Volume 1
Capítulo 16: Aliança
"Nas luzes da aurora, encontramos a promessa de um novo dia, onde a esperança brilha mais forte do que qualquer escuridão que tente nos envolver."
(Luzes da Aurora, Krisha Mari)
5ª Lua Cheia do ano 1647
Lua da Sombra, dia 17
Yuri despertou com a luz do amanhecer filtrando pela caverna, e por um breve, enganoso instante, acreditou estar de volta ao conforto de seu apartamento. O toque da maciez inexistente de seu colchão o traiu, e a áspera realidade da pedra fria o trouxe à tona. O sonho não havia soado como um refúgio, era um grito por algo que havia perdido. E não sabia se reencontraria.
Akemi já estava de pé, observando o grupo se preparar. Seus olhos, apesar de cansados, carregavam uma determinação que parecia inabalável. “Será que ela sonha com um passado que não a deixa? Ou é o peso de suas decisões que a mantém acordada?” Yuri pensou, enquanto ela lhe oferecia um sorriso discreto. Sua confissão parecia ter tirado um peso considerável de seus ombros.
O grupo continuou a trilha pelos caminhos tortuosos cercados pelas montanhas que se erguiam como sentinelas, banhadas pelos tons alaranjados do amanhecer. Era uma visão de tirar o fôlego. Yuri poderia facilmente parar para apreciá-la, porém o ar gelado e áspero cortava a pele como lâminas finas, enquanto o som do gelo esmagado sob os pés era a única constante em meio ao silêncio.
Com os lábios ressecados pelo clima, quase não conversavam. Enquanto caminhava devagar, Yuri pensava na história de Akemi, que apesar de sua origem nobre, carregava consigo um passado doloroso e solitário, cheio de cicatrizes profundas e escolhas difíceis. Sentia um eco de seu próprio passado em suas palavras.
Chegaram ao Abismo Hebi ao anoitecer do oitavo dia.
— A partir daqui prestem muita atenção onde pisam, vocês não vão querer escorregar — brincou Taki.
Yuri inclinou levemente o corpo e deu uma olhada. O desfiladeiro se abria como uma ferida profunda na terra, mergulhando em uma escuridão que nem mesmo a luz das estrelas parecia ser capaz de atravessar.
— Como atravessamos? — perguntou sem desviar os olhos.
— Pela torre — Shin respondeu sob seu ombro. — Venha.
Somente quando chegaram à beirada, Yuri conseguiu entender o que ele queria dizer. Uma enorme torre móvel avançava na direção deles. Era uma construção diferente de tudo que já tinha visto. Erguida em pedra e movida pela magia de dezenas de homens, transportava as pessoas de uma extremidade à outra do abismo. Apesar do cenário imponente, não era uma visão grotesca, a arquitetura da torre era tanto funcional quanto exuberante. Observar essa estrutura era como testemunhar a própria esperança surgindo no meio da escuridão.
Chegaram à uma espécie de plataforma de embarque, que lembrava o início de uma ponte de pedra.
— Quando a torre se alinhar com a plataforma, entrem um de cada vez — instruiu Kiku, caminhando até a borda e parando com firmeza à centímetros do precipício.
O baque da torre ao atracar reverberou pela plataforma, um estrondo que parecia ecoar nos ossos de Yuri. O chão tremia como se as montanhas resmungassem ao serem perturbadas. Kiku saltou para dentro, cumprimentando os operadores da torre enquanto os outros a seguiam. Quando chegou a vez de Yuri, ele inspirou profundamente e deu o primeiro passo. A luz suave de lanternas revelava um interior tão surpreendente quanto o exterior deixando-o ainda mais admirado com a magnitude da construção.
A sensação era surreal, como se estivessem desafiando a própria natureza. Do lado de fora, as estrelas começavam a pontilhar o céu noturno, enquanto o murmúrio tênue de conversas ecoava pelas estruturas da torre. Mas um som mais profundo se insinuou pelas bordas da percepção de Yuri. Era dissonante, um lamento distante e gutural, quase sufocado pelo sibilar do vento. Instintivamente, ele se aproximou da amurada, o coração acelerado como se algo o chamasse lá de baixo. O frio subiu pela espinha, uma sensação que não vinha do vento, mas do que parecia ser um olhar invisível vindo das trevas.
— O que tem lá embaixo?
— Aah você percebeu? — Shin falou, ao seu lado, recostando-se casualmente de costas para a amurada. Ele deu um pequeno sorriso e arqueou a sobrancelha enquanto encarava Yuri. — Nunca ouviu as histórias? — Ele disse isso como se estivesse falando com uma criança, isso deixou Yuri irritado.
— Não — respondeu, voltando a olhar para a escuridão do abismo.
— Bestas que vagavam pela terra nos primórdios do tempo, aprisionadas no abismo pelos deuses. Antes mesmo da concepção da magia e da divisão dos clãs, quando eles próprios coexistiam em harmonia no reino celestial. — Shin se voltou para Yuri com a expressão séria. — Elas se alimentam de carne humana e sua fome é insaciável. Toda criança nascida em Kasumi cresce ouvindo histórias de que se não forem boazinhas, as bestas do abismo virão buscá-las enquanto dormem — sorriu, claramente se divertindo com a expressão de Yuri.
— Ah... você está brincando.
“Não acredito que caí nessa!”
— No entanto, você as ouviu. — Shin ainda estava sorrindo, era difícil levar a sério.
— Elas são reais... ou não?
— Quem sabe? Algumas pessoas acreditam que são só histórias para manter crianças na linha, mas se alguma coisa existe nas profundezas do abismo, quem teria coragem de conferir? Poderia ser simplesmente o vento batendo nas rochas. — Ele deu de ombros. — Mas há algo na maneira como as histórias persistem, como se houvesse uma verdade escondida nelas. Ah! Já estamos chegando ao outro lado, precisamos subir para o nível superior. — Shin completou e saiu andando despreocupado.
Yuri deu uma última espiada no abismo antes de segui-lo, sentindo-se um tanto infantil por isso.
Subiram por uma escada em meio círculo. Ao chegarem à plataforma, foram saudados pelo vento frio, fazendo-os ajustar os mantos e capas para se protegerem do clima rigoroso das montanhas. À distância, a grandiosa muralha de pedra da vila se destacava, coberta por uma manta de neve que cintilava sob a luz da lua. Ao longe, as luzes das casas brilhavam como estrelas na escuridão.
O grupo percorreu por um caminho rochoso e escorregadio com passos cautelosos. Os rugidos das criaturas desapareceram gradualmente, dando lugar ao uivo solitário de um lobo nas proximidades.
Os guerreiros Ishikawa os conduziram até os portões da vila, onde posicionaram-se um ao lado do outro. Com gestos solenes, tocaram o solo, como se estivessem prestes a iniciar uma oração. Os portões estalaram e começaram a deslizar para os lados.
A atmosfera se transformou instantaneamente quando os portões da vila se abriram. Um calor acolhedor os envolveu gradualmente à medida que avançavam pelas ruas pavimentadas com pedras, ladeadas por casas que se erguiam com graciosidade, construídas com uma combinação de madeira, pedra e bambu. Os telhados inclinados, cuidadosamente projetados, não apenas conferiam um charme pitoresco, mas também serviam como defesa contra o peso da neve que se acumulava nas alturas das montanhas.
Tudo na vila estava vivo. Crianças corriam pelas ruas enquanto artesãos trabalhavam em suas lojas e o aroma de comida sendo preparada flutuava pelo ar. A barriga de Yuri roncou lembrando-o que não comia direito a dias.
Enquanto caminhavam, alguns moradores pararam para cumprimentá-los, trocando palavras calorosas com Kiku.
Foram recebidos por um ancião que vestia uma roupa elegante em tons de marrom e verde escuro. Kiku se curvou respeitosamente a seus pés.
— Honrado senhor, trago comigo o nobre príncipe Shin, que anseia discutir sobre uma possível aliança que poderia fortalecer os laços entre nossos clãs.
— Levante-se, Kaori, não é necessária tanta formalidade! — respondeu o ancião, dirigindo a todos um sorriso. — Bem-vindo, príncipe Shin. Sua presença é uma honra para nossa vila. Primeiro, devem descansar da viagem. Podemos discutir sobre política mais tarde.
Shin acenou em concordância.
— Agradeço pela recepção, Senhor Hideo. Descansaremos então, e aguardaremos ansiosos pela reunião.
— Kenji, acompanhe o príncipe Shin e seus companheiros até os aposentos que preparamos para recebê-los. Certifique-se de que tenham tudo o que precisam — disse Hideo, dirigindo-se a um jovem ao lado dele, que assentiu prontamente.
Seguiram então por um caminho iluminado por lanternas, ouvindo o farfalhar das árvores ao redor.
O quarto no anexo do castelo destinado a Yuri mostrava uma surpreendente simplicidade, mas exalava elegância. As paredes eram decoradas com pinturas delicadas que contavam a história do clã Ishikawa. Yuri se ateve por um momento aos detalhes das formas habilmente gravadas na superfície da parede e em seguida percorreu vagarosamente o aposento com os olhos. Sob a iluminação suave das lâmpadas de papel, uma cama confortável convidava ao descanso. Deixou-se cair nela, sentindo o peso da viagem, e fechou os olhos, agradecendo por poder dormir em um quarto de verdade naquela noite.
Algum tempo depois, um servo do castelo bateu à porta convidando-os para o jantar com Hideo. O barulho dos passos ecoou pelos corredores do castelo enquanto se dirigiam ao grande salão. As portas de correr se abriram lentamente, revelando um espaço magnífico e ricamente decorado. O chão de madeira polida refletia a luz das lanternas, criando um brilho suave. Longas mesas baixas, adornadas com arranjos de flores silvestres e tigelas delicadamente pintadas, se estendiam pelo salão. Ao redor das mesas, estavam dispostas várias almofadas.
Um aroma irresistível preenchia o ambiente. Pratos de cerâmica finamente trabalhados foram colocados sob as mesas, exibindo uma variedade de iguarias quentes perfumadas com especiarias exóticas. Hideo, o líder do clã, os recebeu com um sorriso caloroso, indicando os lugares de honra ao lado de Shin na mesa principal.
Em um canto do salão, uma mulher começou a tocar uma melodia suave com sua flauta de bambu. Yuri estava sentado entre Shin e Akemi, sentindo uma sensação de nostalgia.
Hideo ergueu a voz acima do burburinho, exibindo seu sorriso brilhante.
— Esta noite recebemos o nobre príncipe herdeiro, Shin Ito, e seus estimados companheiros com grande alegria e expectativa. Que esta refeição simbolize a nossa esperança de prosperidade e cooperação mútua. — Ele fez uma pausa, observando a todos ao redor da mesa. — Vamos comer e celebrar a união de nossas forças.
Yuri olhou ao redor, percebendo que apenas o alto escalão estava presente no salão, e se sentiu deslocado por ocupar um dos lugares de honra ao lado de pessoas tão importantes. Do outro lado, Hideo se sentava ao centro do salão, com Kiku ao seu lado direito e Kenji, o jovem que os acompanhou mais cedo, ao lado esquerdo.
— Qual é a relação de Kiku com o senhorio? — Yuri sussurrou disfarçadamente para Akemi ao seu lado.
— Ela é Kaori Ishikawa, a próxima sucessora na liderança do clã. Filha dele.
— Ela? Uau!
Akemi riu baixinho.
— E aquele do lado esquerdo é Kenji Ishikawa, o filho mais novo de Hideo. Apesar de ser um guerreiro exímio na arte da lança e na manipulação da magia da terra, ele não é muito inclinado à liderança como Kiku.
Yuri não havia reparado antes, mas agora, olhando um ao lado do outro, a semelhança era visível. O mesmo queixo bem delineado, os mesmos olhos intensos. Apesar de Kenji exalar jovialidade, era evidente que sabia sua posição.
Os servos começaram a servir os pratos, cada um mais delicioso e exótico que o outro. Yuri, faminto, tentou manter a compostura enquanto seus olhos se fixavam nas iguarias, especialmente em um prato de tempura de vegetais da terra. O aroma irresistível da fritura e o aspecto dourado dos vegetais fizeram sua boca salivar.
— Coma, Yuri. Não precisa ficar nervoso por estar tão próximo a mim — sussurrou Shin, sorrindo. — Os costumes aqui são um pouco diferentes, primeiro enchemos a barriga, depois discutimos. — Apesar do tom de brincadeira, ele mantinha sua postura diplomática, como se estivesse discutindo um assunto sério.
Yuri precisou se segurar para não revirar os olhos, mas assentiu, agradecido, e começou a provar o tempura. O sabor rico e complexo das especiarias dançava em seu paladar; cada mordida era um verdadeiro deleite. Ele não pôde deixar de suspirar de prazer ao sentir a refeição revigorando seu corpo.
— Além do mais, talvez eu tenha esquecido de mencionar que hoje você está aqui como meu emissário.
— Emissário? — Yuri quase engasgou.
— Um cargo temporário enquanto estivermos aqui — continuou enquanto servia a bebida — Você vem de uma linhagem que serve o clã Yamagawa há muitos anos, entendido?
— Sim, senhor — Yuri respondeu, voltando a comer. “Ele poderia ter avisado antes. Eu teria tempo de fugir!” Pensou, mal-humorado.
Hideo, que estava conversando com Kiku, voltou sua atenção para Shin.
— Príncipe Shin, ouvimos falar muito sobre sua sabedoria e bravura. Acreditamos que sua liderança será crucial para enfrentar os desafios que estão por vir. Penso que uma aliança pode realmente ser considerada no momento.
— A honra é minha, Senhor Hideo. Tenho grande respeito pelo clã Ishikawa e acredito que essa aliança trará grandes benefícios para ambos os lados.
Hideo assentiu, sério.
— Contudo, precisamos entender melhor suas intenções e como planeja unir os clãs em torno de sua causa.
Shin se inclinou ligeiramente, em um gesto de respeito e sinceridade.
— Meu objetivo é recuperar o trono que foi injustamente usurpado. Para isso, pretendo unir os clãs sob uma bandeira de justiça e prosperidade. O clã Ishikawa, com sua força e recursos, será um pilar essencial nessa luta.
Kiku, que até então observava silenciosamente, interveio.
— E como pretende lidar com os clãs que se opõem a você, príncipe Shin? Muitos deles têm alianças profundas com o atual regime.
Shin respirou fundo, ponderando a pergunta.
— Acredito que a diplomacia deve ser nossa primeira abordagem. Ganhar corações e mentes através de promessas de um futuro melhor. Contudo, estou ciente de que ainda haverá resistência e, para esses casos, precisamos estar preparados para a batalha. É aqui que a força do clã Ishikawa será vital.
Um homem sentado na outra mesa levantou-se, olhando diretamente para Shin.
— E como podemos ter certeza de que sua causa é justa? Que não estamos apenas trocando um tirano por outro?
— General Taro, compreendo suas preocupações. Minha causa não é apenas recuperar o trono, mas instaurar um império de justiça, onde todos os clãs possam prosperar. Meu desejo é criar um futuro em que a força seja usada para proteger e não oprimir. — Shin respondeu com firmeza.
Hideo fez um gesto para acalmar os ânimos.
— Suas palavras são nobres, príncipe Shin. Mas precisamos de mais do que palavras. Precisamos de provas de sua sinceridade e de sua capacidade de liderança.
Shin sorriu, um sorriso determinado.
— Concordo, senhor Hideo. Estou disposto a provar meu valor.
Hideo inclinou a cabeça ligeiramente, e o silêncio permaneceu por um momento, denso e carregado de expectativas. Finalmente, Hideo ergueu a voz.
— Muito bem. Tenho uma proposta. Há muito tempo, temos mantido nossas terras seguras e praticamente independentes do restante do país. No entanto, nossos recursos, embora abundantes, têm limites. Precisamos de aliados para fortalecer nossa posição e expandir nossa influência.
Shin assentiu, compreendendo.
— E eu preciso de aliados fortes para cumprir meu propósito.
— Então, temos um objetivo comum. Acredito que uma aliança entre nós será benéfica. Nossa força bélica é uma das mais avançadas, e nossa economia pode sustentar campanhas prolongadas. Em troca, buscamos estabilidade e prosperidade para nossos clãs.
Shin inclinou-se levemente, agradecendo respeitosamente.
— Estou honrado, senhor Hideo. Prometo que esta aliança será o pilar sobre o qual construiremos um futuro de justiça e prosperidade.
— Precisamos coordenar nossos esforços para garantir que essa aliança se solidifique e se fortaleça com o tempo. Sugiro que comecemos com uma troca de conhecimentos e recursos, para que possamos entender melhor nossas respectivas forças e necessidades — Kiku interveio.
Hideo assentiu, aprovando a sugestão de sua filha.
— Concordo, Kaori. Vamos formalizar essa aliança com um pacto de cooperação mútua. Príncipe Shin, você e seus companheiros são bem-vindos em Ayatsuri. Vamos trabalhar juntos para enfrentar os desafios que estão por vir. — Hideo se levantou, erguendo seu ochoko.
— À nossa aliança, então. Que ela traga prosperidade e força a todos os nossos clãs.
— À nossa aliança! — O salão ecoou com entusiasmo.
Muito embora as palavras soassem comemorativas, algo nelas fez o sangue de Yuri gelar.
O salão estava imerso em risos e conversa, mas Yuri não conseguia se livrar da sensação de que algo estava fora do lugar. As palavras de Hideo, apesar de corteses, pareciam carregar um peso calculado, como um fio de espada escondido em um sorriso.
Enquanto observava Shin, cujo semblante não revelava nada, a inquietação de Yuri apenas cresceu. Havia algo naquela aliança que prometia mais do que esperanças, e ele sabia que seu papel nela estava longe de ser passivo.
Notas:
1 Ochoko: um copo pequeno, geralmente cilíndrico, utilizado em jogos tradicionais de saquê. O "janome choko" é um tipo maior de ochoko, caracterizado por desenhos concêntricos azul e branco no fundo, que auxiliam na avaliação da cor e clareza do saquê.