Volume 1
Capítulo 15: Festival de Inverno
"Em cada desafio, há uma lição a ser aprendida, um passo mais perto da compreensão de nossa verdadeira natureza."
(O Despertar da Alma, Sakura Nakamura)
2ª Lua Cheia do ano 1833
Lua do Declínio, dia 14
Os dias estavam cada vez mais frios com a proximidade do inverno, e ter que ir à escola para a semana de provas era desanimador.
— Vamos, Otsu, não fique assim. Uma semana passa voando. — Sora exclamou, empurrando uma Otsu desanimada pelo corredor.
— Eu odeio provas! Por que temos que ter tantas?
— Ah, pensa pelo lado bom: logo depois das provas vem a organização do festival de inverno.
Otsu parou de andar, surpresa. O festival de inverno era um evento do qual ela normalmente não participava. Por isso, havia se esquecido completamente. Mas aquela seria sua última oportunidade, e precisava fazer parte dessa vez.
Uma sensação cálida a tomou de repente. Se Sora mencionara o festival para animá-la, tinha acertado em cheio.
— É verdade! Preciso participar dessa vez, porque depois... será o fim. Nunca mais terei a chance de viver algo assim! — Ela deixou escapar, com os olhos brilhando.
— Isso era para soar animador? Porque... não pareceu. — Sora riu, olhando para Otsu, cujas bochechas coraram instantaneamente.
— Desculpe, me empolguei. — Otsu fez um bico, ainda corada. — É só que vai ser a primeira vez que faço algo assim.
Chegaram à sala de aula, onde Yui e Akiko estavam sentadas no fundo, discutindo sobre algo que Akiko segurava na mesa.
Yui, assim como Sora, era enérgica e extrovertida. Fazia parte do clube de teatro e destacava-se no violino, sendo presença marcante nos eventos escolares. Já Akiko era tranquila e introspectiva, com uma paixão por biologia que, às vezes, a fazia parecer um pouco excêntrica. Apesar disso, era impossível não gostar de sua companhia.
— O que temos aqui hoje? — perguntou Sora, inclinando-se sobre a mesa de Akiko.
— Olhem só! — Akiko abriu um pequeno vidro que continha uma borboleta. Não era uma borboleta qualquer: suas asas de azul profundo e iridescente brilhavam sob a luz que entrava pela janela. Detalhes prateados desenhavam formas emaranhadas, dando-lhe uma aparência mágica.
— Incrível! — exclamou Sora.
— É uma Borboleta Safira. — Akiko sorriu, como quem apresentava uma obra de arte. — É rara e só encontrada em áreas semi-tropicais. Encontrei esta hoje de manhã nos jardins da escola.
Otsu ficou encantada com a criatura. — Nunca vi nada assim... é deslumbrante.
Akiko abriu cuidadosamente o vidro, e a borboleta voou, desenhando traços elegantes pelo ar antes de pousar na mesa.
— Tenho certeza de que nunca vou esquecer isso. — Otsu sorriu para Sora, que retribuiu o olhar com um sorriso cúmplice.
— Não duvido. Mas aquela vez com a aranha também foi inesquecível... — Sora provocou, arrancando risos nervosos das amigas.
— A propósito, do que estavam falando? — perguntou Yui, inclinando-se para a conversa.
— Sobre o festival de inverno! — respondeu Sora. — Será a primeira vez da Otsu, e temos que transformar isso em uma experiência inesquecível.
— Ótima ideia! — disse Yui, com entusiasmo. — Vamos começar a planejar algo incrível.
A conversa foi interrompida pelo som firme da voz da professora.
— Silêncio, por favor. Todos para os seus lugares!
As amigas riram baixinho antes de se dirigirem às carteiras, prontas para enfrentar mais um dia de provas.
***
Naquela noite, num lugar distante, Yuri teve um sonho.
O cenário era o apartamento, mas algo estava diferente. O silêncio parecia denso, pesado. A única iluminação vinha da fraca luz da lua que entrava pela janela, projetando sombras alongadas pelos móveis. Yuri estava de pé ao lado da janela, folheando um dos manuscritos de Krisha com movimentos lentos e deliberados.
Ele parecia procurar algo importante, embora não tivesse certeza do que era. O brilho pálido da lua refletia na capa envelhecida dos papéis, enquanto suas mãos tremiam levemente. A pressa era evidente, mas ele hesitava em acender a luz. Havia algo solene naquele momento, como se até o menor ruído pudesse despertar algo indesejável.
De repente, um som sutil ecoou: tap. Algo caiu aos seus pés. Yuri congelou, os olhos fixos no chão onde um pequeno papel dobrado repousava.
"Isso sempre esteve aqui?"
Abaixando-se com cuidado, pegou o papel. Sua textura era áspera e robusta, as dobras tão antigas que quase pareciam gravadas na fibra. Ao desdobrá-lo, sentiu um frio percorrer sua espinha. O título escrito no topo era direto e cruel: Lista de Baixas – Porto Hama, Lua da Chama do ano 1648.
Seus olhos percorreram freneticamente os nomes. A maioria era desconhecida, mas uma palavra se destacou, gravada com força e intensidade no papel: Akemi Himura.
O mundo ao seu redor pareceu parar. O peso daquelas palavras atingiu Yuri como um golpe, deixando-o sem fôlego. Ele segurou o papel com força, os dedos pressionando o nome como se quisesse apagá-lo ou alterá-lo pela força da vontade.
"Isso não pode ser verdade..."
O desespero tomou conta dele. Precisava guardar aquela informação, assegurar-se de que não seria esquecida. Com mãos trêmulas, encontrou um pedaço de papel e uma caneta. Enquanto a ponta da caneta riscava o papel, sua mente ecoava as palavras que ele escrevia: Akemi irá perecer no Porto Hama na 3ª Lua Cheia de 1648.
Dobrou o papel e o colocou no bolso. Quando se levantou, o ambiente ao redor começou a mudar. As sombras das paredes se tornaram mais espessas, mais vivas, e o silêncio deu lugar a um som baixo e pulsante, como um coração batendo em um ritmo irregular.
Yuri olhou ao redor, mas logo em seguida, sentiu um peso nos olhos. A névoa do sono o envolveu como um véu inevitável, apagando sua consciência e levando o sonho para o esquecimento.
Quando acordasse, restaria apenas uma sensação de perda inexplicável, como se tivesse deixado algo importante para trás em um lugar que não conseguia se lembrar.
***
Após a semana de provas, a sala ficou em suspense enquanto os resultados eram entregues.
Otsu olhou suas notas e sentiu um frio no estômago. Era raro vê-las tão baixas.
— Minhas notas estão horríveis... — murmurou.
— Não podem estar piores que as minhas. — Sora riu nervosamente.
— Isso é um desastre! Você respondeu de olhos fechados, Sora? — Yui brincou, rindo.
— Akiko, e você? Parece meio abatida. — Yui perguntou, olhando para a amiga.
— Tirei 98 em literatura... — Akiko suspirou dramaticamente, arrancando gargalhadas das amigas.
— Você é impossível, Akiko. — Otsu sorriu, sentindo-se um pouco mais leve.
Com o festival de inverno se aproximando, as preocupações com as notas foram temporariamente esquecidas. Planejaram uma apresentação de teatro de sombras, o que ocupou grande parte das tardes e fins de semana.
Para Otsu, as semanas que se seguiram trouxeram um novo senso de liberdade e felicidade. Mesmo assim, ela não podia ignorar o desconforto crescente em casa. Seu pai estava cada vez mais descontente com suas ausências e seu desempenho escolar.
As semanas passaram voando, e o tão aguardado festival de inverno finalmente chegou, trazendo consigo uma atmosfera mágica.
A escola havia se transformado em um espetáculo deslumbrante. Lanternas de papel em forma de lua flutuavam suavemente, iluminando os caminhos com um brilho prateado, enquanto esculturas de rochas vulcânicas representando as divindades guardavam o espaço como sentinelas silenciosas. O ar estava impregnado com o aroma delicado das Flores da Aurora, que desabrochavam apenas sob a luz da lua, mesclando-se ao cheiro convidativo dos pratos típicos que os alunos prepararam com tanto empenho.
O ponto alto da noite foi o teatro de sombras, apresentado pela turma de Otsu. A turma havia transformado uma sala em um pequeno palco, com telas brancas iluminadas por lanternas que projetavam as sombras criadas por figuras recortadas com maestria.
— Boa sorte, gente! Vamos fazer o nosso melhor! — Yui disse animada, enquanto todos se posicionavam.
As luzes se apagaram, e a sala mergulhou na escuridão. Apenas as sombras começaram a se mover na tela, enquanto Akiko narrava:
— "No princípio, não havia nada além do vazio, um vasto e escuro abismo..."
Silhuetas representando o Fogo Primordial e a Água Primordial apareceram, dançando na tela. O fogo brilhava com movimentos agitados e frenéticos, enquanto a água fluía suavemente em ondas.
— "Quando o Fogo e a Água se encontraram, sua união deu origem ao primeiro Deus, Mizuryu, o Dragão das Águas."
A figura de um dragão majestoso surgiu, suas asas abertas como se estivesse moldando o mundo. As sombras delicadas mostraram Mizuryu criando a terra firme, os oceanos e as primeiras formas de vida aquáticas.
A história avançou, apresentando os outros deuses. Kaenjin, o Deus do Fogo, foi retratado com sombras vibrantes e chamas crescentes. Tsuchi, a Deusa da Terra, emergiu em silhuetas suaves que desenhavam montanhas e florestas. Kamaitachi, o Espírito do Vento, dançou em redemoinhos, enquanto a Aurora Primordial trouxe a luz do sol.
Cada cena era acompanhada por músicas tocadas ao vivo. Yui, com seu violino, trouxe uma atmosfera mágica, enquanto os sons do vento e das águas eram produzidos por Akiko e outros colegas usando instrumentos improvisados.
O clímax veio com a criação das estrelas e o surgimento dos primeiros clãs. As figuras projetadas mostraram os deuses abençoando os humanos com a magia. O público estava hipnotizado, capturado pela narrativa e pelos efeitos visuais.
Ao final, quando as luzes se acenderam, a sala explodiu em aplausos e Otsu sentiu o coração cheio de alegria.
— Conseguimos! Foi incrível! — disse Sora, abraçando Akiko e Yui.
— Vocês arrasaram! — comentou um dos professores que assistiu à apresentação.
Otsu sorriu timidamente, enquanto Yui colocava o braço em volta dela.
— Isso é só o começo, Otsu. Você tem muito talento, só precisa acreditar mais em si mesma.
Após o espetáculo, as meninas estavam exaustas, mas o brilho em seus olhos traía a alegria do momento. Elas aproveitaram a noite festiva, explorando as barracas e admirando as decorações cintilantes que pareciam ecoar a magia do inverno.
— Olha aquilo! — Akiko exclamou, apontando para uma área onde um jogo estava sendo realizado.
Era uma competição criada pelo clube de ciência e tecnologia: capturar bolas de vento, pequenos balões lançados por engenhocas que simulavam redemoinhos, inspirados pelo espírito travesso Kamaitachi.
— Eu quero tentar! Parece incrível! — Akiko disse, seus olhos brilhando.
— Eu também! Vamos lá! — Yui respondeu, puxando a amiga.
As duas correram até a inscrição, deixando Otsu e Sora para trás.
— Vamos torcer por elas! — Otsu sugeriu, sorrindo.
— Com certeza. Mas antes, vou buscar uns bolinhos para nós. Espere aqui. — Sora disse, desaparecendo na multidão.
Enquanto Otsu esperava, distraída pelas lanternas e pela música ao redor, ouviu uma voz familiar chamando seu nome.
— Otsu!
Ela se virou e viu Kazuki vindo em sua direção. Ele era da outra turma, alguém com quem ela não tinha muito contato, mas que conhecia bem... principalmente porque Sora falava dele o tempo todo. Kazuki era a paixão secreta de sua melhor amiga, algo que Sora jamais havia confessado diretamente, mas que era óbvio pelo modo como ela observava o garoto ou ficava nervosa quando ele estava por perto.
— Ah, oi, Kazuki! Está procurando a Sora? Ela foi buscar comida... — Otsu começou a dizer, tentando manter a conversa casual, mas seu coração acelerou ao perceber que ele parecia hesitante, como se não estivesse ali por acaso.
— Não. Na verdade, eu queria falar com você. — Ele interrompeu, sério.
Otsu piscou, confusa.
— Comigo? — perguntou, a voz quase um sussurro.
— Sim. — Kazuki parecia nervoso. — Eu só... queria dizer que o teatro foi incrível. Você é incrível.
Ela forçou um sorriso, sentindo o desconforto crescer.
— Obrigada... — murmurou, tentando imaginar onde aquilo estava indo.
— Não é só isso. — Ele deu um passo à frente. — Já faz um tempo que eu queria dizer... Acho que gosto de você.
Otsu congelou. A revelação a pegou completamente de surpresa. Kazuki gostava dela? E Sora?
Antes que pudesse reagir, Kazuki segurou suas mãos. Ela se afastou instintivamente, mas viu algo ainda pior: Sora ao longe, segurando dois bolinhos.
A expressão de Sora desmoronou em segundos. O brilho de felicidade em seus olhos deu lugar ao choque e, logo depois, à mágoa misturada com raiva.
— Sora... — Otsu murmurou, puxando as mãos de volta de Kazuki.
Sem dizer nada, Sora arremessou os bolinhos no chão e saiu correndo.
— O que foi isso? — Kazuki perguntou, confuso.
— Desculpe, eu preciso ir. — Otsu respondeu, já disparando atrás da amiga.
— Sora! Por favor, espere!
Ela finalmente alcançou a amiga no portão da escola. Sora parou, mas não se virou. Quando o fez, as lágrimas em seu rosto eram impossíveis de ignorar.
— Como você pôde, Otsu? — A voz de Sora estava embargada, mas sua mágoa era evidente.
— Não foi o que parece! Eu não fiz nada, eu juro! — Otsu tentou explicar, o desespero transbordando em sua voz.
— Nada? Eu vi você com ele! Eu vi como ele segurava suas mãos! Você sabia... você sabia que eu gostava dele. — Sora gritou, as lágrimas rolando livremente.
— Eu não tive escolha! Eu não sabia o que dizer, e então você apareceu... — Otsu implorava, sentindo a culpa apertar seu peito.
— Não quero ouvir! Não quero olhar para você agora. Me deixe em paz. — Sora virou-se, afastando-se ainda mais.
Otsu não conseguiu se mexer, seus olhos fixos em Sora, cuja silhueta se fundia com a escuridão, como se um muro invisível houvesse se erguido entre elas. Ela começou a andar, depois a correr, como se o movimento pudesse aliviar a sensação sufocante em seu peito. O frio da noite castigava suas mãos e rosto, mas nenhuma dor era comparável à de saber que havia magoado alguém que tanto amava.