Volume 1
Capítulo 21: Apenas Olhe as Estrelas
"O peso da dor não diminui com o tempo, apenas se torna parte de quem somos."
(A Última Promessa, Haruto Shimizu)
8ª Lua Cheia do ano 1647
Lua da Luz, dia 02
— Eu... o matei... — A forma como Yuri pronunciou essas palavras, provocou um calafrio em Akemi. Ela observava de uma certa distância, ele sentado numa rocha, ainda assim, a voz dele ecoou montanha abaixo, como alguém cansado que enfim decide se jogar de um precipício. Era exatamente esse peso que emanava dele. Os olhos não tinham nenhum brilho enquanto ele encarava algo inexistente a sua frente.
Akemi conhecia aquela sensação melhor do que gostaria. A primeira vez que tirou uma vida. Não havia orgulho, não havia nada. Apenas o vazio que a consumia lentamente, como se sua alma estivesse rachada. Vendo Yuri agora, ela sentia uma empatia dolorosa. Uma vida. Um bem tão precioso que podia ser tirado com um simples movimento da espada. O que vinha após isso era uma queda livre num abismo sem fim. Ela sabia que, Yuri não havia apenas tirado uma vida, mas também perdera algo essencial dentro de si. Como uma rachadura que crescia em uma peça já fragilizada, dessa vez parecia impossível consertar.
O silêncio, levado pelo vento, pesava sobre o grupo. Todos aguardavam, em compreensão muda. Talvez Akemi devesse dizer algo? Não sabia nem por onde começar.
Shin se aproximou de Yuri com cuidado. Seus passos, como sempre eram silenciosos. Yuri estremeceu quando Shin tocou o ombro dele. Como se tivesse levado um choque. Mas não se moveu.
— Yuri... — Shin falou, sentando-se devagar ao lado dele. — Sinto muito pelo que teve que fazer. Mas... Também quero agradecer. Se não fosse por você, talvez eu é que estivesse morto agora.
— Isso não tira a minha culpa... Não tira essa... sensação... — Yuri olhou nos olhos de Shin pela primeira vez. — Como isso pode ser considerado um ato heroico ou... Qualquer outra coisa boa? Meu coração... Está apertado... Parece diminuir a cada segundo.
— E daí? Sabe... Odeio gente que fica se lamentando.... — Shin balançou a cabeça, olhando fixamente para os próprios pés antes de prosseguir. — É difícil definir algo que possui um peso tão grande, Yuri. Mas, às vezes a linha entre o certo e o errado é muito tênue. Como saber se o lado em que estamos é o certo? Independentemente do que escolhemos, sempre haverá inocentes.... O que define nossas ações, é nosso caráter. — Shin suspirou, e por um momento, Akemi pensou ter visto suas mãos tremerem. — Se o que fez seus pés se moverem naquele momento foi o impulso de salvar alguém, então é isso que você deve considerar. Embora, eu acredite não merecer, você me salvou.
Yuri permaneceu em silêncio, as palavras de Shin ainda pairando no ar. Akemi sabia que, por mais que ele tentasse, nunca conseguiria justificar plenamente o que havia feito. No entanto, a presença de Shin ao seu lado, parecia criar uma faísca, uma pequena luz em meio ao abismo.
Akemi soltou um suspiro pesado. Aquilo não seria resolvido de imediato. Mas eles não tinham o luxo de esperar que as feridas cicatrizassem. Não naquele momento.
Shin foi o primeiro a se levantar, estendendo a mão para Yuri.
— Não há muito o que possamos fazer agora, além de continuar — disse com um tom baixo.
Yuri olhou para a mão estendida, hesitou por um segundo, mas então, a aceitou. Quando ele se ergueu, seus olhos ainda estavam sombrios.
Akemi observou Yuri por um momento mais longo do que pretendia. Seus olhos, tão distantes e perdidos, a faziam querer dizer algo, fazer algo. Mas as palavras não vinham. Quando seus olhares se cruzaram, seu coração deu um salto desconfortável. Não era pena o que sentia, era algo mais profundo, algo que ela não queria reconhecer. “Ele não precisa de mim... Não agora”, pensou, afastando o olhar antes que ele pudesse perceber o que se passava em sua mente.
O grupo, lentamente, retomou seu caminho. Akemi foi a última a montar, seguindo atrás dos outros. O vento uivava entre as rochas e o cheiro da terra molhada misturava-se com o odor metálico de sangue ainda fresco, impregnando o ar. Cada passo que davam parecia afundar mais fundo na lama escura, como se a própria montanha estivesse tentando engoli-los. Era um lugar que, assim como eles, conhecia o peso da morte.
Akemi não sabia ao certo de onde Yuri viera. Por que ele parecia ser de uma realidade tão diferente da dela? Havia tanto que ela não sabia ainda, tanto que queria saber...
Enquanto desciam a montanha, permaneceu no fim da fila.
— Você está bem? — perguntou Hikari baixinho. Akemi nem tinha notado que ela havia ficado para trás e agora estava ao seu lado na trilha.
— Sim — devolveu, tentando sorrir, mas seu coração estava pesado. Haruka sorriu.
— Você se preocupa muito com ele... — murmurou Hikari, sua voz baixa como o vento entre as árvores. Akemi lançou lhe um olhar rápido, percebendo o tom levemente brincalhão, mas também algo mais profundo em suas palavras.
— O quê?
— Não finja que não sabe do que estou falando. Você nem sequer disfarça. — Hikari sorriu de leve. — Akemi, não é errado sentir algo, sabia? Você pode ser forte e ainda se importar.
— Não é isso, Hikari. Eu só...
— Você tem medo. Eu entendo. Mas se esconder não vai mudar nada. —Hikari deu um tapinha no ombro dela e Akemi abriu a boca para responder, mas ela já se afastava para acompanhar os outros. Akemi revirou os olhos, mas isso não foi o bastante para impedir que suas bochechas queimassem. “O que ela está pensando para falar assim comigo?” Não era possível, era?
Balançando a cabeça para afastar aquele pensamento ridículo, sacudiu as rédeas para acompanhar o grupo. Ela tinha somente um objetivo de vida, não poderia deixar que nada a distraísse.
***
Era uma viagem longa até Ryokume, a antiga capital imperial. Mesmo montando as cabras, seguiam num ritmo não muito rápido. Precisavam evitar as estradas e estar sempre atentos as patrulhas quando se aproximavam de alguma cidade. Yuri permanecia em silêncio a maior parte do tempo agora. Toda aquela tensão não o ajudava a se sentir melhor. Pelo contrário. Ele sentia irritação, até mesmo raiva. Por que tudo parecia estar como sempre foi enquanto ele estava um caos por dentro? Por que os outros continuavam agindo normalmente? Aquela sombra que o envolvia meses atrás havia retornado. Ele quase podia vê-la, quase podia escutá-la. Ela não iria embora dessa vez. Yuri sabia que não tinha o direito de afastá-la de novo. Ele queria sumir. Desejava isso com todas as suas forças. Ainda mais que antes.
A risada aguda de Hikari ressoou na noite e ele apertou os punhos com força. Era um tolo por acreditar que poderia encontrar um lugar para si mesmo quando o próprio universo parecia determinado a provar o contrário. Só queria sumir de uma vez.
Sumir.
Sumir.
Sumir.
Sumir.
— Olhe para as estrelas, Yuri — disse Akemi ao seu lado. Ele estremeceu com o susto, segurando-se com força as rédeas para se manter firme.
Por um momento havia pensado que seu desejo se tornaria realidade se pedisse com determinação o suficiente, mas a voz dela era tão real que chegava a doer em seus ouvidos. Ela acelerou um pouco, ficando lado a lado. Yuri não a olhou diretamente, ao invés disso, ergueu o olhar para o céu. Apesar de ser noite, estava claro. Era possível ver a névoa se movendo sob as montanhas ao longe. E as estrelas...
Ele já havia as notado antes, naquela noite em que veio ao passado ficara admirado com a beleza delas. Um tremor percorreu seu corpo. Sentia-se tão pequeno. Um detalhe insignificante no vasto mundo ao seu redor.
— Já reparou nelas? — Akemi voltou a falar e ele desejou que a noite não estivesse tão clara quanto imaginava. Assim ela não conseguiria notar a expressão em seu rosto.
— Não... acho que nunca tive tempo — mentiu.
Akemi sorriu de leve.
— Elas estão sempre lá. Mesmo quando não podemos vê-las.
As palavras de Akemi ecoaram dentro de Yuri, provocando um novo tremor.
— O que quer dizer? — Segurava as rédeas com força, imóvel sob a cela.
— Que nem sempre vemos o que está ao nosso redor. Mas isso não significa que não existam. Você se pergunta por que tudo parece normal, não é? Porque ninguém parece se importar com o que está acontecendo dentro de você. Mas existe sim, pessoas que se importam com você. Até quando você mesmo não consegue notá-las.
Yuri ficou parado ali. As palavras pareciam atravessá-lo. Rasgá-lo por inteiro e depois juntá-lo de novo num grande monte de pedaços que nunca seria perfeito. De alguma forma, escutar aquilo era tão doloroso. Ele sentia que se não fizesse algo, explodiria. De repente todas as suas lembranças estavam de volta. As palavras que seu pai havia dito quando o mundo de Yuri estava desmoronando. “Não. Não era eu quem não notava. As pessoas realmente não se importavam.” Ele se lembrou do dia em que sua mãe arrumou as malas e partiu, deixando apenas um bilhete escrito às pressas: ‘Sinto muito, Yuri.’ Ele ficou parado na porta, segurando o papel enquanto ouvia o barulho do carro desaparecendo na estrada. Desde então, qualquer tentativa de confiar nos outros parecia uma aposta perdida. A respiração dele era pesada. E ele permaneceu em silêncio mesmo quando Akemi se aproximou mais e tocou sua mão com delicadeza.
— Não sei o que aconteceu antes, e nem preciso saber. Mas agora, não está sozinho, Yuri. Lembre-se disso quando achar que está se afundando. Pelo menos... — disse desviando o olhar para o céu novamente. — Eu estarei aqui se precisar. Mesmo que seja simplesmente para fazer companhia. E quando eu não estiver, olhe para as estrelas, assim não se sentirá sozinho.
Ela retirou sua mão da dele, deixando somente um indício do calor. Apenas quando ela parou uns metros à frente para esperar por ele foi que percebeu que havia ficado para trás. Sacudiu as rédeas, retomando o ritmo da caminhada. Mas não disse nada. Não sabia o que dizer. Então simplesmente seguiu tentando controlar o enjoo que fazia seu estômago se revirar.