossem de papel.

— Eu não sou uma piada, sou um pesadelo — sussurrou, sem notar a liteira imperial parada ao longe.

Naquele dia, quando o imperador a tirou das ruas, ela sentiu pela primeira vez que poderia ter uma vida melhor.

Mas quando o imperador desceu da liteira e caminhou em sua direção, Akemi reparou que algo estava diferente neste sonho.

Como se o próprio vento estivesse soprando errado.

De repente, já não era uma criança.

Tentou segurar o cabo da espada, mas ela se dissipou no ar, feito fumaça. Então ela caiu de joelhos. O rosto do imperador parecia feito de sombras enquanto chegava cada vez mais perto.

— Você não pode fugir de mim, não pode fugir da justiça — murmurou ele, sacando uma espada que brilhou ao ser erguida no ar. Com um único movimento, ele cortou o pescoço dela.

Akemi despertou com um grito preso na garganta. O sonho havia sido tão real que ainda sentia a ardência da lâmina. Com a respiração ofegante, levou a mão ao pescoço, para ter certeza de que ainda estava com a cabeça no lugar. Sentou-se por um momento no chão, com o suor escorrendo pelo rosto.

Depois de praticamente se arrastar pela estrada no dia anterior, ela conseguiu uma carona em uma carroça até uma hospedagem de estrada, próxima a Uzumé, onde passou a noite em um quarto minúsculo, contendo somente um cobertor fedorento para dormir no chão. Mesmo assim, estava agradecida por ter abrigo do frio.

Levantou-se devagar, sentindo a ferida se repuxar. Sob a luz pálida que invadia o quarto, examinou-a: estava feia. O curativo feito por quem quer que fosse havia salvado sua vida, mas, sem tratamento adequado, não demoraria até que a infecção se alastrasse. Pagou pela hospedagem, um pedaço de pão duro e uma bacia de água.

Não chegava nem perto de ser um banho, mas se limpou o melhor que pôde. Vestiu-se novamente, prendendo seu cabelo em um coque firme, comeu um pedaço do pão e embrulhou o restante em um lenço. Calçou as sandálias, prendeu as espadas no obi e saiu para o vento salgado.

Avistou um mercador na praia e se dirigiu até ele, precisava dar um jeito de esconder o cabelo se não quisesse chamar atenção.

— Como posso ajudar uma moça tão bonita? — disse o homem, sorrindo com dentes amarelados, curvando-se em um cumprimento exagerado.

Akemi esboçou um sorriso que mal tocava seus olhos, tão frágil quanto as folhas secas que o vento levava pelo chão. — Procuro uma capa. Algo simples, para me proteger do tempo.

— Então veio ao lugar certo! — Ele começou a remexer as mercadorias. — Vejamos, tenho uma perfeita para a senhorita, ah, aqui está! — disse, erguendo uma capa verde musgo, forrada por dentro, que protegeria do frio e da chuva, além de ser discreta, possuía um capuz para esconder seu cabelo. Realmente perfeita.

— Quanto custa?

— Cinco Yenjins. — Akemi sentiu seu coração afundar no peito. Tudo que tinha na bolsa eram quarenta e seis Yenjins, não podia se dar ao luxo de comprar uma capa tão cara.

— Tem algo mais barato? 

O mercador torceu o nariz, mas logo voltou a procurar.

— Pensei que estava falando com uma Himura, mas acho que me enganei.

Himura... Faz tanto tempo que deixei esse nome para trás, e mesmo assim ele ainda me causa arrepios”, pensou. Estando tão próxima de Amateru, era natural que reconhecessem as características de uma Himura nela. Isso tornava ainda mais urgente a necessidade de esconder seu cabelo prateado. 

— Que tal essa? — Ele lhe entregou uma capa surrada, de um cinza escuro manchado, bem mais fina que a outra e com um rasgo na parte inferior, mas tinha um capuz grande, era disso que precisava.  — Dez Rinjins. 

Akemi assentiu, examinando a capa. Aquele mercador era muito audacioso para vender uma peça em tal estado a alguém que carregava duas espadas, e ainda por dez Rinjins, o equivalente a um Yenjin inteiro. Mas, considerando sua urgência, ela entregou-lhe a moeda. 

— Ah, muito grato! Boa viagem, moça! 

Colando seu melhor sorriso no rosto, Akemi afastou-se do mercador, o tecido áspero da capa roçando-lhe a pele. O capuz ocultava os cabelos prateados, mas não escondia seus olhos dourados. Precisava de um plano, e rápido.

Não sabia nem por onde começar a procurar. O herdeiro podia estar escondido em qualquer canto do país.

Caminhou pelas vielas de Uzumé com passos leves, desviando de olhares curiosos e sombras mal-intencionadas. A vila parecia respirar em suspiros contidos, carregada por rumores e salitre. Roupas pendiam das janelas como bandeiras, e o cheiro de peixe seco misturava-se ao do óleo queimado.

Encontrou abrigo em uma estalagem simples, escondida atrás de uma tenda de ervas medicinais. Subornou o dono com algumas moedas e silêncio. O quarto era pequeno, mas limpo. Havia um futon encardido no canto e uma janela com vista para o mar.

Quando finalmente se deitou, fechando os olhos pela primeira vez em horas, sentiu o peso da jornada e das decisões que viriam. A dor no abdômen latejava como um lembrete cruel de que ainda estava viva. E de que isso tinha um preço.

No dia seguinte, ao amanhecer, seguiu para o mercado, onde as notícias corriam mais rápido que os ventos. Precisava de informações. Qualquer pista sobre o paradeiro do príncipe.

Atravessava uma viela quando ouviu sussurros apressados.

— Dizem que o herdeiro apareceu perto de Ayatsuri… — murmurou uma mulher, olhos arregalados. As últimas palavras se perdendo no vento.

— Loucura. O império já teria caçado ele — retrucou o outro.

Akemi parou. Ayatsuri. Era tudo que precisava.

Voltou à estalagem, arrumou os poucos pertences, trocou os curativos com folhas e unguentos comprados por mais algumas moedas, e traçou a nova rota.

Não era mais a general que todos temiam, mas uma mulher exausta, cheia de falhas, tentando fazer algo certo.

E, ainda assim, havia um brilho ali. Algo que nem as derrotas, nem as sombras, nem o imperador conseguiram apagar.

Esperança.

Puxou o capuz sobre a cabeça, prendeu as espadas, respirou fundo.

E seguiu rumo a Ayatsuri.

Se conseguisse manter um bom ritmo, talvez alcançasse a fronteira de em alguns dias? Sob condições normais, quem sabe isso fosse possível, mas com o ferimento, seria muito mais difícil. Talvez devesse abrir mão de algumas refeições e alugar um cavalo... Não seria a primeira vez que passaria fome. 

A cabeça latejava e calafrios percorriam seu corpo. Cruzou os braços, tentando aquecer-se com a capa. Devia estar com febre.

Já caminhava há horas, concentrando toda a energia apenas em manter os pés em movimento. Quando se deu conta, havia saído da estrada; as árvores ao redor formavam um teto espesso sobre sua cabeça. Foi então que percebeu: estava cercada.

Seu corpo reagiu por instinto, girando e desferindo golpes. Apesar de não possuir habilidades mágicas, Akemi havia aperfeiçoado um estilo de combate único com duas espadas. Mas seu corpo já começava a ceder. A exaustão a dominava, cada golpe a deixava mais fraca, enquanto lutava desesperadamente para se manter de pé e pensar ao mesmo tempo.

“São muitos. Não vou conseguir sozinha. Minha única chance é encontrar uma brecha e fugir.” 

A visão começou a turvar. Um suor frio escorria pela testa, e as pernas ameaçavam ceder. Tudo escureceu, e por um instante, acreditou que iria desmaiar.

Foi então que gritos rasgaram o ar. Mesmo sem enxergar com clareza, ouvia os corpos caindo ao seu redor. Não sabia quem, ou o quê, estava enfrentando os inimigos.

Cambaleou, caiu de joelhos, esperando pelo pior.

Mas a escuridão recuou.

E à sua frente, em silêncio absoluto, estava o guerreiro mascarado.

 

Notas:

Yenjin: A economia do país é baseada na moeda Yenjin (1 Yenjin = 10 Rinjin). Devido à guerra, houve escassez de bens e aumento nos preços, especialmente controlados pelo clã da água. Além disso, existe a moeda inferior Rinjin (1 Rinjin = 0,1 Yenjin), usada para itens menores.

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