Volume 1
Capítulo 19: Destino
"Os elementos da natureza falam uma língua antiga, e aqueles que os compreendem têm nas mãos o poder de moldar o mundo e o destino das nações."
(Essência e Elemento, Thalian Rylkar)
5ª Lua Cheia do ano 1647
Lua da Sombra, dia 29
Uma melodia suave espalhava-se por entre as árvores enquanto Shin caminhava em direção aos limites de Ayatsuri, onde atualmente mantinha sua rotina de treino matinal. A cidade estava silenciosa, com as ruas gradualmente se esvaziando conforme o frio apertava. A neve agora caía com força, cobrindo o solo com uma espessa camada branca que cegava qualquer olhar desatento.
A canção crescia a cada passo, guiando Shin por um caminho oculto entre as rochas da montanha. Ao cruzar a fenda, encontrou uma clareira onde árvores de folhas multicoloridas formavam um círculo vivo. Era uma visão tão surreal que o fez hesitar por um instante.
Sentado à sombra de uma dessas árvores, estava Kenji. Tocava seu shamisen com uma calma que destoava da intensidade da melodia. Uma música antiga, profunda, que parecia ecoar pelas montanhas até os alicerces da própria terra. Shin já o ouvira tocar antes, sempre músicas vibrantes, mas aquela era diferente: uma harmonia que invocava uma sensação de vazio, perda e, paradoxalmente, de paz. Era bela e aterrorizante ao mesmo tempo.
Quando Shin percebeu, já estava próximo o suficiente para ver as lágrimas deslizarem pelas bochechas de Kenji. Apesar disso, suas mãos continuavam a conduzir a melodia com uma maestria imperturbável, como se tivessem sido forjadas apenas para esse propósito. Um arrepio percorreu o corpo de Shin, a música atravessando-o como um vento gélido, reavivando memórias enterradas há muito tempo.
Quando a música enfim cessou, Shin continuou paralisado. “O que foi isso?” pensou. Sem ousar se mover, observou Kenji guardar o shamisen e sacar uma pequena bolsa de tecido, repousada sobre as antigas raízes da árvore. O músico derramou pequenas sementes na palma da mão, contou quatro e caminhou com reverência até uma área descampada.
— Grandiosa Tsuchi, hoje seus filhos retornam para casa. Da terra viemos, à terra retornaremos. — Ele plantou as sementes, com o cuidado de quem embala um recém-nascido. O gesto, simples e cerimonial, fez Shin sentir-se como um intruso. Quando decidiu se retirar, Kenji levantou a cabeça e olhou diretamente para ele.
— Perdão... eu já estava de saída — murmurou Shin, dando um passo atrás.
— Não se preocupe, meu príncipe. Você não estaria aqui se não fosse pela vontade de Tsuchi. — Kenji sorriu, ainda com lágrimas no rosto, deixando Shin desconcertado.
Kenji retornou à sombra da árvore, enxugando disfarçadamente o rosto na manga de sua túnica.
— Que lugar é esse? — perguntou Shin, finalmente.
— A Floresta das Almas. — Kenji lançou um olhar distante, enquanto Shin observava ao redor. — O lugar sagrado onde o povo das montanhas descansa após a morte. Para cada um que parte, plantamos uma nova semente.
— Uma nova vida para cada uma que se perde... — murmurou Shin. Conhecia histórias sobre a Floresta das Almas, mas o que havia imaginado nem chegava aos pés da beleza daquele lugar. Parecia irreal.
Kenji agora estava ao seu lado, observando as cores das árvores se misturarem enquanto a neve caía suavemente sobre elas, derretendo ao tocar o solo. Era como se o frio não tivesse permissão para penetrar tal lugar sagrado.
— Deveria vê-la na primavera. — Kenji sorriu, vendo a admiração de Shin. — O sol reflete as cores por todos os lados, e os pássaros cantam para abençoar as almas. Mas... o que o trouxe até aqui?
— Fui atraído pela música. Peço perdão pela intromissão.
— Não precisa se desculpar. Como já disse, está aqui porque Tsuchi assim quis. — Kenji gesticulou para que Shin se sentasse com ele. — Tsuchi conhece cada alma que caminha sobre a terra. Ela sempre guia nossos passos para onde devemos estar. Você estar aqui, assim como a aliança entre nossos clãs, não é por acaso. Nada acontece sem motivo. — Ele fez uma pausa, enquanto desdobrava um lenço e começava e limpar as mãos. — Da mesma forma que não podemos conter o fluxo de um rio, não podemos resistir à correnteza que nos leva ao nosso destino. Tudo está conectado.
Aquelas palavras penetraram profundamente dentro de Shin, trazendo à tona lembranças de toda a sua vida. "Será que tudo realmente deveria ter acontecido como aconteceu?", refletiu. Se pudesse mudar algo, o faria sem hesitar. E agora, ele tinha esse poder. Conhecera alguém que podia atravessar o tempo, alguém que sabia do futuro. Mesmo que desconfiasse de Yuri, Izanora dissera para confiar nele. Shin precisava torná-lo uma ferramenta útil para seus planos. Ele tinha a chave em mãos, bastava decidir usá-la.
Mas, por ora, havia outro assunto a tratar. Kenji, o filho do líder Ishikawa e herdeiro de uma arma lendária, estava ali ao seu lado. Muitos o viam como imaturo, mas Shin agora o enxergava de forma diferente.
— Então, como você disse, nossos caminhos se cruzaram pela vontade de Tsuchi, nobre Kenji. — A resposta fez o rosto de Kenji brilhar.
— Que bom que se cruzaram numa boa hora, então — sorriu. — Meu pai conduzirá a cerimônia do chá esta tarde. Nos daria a honra de sua presença?
— A honra será toda minha. Ouvi dizer que o chá das montanhas tem um sabor inigualável, e quem o bebe é abençoado por toda a vida.
— Sem dúvida — Kenji finalmente sorriu de verdade. Aquela era a face que ele comumente usava. Era intrigante como ele parecia mudar conforme sua vontade, como se tirasse sua máscara somente para quem desejava que visse sua verdadeira forma. Talvez ele pudesse, um dia, tornar-se um verdadeiro líder. “Será que um dia ele almejou ter nascido antes de sua irmã?”, Shin se perguntou. Mas dispensou o pensamento logo em seguida, ele parecia ser completamente leal a ela. — Tem algum compromisso agora, senhor Shin? Talvez eu possa lhe mostrar um pouco mais de Ayatsuri. Duvido que Kiku tenha mostrado tudo.
Apesar de perder um treino, que não vinha rendendo resultados, Shin decidiu que a troca poderia valer a pena.
— Tenho algumas horas livres, Kenji. Será um prazer acompanhá-lo.
***
Quando se é alguém como Yuri, certas coisas tendem a se repetir. Em menos de 12 horas, ele havia passado de emissário a ministro nas mãos de Shin, e estava plenamente ciente de que não podia esperar as coisas piorarem para descobrir o que isso realmente significava. Nos últimos quatro dias, ele havia abraçado seu novo cargo com seriedade, tentando se preparar para as pressões que viriam.
E, claro, lá estava ele novamente em uma biblioteca.
Para sua sorte, a biblioteca de Ayatsuri era a maior do país, abrigando uma diversidade inacreditável de registros e estudos acumulados ao longo de gerações. Era uma benção estar em uma cidade tão bem protegida por suas muralhas. As terras do clã Ishikawa haviam sido relativamente poupadas dos impactos da guerra, e isso permitia que preservassem um acervo tão vasto.
Ele estava cercado por pilhas de livros e pergaminhos em uma das salas privativas da biblioteca – um dos privilégios de seu novo cargo. A sala, iluminada por lanternas penduradas ao longo das paredes, mal deixava transparecer que era dia lá fora. O Acervo, era uma construção monumental que havia sido esculpida diretamente na rocha da montanha, elevando-se sobre toda Ayatsuri. Era um labirinto de centenas de andares e salas de pesquisa, com acesso permitido apenas a poucos privilegiados. Nenhum documento podia sair de seus portões.
Yuri tinha informações sobre os acontecimentos futuros e certa experiência de batalha, mas isso não o tranquilizava. Ele sentia o peso de sua ignorância estratégica. A pilha de livros diante dele parecia um abismo que precisava atravessar sem qualquer ponte. Sua mente vagava até Akemi; pedir ajuda parecia lógico, mas algo nele hesitava. Era orgulho? Ou medo de mostrar fraqueza diante de alguém tão impecável? Seu estômago se revirava com a simples ideia de enfrentar aquela reunião despreparado — ou pior, depender dela.
Além disso, havia outra coisa que o preocupava: Shin só poderia reconquistar o trono se dominasse completamente a magia do fogo. E Yuri, sabendo disso, sentia que poderia ser mais útil. Ele precisaria compreender como a magia se conectava ao mundo espiritual e, principalmente, como canalizar corretamente essa energia. A magia do fogo era o oposto absoluto da magia da sombra, e essa dicotomia o fascinava profundamente.
As horas passaram rápido enquanto ele mergulhava nas leituras, ignorando o crescente protesto de seu estômago. Queria absorver o máximo de conhecimento enquanto estivesse em Ayatsuri. E foi justamente por estar tão imerso que se assustou quando um dos funcionários da biblioteca o interrompeu.
— Senhor Ministro. — A voz o trouxe de volta à realidade.
Yuri precisou de alguns segundos para se recompor.
— Sim? — respondeu, tentando esconder a surpresa.
— A general Akemi está aqui para vê-lo.
O nome fez um arrepio percorrer sua espinha. Ele endireitou a postura, tentando parecer mais confiante do que realmente estava.
— Deixe-a entrar.
O funcionário, um jovem de cabeça raspada, fez um sinal de assentimento antes de se retirar. Logo, Akemi estava na sala, curvando-se levemente em saudação.
— Yuri — ela começou, com a voz firme. — O príncipe Shin soube que você passou os últimos dias aqui e solicitou que você faça uma pesquisa para ele.
Yuri piscou, confuso. Pesquisar algo? Ele mal sabia o que responder.
— Ele está procurando uma espada antiga do clã Ito, perdida após o golpe. Acredita que a espada esteja em Ryokume, já que ninguém visita aquele lugar há décadas.
— E ele acredita que eu possa encontrar algo aqui?
— Provavelmente — respondeu Akemi, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Yuri não tinha certeza de que aquilo fosse uma boa ideia, mas se pôs a trabalhar com diligência. Horas depois, foi Akemi quem encontrou a pista de que precisavam.
— Aqui! — exclamou, a voz levemente animada. — Espada Resplandecente. Somente aqueles que dominam plenamente habilidades do clã conseguem empunhá-la. Esta arma lendária está intrinsecamente ligada à linhagem real, conferindo status de poder e liderança. — Ela fez uma pausa, observando Yuri.
— Apenas quem domina completamente as habilidades do clã pode usá-la? Isso pode ser um problema — refletiu Yuri.
— O ponto mais importante não é esse — continuou ela. — Aqui diz que a espada provavelmente nunca deixou a antiga capital imperial. O que significa que ela ainda está em Ryokume. E... há relatos de que a cidade é guardada por um dragão.
Yuri franziu o cenho, já havia imaginado onde aquela conversa iria parar.
— Um dragão?
— Sim. E, segundo os relatos, somente um membro legítimo do clã Ito poderia entrar na cidade. Shin acredita que o dragão seja o próprio Kaenjin.
Yuri suspirou, cansado.
— Ele já sabia sobre isso, não é? — murmurou.
— Sabia. — O sorriso leve de Akemi revelava que ela compreendia sua frustração, mas ainda assim se divertia com a situação. E seu olhar sugeria algo mais.
— Então, se Kaenjin não vai até ele...
— Shin planeja ir até o dragão pessoalmente — completou Akemi, inclinando-se levemente para frente, como se desafiasse Yuri a reagir. Ele suspirou, passando a mão pelos cabelos.
— E eu vou com ele, não é?
— Exatamente — respondeu ela, com um sorriso nos lábios e Yuri desviou o olhar, incomodado com o efeito que aquele sorriso lhe causava.
Quando Akemi deixou a biblioteca, a única coisa que pôde fazer foi pressionar sua testa com força contra a madeira da mesa, desejando silenciosamente, estrangular Shin.