Volume 1
Capítulo 20: Carma
“Ser humano é andar sobre uma linha tênue, sempre tentando manter o equilíbrio entre o que queremos ser e o que o mundo exige de nós.”
(Sombras da Virtude, Eldan Marius)
6ª Lua do ano 1647
Lua do Nevoeiro, dia 04
O carma realmente existe? Mesmo Yuri, que nunca foi de acreditar nessas coisas, começava a se questionar se tudo o que vinha acontecendo não teria uma explicação além do simples acaso. Afinal, para alguém que atravessa as espessas camadas do tempo, tudo parece possível. Então, culpar o carma era conveniente, embora a ideia lhe provocasse um arrepio involuntário.
A decisão estava tomada: partiriam para Ryokume em aproximadamente dois meses, no início da primavera. Coincidiria com a Lua da Luz, quando Shin completaria seus vinte e sete anos. Depois disso, ele teria apenas mais 16 ciclos lunares para reconquistar o trono.
Kenji vinha se tornando uma presença constante ao lado de Shin. Onde quer que o herdeiro fosse, estava logo atrás, atento, sempre pronto para aconselhar ou agir. Essa proximidade repentina deixava Yuri inquieto, embora Shin aparentasse saber exatamente o que estava fazendo.
A medida em que a neve derretia, o dia da partida se aproximava. A preparação para a jornada era inevitável, mas havia, pelo menos uma vantagem em tudo isso: Yuri adquirira certa experiência ao planejar a viagem e participar das reuniões da aliança. A confiança em seu cargo crescia, mas mesmo assim, ele sentia a necessidade de distrair a mente de tantos problemas.
Enquanto Shin mantinha o foco na recuperação da espada lendária do clã Ito, Yuri começava a ser consumido por pensamentos mais íntimos. A lembrança da família que deixara para trás tornava-se uma sombra persistente. Sua irmã, o trabalho que abandonou sem aviso...
A dúvida o atormentava. Ele realmente merecia as conquistas que estava obtendo? Em muitos momentos, sentia-se um intruso no meio de tantos acontecimentos.
“Não tem jeito”, pensou, esfregando a testa com cansaço. “Já estou envolvido nisso.”
O chá era outra coisa da qual ele ansiava escapar. A cada reunião, lá estava ele, segurando uma xícara. A tradição, sagrada para os Ishikawa, oferecia um momento de paz em meio às tensões da guerra, mas para Yuri, aquele chá que antes lhe parecia reconfortante agora o enjoava. O fato de parecer estar sempre com uma xícara nas mãos nas últimas semanas não ajudava. Prometeu a si mesmo que, quando retornasse à sua época, jogaria todas as folhas de chá no lixo. Só de pensar nisso, seu estômago se revirava um pouco menos.
No dia da partida, enquanto Ayatsuri acordava, brilhando sob a luz matinal do início da primavera, o grupo seguiu para a saída da cidade. Montando grandes cabras emprestadas pelo Senhor Hideo, que os acompanhou até o portão com um sorriso animado, ao mesmo tempo que as pessoas se amontoavam nas ruas. As crianças corriam ao redor deles, rindo e acenando alegremente.
Yuri agora vestia uma armadura formal adequada a seu novo cargo. Isso o deixava desconfortável, embora a vestimenta fosse desenhada para permitir mobilidade na viagem.
Seguia ao lado de Shin, que mantinha uma pose elegante, mesmo com suas roupas discretas, com Akemi, Haruka, Ryota e Hikari em seu encalço.
Yuri observava Shin de canto de olho pensando se deveria parabenizá-lo, já que era o aniversário dele, e finalmente, Kenji parecia ter desgrudado dele, mas ao se voltar para ele desistiu de qualquer palavra que estivesse prestes a sair.
Por trás do sorriso que Shin oferecia às pessoas, havia uma tristeza tão profunda que fez o peito de Yuri apertar e ele precisou engolir o nó que se formou na garganta e procurar qualquer outra coisa que pudesse prender sua atenção. Por sorte, a essa altura, já haviam alcançado os portões e Hideo pronunciou acima do murmúrio da cidade:
— Que Tsuchi guie seus passos.
— E que Izanora nos proteja na escuridão da noite — completou Shin.
Embora herdeiro do clã Ito, Yuri quase nunca o ouvira falar sobre Kaenjin. Talvez esse fosse o motivo de sua dificuldade em se conectar com a magia do fogo. Parecia que o próprio Shin ainda não havia aceitado totalmente seu destino.
Ao saírem da cidade, Kenji tomou o lugar de Yuri ao lado de Shin, que não conseguiu evitar um revirar de olhos, mas ficou aliviado por seguir na retaguarda com Akemi. Se permanecesse ali, tinha medo de acabar perguntando algo que chateasse Shin. Parecia ser uma mania sua, sempre escolher as palavras erradas e se arrepender quando já fosse tarde demais.
A viagem seguiu tranquila até o Abismo Hebi, onde mais uma vez atravessaram a torre móvel.
O grupo seguia o caminho sinuoso através das montanhas, uma névoa fina se espalhava acima deles, quando Shin parou subitamente, os olhos fixos na trilha.
Akemi posicionou as mãos nas bainhas de suas espadas gêmeas e sem notar, Yuri imitou o movimento. Enquanto a cabra seguia num ritmo lento, balançando-o de um lado para o outro, podia sentir seus músculos se retesarem contra o ar pesado ao redor.
A névoa parecia dançar ao seu redor, mas não revelou nada de imediato.
— É uma emboscada — murmurou Kenji, firmando sua lança no chão. Quase era possível ver a magia irradiando da ponta. O chão tremeu levemente, em resposta.
O silvo de flechas cortou o ar. Em um instante, o reflexo das chamas de Shin iluminou a névoa, transformando os projéteis em cinzas antes que tocassem o chão.
Yuri o encarou surpreso. Shin sempre evitava ao máximo usar a magia do fogo, mas naquele momento não havia dúvida nos olhos dele, somente fúria.
— Eles vieram preparados — disse Shin, sacando a espada e se preparando para o combate sob o dorso do grande animal que montava.
Silhuetas emergiram da névoa, sombrias e rápidas, carregando espadas curtas e lanças. Um grupo de ladrões da montanha. Alguns gritavam, tentando assustá-los enquanto outros tentavam atacar diretamente.
Quando se aproximaram, Yuri avançou, sua espada retiniu ao ser retirada da bainha, cortando o ar.
Ele o desarmou com um golpe certeiro no punho, seguindo por um chute no peito que lançou o homem para trás, rolando pela trilha. Dois outros vieram em sua direção, mas Yuri já estava em movimento, desferindo um golpe rápido que cortou o braço de um oponente pela metade, para em seguida atingir o outro com uma sequência de golpes com o cabo da espada.
— Em formação! — gritou Kenji para seus homens, que rapidamente fincaram suas lanças no solo. A magia da terra reverberou, e pilares de pedra subiram do chão, criando uma barreira protetora ao redor do grupo.
Shin, reuniu sombras em suas mãos e com um movimento circular, liberou espinhos negros contra os ladrões que vinham pela retaguarda. Um deles conseguiu escapar do ataque e avançou, mas antes que pudesse atacar, foi envolto pelas sombras conjuradas por Ryota, que o prendeu com força no chão, esmagando-o violentamente.
— Não baixe a guarda, Shin! — gritou Haruka, enquanto envolvia suas lâminas curtas com magia da sombra, dançando entre os inimigos e cortando sem nenhuma hesitação.
Ryota era um espetáculo à parte. Seus ataques eram rápidos e fatais, mal era possível ver o movimento das enormes garras de sombras até que fosse tarde demais. Diferente dos outros, ele não usava nenhum tipo de arma convencional, seus ataques eram somente focados na magia da sombra, que destruía indiscriminadamente. Quem o observasse, diria que ele era a própria sombra.
Os ladrões restantes tentaram uma última investida desesperada. Yuri, agora ao lado de Kenji, trocou um olhar com ele e compreendeu o que precisava fazer. Posicionou-se, enquanto Kenji erguia sua lança e lançava-a a frente. Quando a lança de Kenji golpeou o chão, uma onda de choque percorreu o solo, desestabilizando os inimigos. Yuri aproveitou a oportunidade para cortar o líder, desarmando-o com um golpe limpo e preciso.
Em poucos minutos, o campo estava silencioso novamente. Os que não haviam fugido estavam caídos, mortos ou inconscientes. A névoa, como se tivesse cumprido seu propósito, começou a se dissipar, revelando o grupo ainda de pé, respirando pesadamente, mas ileso.
Yuri varreu o campo de batalha com os olhos, aliviado ao constatar que todos estavam bem. Mas então, um movimento brusco interrompeu sua breve sensação de alívio.
Do meio dos corpos caídos, o homem que ele havia enfrentado antes, ergueu-se, trôpego. Seu braço direito estava reduzido a um coto ensanguentado, o tecido da roupa encharcado de vermelho. Mesmo assim, em sua mão esquerda, ele ainda empunhava uma espada curta, e a fúria em seu olhar queimava com uma intensidade feroz.
O mundo ao redor de Yuri desacelerou.
Ele viu o homem avançar em direção a Shin, movido pelo ódio e desespero. Sem pensar, sem hesitar, o corpo de Yuri reagiu por instinto. Num segundo, ele já estava diante do agressor, sua espada deslizando pelo ar.
Yuri cambaleou para trás, o sangue quente escorreu por sua mão antes que percebesse que a espada ainda estava cravada no homem.
Um segundo.
Dois segundos.
Foi só quando ele caiu, sem vida, que o mundo voltou a girar.
O homem desabou aos pés de Shin, seu corpo pesado e inerte, enquanto a espada de Yuri permanecia cravada como uma testemunha silenciosa de sua culpa. Shin se virou lentamente, seus olhos encontrando os de Yuri, mas nada precisava ser dito.
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