A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 1: Recomeço

"O passado nos persegue como uma sombra, mas é através da jornada para desvendá-lo que encontramos a luz que ilumina nosso futuro."

(O Legado Perdido, Haruki Tanaka)

 

11ª Lua Cheia do ano 1832

Lua do Fogo, dia 11

 

 

Gotas de água pairavam no ar, paralisadas por uma força invisível, cintilando à luz difusa. Uma espada, pesada e familiar, tremia nas mãos de alguém cujo rosto era ocultado pelo capuz. A figura parada à sua frente, envolta em sombras, tinha um sorriso despontando de seus lábios. Um sorriso perverso. A umidade densa do beco parecia viva, girando ao redor deles. O que era aquilo? Uma palavra – esquecida e distante – formava-se em sua mente, mas escapava antes que pudesse agarrá-la. Havia poder ali, um poder que fazia seu estômago revirar e seu coração bater em um ritmo desconhecido...

Antes que pudesse organizar os pensamentos, tudo escureceu.

Yuri despertou com um sobressalto, o coração disparado. O barulho do motor do táxi substituindo o som abafado do conflito. Ele esfregou o rosto, tentando afastar a sensação de que tinha perdido algo importante.

Era sempre assim: flashes de lugares e sensações que ele não conhecia, mas que pareciam assustadoramente reais. E, sempre, aquele mesmo sentimento de impotência.

O táxi deslizou em silêncio até a estação enquanto Yuri, aos poucos, se distraía com a paisagem através da janela. O céu, pintado de um tom escuro de cinza, parecia prestes a desabar sobre as pessoas que corriam apressadas de um lado para o outro. Yuri fechou os olhos e recostou a cabeça no banco, numa tentativa falha de afastar os pensamentos que pesavam em sua mente.

Quando o carro parou, ele abriu a porta devagar, movendo-se no modo automático.

— Precisa de ajuda com a mala? — perguntou o motorista gentilmente.

Yuri olhou para ele pela primeira vez e balançou a cabeça, ainda atordoado.

— Ah... não, tá tudo bem. Obrigado. — Tentou forçar um sorriso.

Arrastou-se para fora do carro puxando a mala. O vento soprava tão forte que quase o empurrava para trás. Folhas secas dançavam no ar, anunciando uma tempestade, mas algo parecia estranhamente tranquilo, quase como se o tempo tivesse parado, como as gotas de água no sonho que ele já começava a esquecer.

Chegou à plataforma no exato momento em que o trem parou e seguiu para as portas que se abriam. De repente, seus pés pareceram feitos de chumbo. A angústia percorreu seu corpo e enlaçou-se em seu coração como uma serpente. Um único passo bastaria para mudar completamente sua vida.

O som agudo do apito anunciou o fechamento das portas. Yuri piscou, voltando à realidade, e deu um passo adiante. Entrando no trem, colocou a mala na prateleira acima e sentou-se, fechando os olhos. Enquanto as luzes piscavam por trás de suas pálpebras e o trem chacoalhava nos trilhos, acabou caindo no sono novamente.

Acordou algumas horas depois, com a testa úmida de suor e a boca seca. Olhou em volta; o vagão, agora quase vazio, abrigava apenas alguns passageiros silenciosos, suas silhuetas desenhadas contra a escuridão que se deslocava através das janelas. Tentou esticar as costas, mas o assento duro fazia cada fibra do seu corpo protestar. A tempestade finalmente havia começado enquanto ele dormia. As gotas de chuva deslizavam pela janela, e o trem se movia devagar, lutando contra o vento.

Ele soltou um suspiro. Não tinha pressa, mas sentia-se estranho ali, deslocado. Às vezes, seu corpo parecia agir por conta própria,  arrastava-se dia após dia, como se estivesse atravessando uma névoa densa que o deixava constantemente cansado e inquieto.

Olhou para as próprias mãos, que descansavam inutilmente em seu colo. Elas estavam vazias agora, mas, em sua mente podiam ainda sentir o peso do bisturi... e o peso do fracasso.

As mãos são motivo de orgulho para um médico, mas tudo que Yuri conseguia ver agora quando olhava para as suas eram as manchas de sangue da pessoa que não conseguiu salvar.

Ele cerrou os punhos desviando o olhar, tentando se focar nas luzes que passavam rapidamente pela janela. Akimitsu já parecia distante, e mesmo assim o passado continuava a persegui-lo.

Não fazia ideia de como seria dali em diante, mas sabia que não suportava passar mais um dia sequer naquele lugar.

Itakawa era uma pequena cidade a oito horas de viagem de Akimitsu, onde Yuri crescera. Após uma breve pesquisa na internet, encontrou um apartamento que prometia ser aconchegante, embora duvidasse disso pelo preço baixo e pelas fotos do anúncio. Não era perfeito, mas era o melhor que conseguira encontrar.

Ao descer na estação, o relógio marcava pouco mais da meia-noite, e Itakawa parecia suspensa no tempo. As ruas desertas e o vento gélido davam à cidade uma atmosfera fantasmagórica, como se ele estivesse entrando em um lugar esquecido pelo mundo. A luz fraca dos postes lançava sombras que se esticavam até os becos, como mãos tentando agarrá-lo. Ele estremeceu. Não sabia se era a exaustão ou a cidade que o fazia sentir-se tão fora de lugar.

Apesar da hora tardia, ele caminhou devagar pelas ruas estreitas, conferindo no mapa o endereço do apartamento até chegar a um pequeno prédio com aspecto abandonado.

Yuri tirou um pedaço de papel amassado do bolso da calça jeans e conferiu o endereço rabiscado às pressas. Estava correto. Buscou as chaves no outro bolso, girou o trinco e empurrou a porta que dava para uma escada. Subiu, concentrando-se para enxergar sob a luz amarelada que piscava, até chegar a um corredor igualmente mal iluminado. Avançou até o fim do corredor e abriu a porta do apartamento, soltando um suspiro desanimado. Era ainda menor do que esperava, um único cômodo que abrigava uma minicozinha e, do outro lado, o “quarto”. Havia também um banheiro, se é que podia ser chamado assim, mas serviria.

A luz da rua entrava pela janela, banhando os móveis com um brilho pálido. Seus olhos percorreram o ambiente desconhecido até pousarem na cama posicionada no canto. A colcha surrada e o colchão fino pareciam convidá-lo a um descanso que ele não sabia se merecia.

Subitamente, a exaustão o atingiu como uma onda implacável, o deixando tonto e impotente. Seu corpo, frágil e cansado, cedeu, ele se deixou cair no chão, abraçando os joelhos como se segurasse as peças quebradas de si mesmo. O peso do passado esmagava seu peito, sufocando cada respiração. A cada lágrima, parecia que uma nova fissura se abria dentro dele, até que, finalmente, não restou mais nada.

O silêncio que veio depois não foi de alívio, mas de vazio.

Exausto, ele adormeceu.

 

***

 

Yuri despertou com um toque familiar e sentou-se na cama, lutando contra o sono. Os raios solares invadiam o quarto, espalhando um brilho suave que iluminava o ambiente. Esticou o corpo e procurou pelo celular no chão. Assim que o segurou, o toque cessou. A barra de notificações indicava seis chamadas perdidas e duas mensagens de Diro, um amigo da faculdade. Precisava encontrá-lo às oito horas para discutir sobre a vaga de emprego no café que Diro estava prestes a abrir. Antes de ler as mensagens, verificou a hora: ainda eram sete e treze, não estava atrasado. Abriu a conversa.

“Bom dia, Yuri. Preciso resolver algumas questões urgentes hoje. Podemos remarcar para 07:30?”

“Está tudo bem para você? Tentei te ligar. Bem... Se ainda estiver interessado na vaga, vou esperar por você às 07:30.”

Digitando uma resposta, Yuri saltou apressado da cama. “Sem problemas, estarei lá neste horário.”

— Droga... — murmurou enquanto se apressava em direção ao banheiro.

Ao se aproximar do espelho, encarou sua própria imagem, e o reflexo que o encarava parecia uma versão distante de quem costumava ser. O rosto estava pálido, os olhos fundos, com olheiras profundas marcando as noites mal dormidas. O cabelo preto e desalinhado estava mais longo que o habitual, cobrindo parte de sua testa. Uma expressão cansada o encarava de volta, e ele desviou o olhar rapidamente, sem querer admitir o que via. Lavou o rosto com água fria, numa tentativa de afastar o torpor.

Enquanto a água escorria pelo seu rosto, sentiu uma sensação estranha, como se estivesse sendo observado. Olhou ao redor rapidamente, mas não havia nada. Apenas o pequeno banheiro vazio. Ele respirou fundo, procurando controlar a crescente sensação de desconforto que sempre surgia nos momentos mais inesperados.

Saiu do apartamento, trancando a porta, e seguiu pelas ruas de Itakawa em direção ao café onde encontraria Diro. Enquanto caminhava, uma chuva leve começou a cair. As casas, com seus jardins impecáveis, e as pessoas que passavam com sorrisos acolhedores, pareciam formar um cenário quase perfeito. Mas havia algo estranho para Yuri, uma desconexão incômoda, como se ele estivesse apenas observando de fora uma realidade da qual nunca faria parte.

Chegou ao café às sete e vinte e oito, grato por ter alugado um apartamento apenas duas ruas dali. A fachada destacava-se exibindo o elegante letreiro “Kokoro Café” em letras grandes e delicadas. Através das portas de vidro, Yuri vislumbrou a decoração que combinava preto e amarelo pastel.

Diro estava parado à porta, seu rosto iluminado por um sorriso caloroso. Haviam frequentado a mesma faculdade, embora Yuri estudasse medicina e Diro administração, os dois se tornaram bons amigos. Não se falavam há alguns meses. “É bom ver um rosto familiar”, pensou Yuri.

Sentaram em uma mesa ao fundo do café, imersos em uma atmosfera aconchegante. Diro contou empolgado seus planos para o estabelecimento e mencionou a vaga disponível perguntando novamente se Yuri estava interessado.

Yuri considerou a oferta por um momento. Trabalhar em um café podia não ser o que havia planejado para sua carreira, mas talvez fosse uma oportunidade de se reconectar com as pessoas. Talvez pudesse encontrar algum conforto em ajudar os outros, mesmo que de uma maneira mais simples. Finalmente, concordou, provocando uma gargalhada em Diro.

— Sei que não é seu emprego dos sonhos, mas podia pelo menos disfarçar, né? — brincou Diro, ainda rindo. Yuri forçou um sorriso.

— Não é isso. Eu só... — hesitou. Como explicar que não se tratava do emprego, mas do fato de ele não se reconhecer mais?

— Tudo bem cara — disse Diro, dando um tapinha reconfortante no ombro de Yuri. — Tenho certeza que tudo acontece como deve acontecer. — Diro disse com um sorriso, mas havia um peso subjacente naquelas palavras, algo que fez Yuri se perguntar se o amigo o entendia mais sobre ele do que deixava transparecer. Ele sabia que Diro sempre fora otimista, mas agora, suas palavras parecia carregar uma verdade oculta, como se sugerisse que Yuri estava fugindo de algo maior.

Yuri não tinha certeza se acreditava em destinos ou em significados ocultos por trás das escolhas aparentemente aleatórias da vida, mas, naquele momento, preferiu não discordar. Ao invés disso, aceitou o café que Diro serviu e se recostou na cadeira, observando a rua através das portas de vidro. O movimento suave das pessoas passando pela calçada, os guarda-chuvas se abrindo contra a chuva, os pequenos grupos conversando animadamente enquanto seguiam para o trabalho... Tudo parecia se encaixar perfeitamente. Essa paz aparente do lugar o incomodava de uma maneira inexplicável.

— Você vai gostar daqui, Yuri — disse Diro, trazendo-o de volta de seus pensamentos. — Os clientes são amigáveis, e você logo vai se sentir em casa.

Yuri assentiu novamente, ainda perdido em pensamentos. Ele não tinha todas as respostas, e o futuro ainda era um grande ponto de interrogação, será que tudo ficaria bem? Talvez esse fosse o primeiro passo para construir uma vida diferente, uma vida em que ele pudesse respirar sem sentir o peso constante da culpa.

Passaram mais alguns minutos discutindo os detalhes do trabalho, as responsabilidades que Yuri teria e os horários do café, e Yuri percebeu que o nó em seu estômago estava, aos poucos, se desfazendo.

— Vamos começar amanhã, então? — sugeriu Diro, ao se levantarem para sair.

— Sim, amanhã está ótimo — respondeu Yuri, sentindo uma sensação estranha de expectativa.

Ao saírem do café, o sol havia finalmente rompido as nuvens, banhando Itakawa em uma luz suave e dourada. A chuva tinha parado, deixando para trás um ar fresco e limpo.

De volta ao apartamento, enquanto trancava a porta, uma estranha quietude caiu sobre o lugar. Havia algo diferente ali, uma sensação de que o ambiente o observava de volta. Yuri sentiu o familiar peso no peito, mas pela primeira vez em muito tempo, essa sombra que pairava sobre ele parecia... suportável. Como se, de alguma forma, estivesse aprendendo a conviver com ela, mesmo sem entendê-la por completo.

O futuro ainda estava por ser escrito, mas algo dentro dele sussurrava que, independentemente do que ele desejasse, as sombras do passado continuariam a prossegui-lo. Talvez tivesse todo o tempo do mundo para encontrar o que realmente queria.

Ou talvez não.

 



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