A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 2: Escolhas

"Nos sonhos de voar, encontramos a coragem para romper as correntes que nos prendem ao chão, liberando nossa alma para dançar nos céus."

(Asas da Liberdade, Krisha Mari)

 

1ª Lua Cheia do ano 1833

Lua da Seca, dia 23

 

 

O sol poente tingia o céu com variados tons de vermelho, laranja e rosa quando Otsu cruzou o portão da entrada da escola. Enquanto caminhava pela calçada, o vento soprava folhas secas ao redor dos seus pés, e o canto dos pássaros ressoava entre os galhos das árvores. Ela fechou os olhos por um momento, permitindo que o vento morno a envolvesse.

— Otsu! Aí está você! — A voz animada de Sora a trouxe de volta. Sora era uma colega de classe com quem Otsu mal trocara palavras. Ao se aproximar, trazia um sorriso caloroso e um livro nas mãos. — Você esqueceu seu livro na sala de ciências. Por um instante, Otsu hesitou. Será que Sora queria mais do que apenas devolver o livro? Sua mente se permitiu imaginar que essa poderia ser uma tentativa de amizade, mas rapidamente afastou a ideia. Não valia a pena se apegar a uma esperança vazia.

— Obrigada — disse, esboçando um sorriso artificial.

Outras duas garotas esperavam por Sora alguns metros adiante. Ela acenou para elas com entusiasmo.

— Preciso ir! — gritou Sora para Otsu, ainda sorrindo. — Nos vemos amanhã!

Enquanto Sora corria para se juntar às amigas, Otsu ficou parada, com o livro pendurado em uma das mãos, observando-as se abraçarem e rirem juntas. Ela se perguntou como seria ter amigas com quem compartilhar momentos assim.

Otsu estava no último ano do ensino médio, e isso deveria ser um alívio, mas a realidade era diferente. Sempre que pensava sobre o futuro, sentia um aperto no peito. Enquanto os colegas planejavam suas faculdades e carreiras, ela seguia o caminho que sua família havia escolhido. Não era que desprezasse a tradição familiar, mas sentia que, em meio a isso tudo, havia perdido sua própria vida.

Crescer sob à sombra de seu irmão mais velho significava seguir uma rotina rígida de estudos e treinamento, mantendo a respeitável imagem da família Koyama. Raramente fazia amizade e, no início, ela não se importava muito com isso. Mas com o tempo, cansou de dar desculpas para não ir a festas de aniversário ou sair para tomar sorvete depois da escola. Decidiu, então, que seria mais fácil não se envolver com ninguém. Sua adolescência era atípica, mas ela se conformou com isso, até que seu irmão foi embora, deixando todas as responsabilidades sobre seus ombros.

Já fazia três meses que não tinha notícias dele. Seu irmão sempre fora seu pilar de apoio, mesmo depois de sair de casa para estudar medicina. Ele a incentivava a seguir seus sonhos e fazia com que ela acreditasse que o futuro poderia ser diferente. Nunca imaginou que ele simplesmente a deixaria, abandonando-a para carregar sozinha o peso das expectativas da família.

Otsu caminhava lentamente, sentindo um nó se formar na garganta. Estava desanimada, exausta. Às vezes, tinha vontade de fugir também, mas o medo a paralisava.

Seguiu em direção a casa, cada passo alimentando seu desânimo. As árvores floridas e o canto dos pássaros ficaram para trás, ofuscados por sua angústia. Ao parar em frente ao portão, seu peito parecia prestes a arrebentar.

Respirou fundo e entrou com passos firmes, ombros erguidos

— Bem-vinda, Srta. Otsu! — O jardineiro a saudou animado

— Boa noite. — respondeu sem parar de andar. “Não posso me distrair agora”, pensou.

— Oh! O que aconteceu? — perguntou ele, mas Otsu ignorou. Depois pediria desculpas.

Otsu subiu as escadas, mas ao invés de seguir para a entrada da casa, foi direto ao salão de treino. Irrompeu na plataforma de madeira polida com tanta força nos pés que pensou que poderia se partir sobre eles. Abriu a porta de correr com força. Seu pai estava no centro do salão, a espada pendendo no ar, congelado no meio de um movimento.

— Pai! — chamou, deixando a bolsa cair ao chão.

— Otsu, você está de volta — respondeu ele, sem demonstrar surpresa, mas seus olhos revelavam uma raiva contida.

Ela engoliu em seco, quase arrependida de estar ali. Sentia o peso dos olhares sobre si, mas sabia que não havia mais volta.

— Precisamos conversar. Sobre o meu futuro. — Sua voz era suave, mas firme.

— Agora não é o momento, Otsu. Estou no meio do treino. — Ele indicou os discípulos com um gesto de cabeça, que permaneciam imóveis, apenas os olhos indo de um para o outro.

Otsu ignorou a tensão no ar e despejou as palavras, quase era possível ver o caminho que elas percorreram até chegar aos ouvidos do pai.

— É exatamente sobre isso que precisamos falar. Eu não quero continuar com o treino!

Hiroshi fechou os olhos por um momento, tentando controlar sua raiva. Com um movimento de mão, dispensou os discípulos, que saíram rapidamente. Aproximou-se da filha em silêncio, o olhar fixo no dela. Otsu lutava contra o tremor em suas mãos. Finalmente, ele suspirou.

— Otsu, as tradições de nossa família... — Ele parou, os olhos brevemente desviando para o chão antes de continuar, como se estivesse reprimindo algo. — ...são importantes. Nossa técnica é um legado que você deve aceitar.

Por um segundo, Otsu achou ter visto algo diferente nos olhos de seu pai — uma hesitação, um lampejo de dúvida. Mas, assim como veio, a expressão sumiu, substituída pela velha rigidez.

— Eu respeito nossa tradição, mas meu coração deseja algo diferente. Eu quero estudar literatura, explorar o mundo, pai.

A tensão crescia, mas ela não recuou. Essa era sua verdade e estava disposta a enfrentar as consequências.

— Eu preciso viver minha própria vida, seguir meu caminho, como meu irmão fez! Estou cansada de ser definida por tradições que não me representam.

— Não fale de Yuri! — gritou Hiroshi, tomado pela raiva. — Ele só trouxe vergonha para esta família!

— Mas ele é seu filho, meu irmão! Você não pode simplesmente apaga-lo de nossas vidas! — Sentiu uma pontada de frustração pelo rumo que a conversa havia tomado, agora era seu momento. Mesmo assim, não poderia deixar de defender o irmão.

— Ele escolheu esse caminho e agora não faz mais parte dessa família.

— Existem coisas mais importantes do que essa tradição idiota! E eu vou provar isso, mesmo que eu tenha que sair desta casa agora!

— Você é teimosa e birrenta como sempre, justo quando penso que está amadurecendo, volta a agir como criança. — gritou Hiroshi, dando as costas para ela. — Se é isso que deseja, vá em frente.

Otsu agarrou a bolsa e correu para seu quarto, evitando cruzar com a mãe no caminho. Esvaziou a bolsa na cama, enfiando algumas roupas, o celular, um pouco de dinheiro e seu livro favorito. O rosto dela queimava de raiva e decepção.

Desceu as escadas com pressa, mas parou bruscamente ao ver sua mãe bloqueando a porta da frente. O olhar da mãe era triste, mas firme.

— Otsu... — A voz da mãe tremia, como se quisesse impedir a filha, mas já soubesse que era tarde demais. — Por favor, pense no que está fazendo.

— Não posso mais, mãe. — Otsu balançou a cabeça, sentindo as lágrimas voltarem a arder em seus olhos. — Não consigo respirar aqui.

Akiko baixou o olhar, mas não se moveu. Um silêncio pesado pairou entre as duas, até que, sem outra escolha, Otsu girou nos calcanhares e correu para a porta dos fundos. As palavras de sua mãe ainda ecoavam na sua mente enquanto ela fugia para a rua, sem olhar para trás.

Correu pelo que pareceu ser uma eternidade, até tropeçar e cair de joelhos no chão. A boca seca e o rosto molhado de lágrimas.

— Idiota! Idiota! Idiota! — gritou, enquanto seus punhos batiam repetidamente no chão frio e duro. O impacto fazia seus dedos latejarem, mas ela não parava. O mundo ao seu redor parecia se distanciar. A cada soco, o som abafado da pele contra a pedra ecoava nos seus ouvidos, misturado ao som dos pássaros se dispersando nas árvores próximas. Otsu sentia o gosto salgado das lágrimas descendo por seus lábios, enquanto sua respiração se descontrolava. Seu peito doía, como se estivesse prestes a explodir.

Quando finalmente parou, a dor em suas mãos era insuportável. Olhou para o céu – as estrelas começavam a surgir, calmas e indiferentes, enquanto ela tentava desesperadamente recuperar o fólego.

Após alguns minutos, levantou-se e seguiu vagando pela cidade. Sua casa ficava em um bairro mais tranquilo, mas logo alcançou as ruas agitadas do centro. Entrou em uma loja de conveniência e comprou curativos e uma lata de refrigerante.

Sentada em um banco próximo a um parquinho, improvisou curativos nas mãos e bebeu o refrigerante vagarosamente, observando o movimento da rua. Soltou um suspiro alto, chamando a atenção de um casal que passava. Eles apressaram o passo. “Devem achar que sou louca.”

— Ah... o que eu faço agora? Não tenho nem sequer uma amiga para me acolher. — Murmurou para si mesma, enquanto novas lágrimas ameaçavam cair. Ao erguer a mão para secá-las, notou o curativo mal feito. Que trabalho horrível eu fiz. Yuri ficaria decepcionado se visse.

Yuri.

Deixou a lata de refrigerante de lado e procurou o celular na bolsa. Rolou pela lista de contatos, tentando encontrar o número de seu irmão. “Argh! Não tenho o novo número dele!”

Mas precisava encontrá-lo. Ele era o único que a entenderia. Procurou por seus amigos nas redes sociais e mandou mensagens para todos que se lembrava de pelo menos já ter escutado o nome. Nem adiantava enviar direto para ele, pois sabia que já fazia meses que ele não se conectava. Perguntou se tiveram contato com Yuri nos últimos meses e se podiam ajudar a encontrá-lo. Mas os poucos que responderam alegavam não o ter visto há bastante tempo. Deixou o corpo cair sobre o banco, desanimada, pensando que o único jeito seria voltar para casa e admitir que estava errada.

Então, seu celular vibrou com uma notificação de mensagem. Otsu se ajeitou na mesma hora, abrindo novamente o aplicativo. Era um dos amigos que Yuri fez na faculdade, que dizia saber o seu endereço atual. Diro.

Depois de falar rapidamente com ele, anotou o endereço e correu para a estação de trem. Se fosse rápida, ainda conseguiria chegar até ele naquela noite.

O trem começou a se mover e, com ele, o coração de Otsu acelerou. Ela sentiu a ansiedade crescer dentro de si, misturada com uma vaga sensação de alívio. Mas não havia espaço para certezas. O que Yuri diria quando a visse?

O reflexo no vidro devolvia a imagem de uma garota cansada, com os olhos vermelhos de choro e o cabelo emaranhado. Ela apertou os punhos, sentindo as dores dos curativos mal feitos nas mãos. “Estou um desastre”, pensou. Será que Yuri ainda a entenderia, depois de tanto tempo? Enquanto as luzes da cidade passavam rapidamente do lado de fora, ela se perguntou se seu irmão mudara tanto quanto ela. E se ele a rejeitasse como o pai? Se nem ele pudesse salvá-la desta prisão que sua vida havia se tornado?



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