Volume 1
Capítulo 24: Demônios Também Caem do Céu
Continuamos a caminhar pela rua principal.
O vento sopra com força, mesmo aqui. As placas de sinalização balançam, assim como as folhas das poucas árvores ao nosso redor.
Devido ao silêncio perturbador, o som do vento se torna cada vez mais alto.
Embora esse lugar não se pareça nada com a favela de antes, por causa das casas estarem dispostas nos dois lados da rua, cria-se a sensação de um longo corredor. E o vento corta por ele, nos acertando.
Das poucas pessoas que passaram por nós, todas estavam se “aventurando” contra a ventania, protegida por suas capas e casacos. E pensar que, quando eu estava lá de cima, a vista do horizonte era de um deserto. É como dizem, de noite os desertos tendem a ser bem frios.
Observando ao redor, também me surpreende ver o centro da cidade tão vazio durante a noite. Mas, considerando o contexto medieval deste mundo, isso não deveria ser tão chocante. O problema é que, ainda que no centro, aqui não é bem iluminado, ao menos nas ruas secundárias.
Tirando a rua principal iluminada por aqueles estranhos postes metálicos, todo restante está sendo engolido pela escuridão.
Quando olho para cima, vejo o “Saturno” e as duas luas desse mundo... um estranho mundo de fantasia.
A única coisa que se destaca tanto quanto a pintura no céu é aquela torre. Olhei para cima, encarando a enorme estrutura que tinha sua ponta desaparecendo nos céus da noite.
Apontei para torre:
— Essa torre gigantesca... o que é?
Sheyla me acompanhou com o olhar e respondeu:
— A chamamos de Torre de Lóthus.
— “Torre de Lóthus”, é? E por que ela está aqui?
Paramos de andar.
— Antigamente ela era usada pelo Grande Oráculo e as Sacerdotisas das deusas do Tempo, Destino e Realidade.
— “eram”? O que houve, hoje em dia, não mais?
— Não... — Sheyla suspirou. — Quero dizer, desde que me lembre, e já faz um tempo, não tem mais essa relação.
— Entendi... — diferente do restante da cidade, esse é o único lugar onde é realmente iluminado. — E agora, o que é?
Sheyla olhou para torre e respondeu:
— Atualmente, a Torre de Lóthus abriga o conselho da cidade. É lá que se tomam as decisões importantes. Embora não tenha mais a mesma função espiritual de antes, continua sendo um símbolo de poder e sabedoria para a cidade.
Provavelmente esbocei um leve sorriso antes de confirmar:
— Sabia!
— Quê? — Sheyla respondeu confusa.
— Ah, é que eu estava pensando se não era onde o rei ou os comandantes ficavam...
— Entendi... — Sheyla sorriu e confirmou com a cabeça. — Você está certa. Mas, também a usamos como um Farol.
— Farol... na terra? Quê? — Bem, agora que ela disse isso, o topo realmente está “brilhando”, certo?
— Sim... — ela sorriu. — Qual a surpresa?
Não posso simplesmente dizer que acho isso tudo uma loucura. Só que, depois de tudo que já vi e passei, está muito tarde para isso. Apenas fiz um sinal rápido com a cabeça, negando o comentário anterior:
— Nada... esquece. Continue: por que usariam como um farol?
Talvez por coincidência, uma nova rajada de vento nos atingiu enquanto ela explicava:
— Você percebeu esses ventos, certo? Mesmo de dia, isso é comum aqui na Cidade da Fronteira. Piora durante a noite. E, às vezes, costuma ter tempestades de areia que, se não fosse o Farol, muitos acabariam perdidos no deserto antes de encontrar a cidade.
E pensar que, agora com essa informação, seu tamanho colossal e toda essa luz começa a fazer sentido.
Olhei para trás, em direção ao paredão de montanhas.
— Ainda que tão perto das montanhas?
— Sim. Esse é o problema, Yami. — Ela virou-se para trás e continuou: — As montanhas se estendem por muitos quilômetros nas duas direções. Apenas alcançá-las não significa chegar na cidade. O farol também ajuda essas pessoas.
Mesmo tão alto, ele seria capaz de ajudá-las com isso? Bem, não é como se um estrangeiro pudesse opinar sobre o assunto.
— Interessante. E pensar que era usado antes pelo oráculo, certo?
— Não sei dizer se era usada da mesma forma quando o lugar era do oráculo. — Complementou Sheyla.
Em um mundo onde existem deuses, como deve ser o conceito de acreditar em oráculos, previsões, adivinhações e todo o restante? Ainda que tenha conversado com aquele deus de antes, isso nunca aconteceu na minha vida anterior, então, o que devo pensar sobre?
— Vocês acreditam no oráculo? Quero dizer... em adivinhação?
Sheyla soltou um sorriso sincero.
— Sim, Yami. E você, não?
— De onde venho, adivinhação era usada como subterfúgio para enganar as pessoas. Então, meio que não acredito nisso.
— Entendo. Bem, há muitos charlatões que usam da crença popular para enganar as pessoas, isso não posso discordar, porém, normalmente as pessoas confiam no que o Oráculo diz... ou melhor, confiavam.
Continuamos a andar.
— Mesmo não sendo mais a torre do oráculo, ele não existe mais?
— Isso. Ele simplesmente desapareceu um dia... Alguns até tentaram tomar o seu lugar... não deu muito certo.
— Isso soa muito fantasioso... — disse baixinho.
Ela sorriu, compreendendo minhas palavras e continuou:
— Eu entendo que para você possa ser “fantasioso”, mas a torre tem uma história profunda e repleta de significado para o povo da cidade. Além disso, até sua arquitetura é verdadeiramente impressionante. Alguns dizem que foram as deusas que a criaram.
— Com essa altura... sim, é realmente impressionante.
Não há nenhuma outra estrutura que se assemelha à construção da torre. Além dela ser incrivelmente alta, parece ser feita com pedras ou materiais incomuns àqueles utilizados nas casas ao redor. Porém, como estamos longe, não dá para ter certeza.
— Você iria se surpreender ao vê-la por dentro — respondeu Sheyla entusiasmada.
— Certamente... e você, pelo visto, já viu lá.
— Sim, não nos andares superiores.
— Quem sabe um dia eu possa ver como é dentro da torre. — Brinquei com a situação. Bem, considerando o que eu sou, deve ser impossível, normalmente.
Ela confirmou com a cabeça, sorrindo.
Será que devo me preocupar com a torre? Se considerar os avisos do Yaga, não posso negar quaisquer tipos de presságio ou premonições.
— Sheyla.
— Sim?
— Essa torre... foi utilizada na guerra contra os demônios? Quero dizer, igual ao Forte de Antheres...
— Não de maneira direta como o forte. Mas, sim. Pelo que diz a história, foi o Oráculo que previu o surgimento e o fim do Rei Demônio pelas mãos do Herói Hero.
De novo esse nome “super criativo”. Ainda assim, oráculo fazendo previsão... não tem como ser mais clichê que isso, né?
— Entendi a importância do oráculo, porém, e as sacerdotisas?
Sheyla estufou o peito para explicar com certa admiração em sua voz:
“As Sacerdotisas eram mulheres poderosas e respeitadas em nossa sociedade. Elas dedicaram suas vidas à adoração e ao serviço das três grandes deusas: Tenra, Desty e Ryella. Possuíam habilidades especiais capazes de ajudar o Oráculo a prever o futuro, manipular o fluxo do tempo e compreender as complexidades do destino. Alguns acreditam que elas ainda eram capazes de alterar a realidade em pequena escala, embora essa habilidade fosse raramente usada e ainda é cercada por um grande mistério”...
— Wow... bastante coisa.
— Tem mais, Yami...
Nossa, tem mais?
Ela continuou:
“As sacerdotisas também desempenhavam um papel fundamental na orientação e proteção da cidade. Além de ajudar em decisões importantes, aconselhando os responsáveis e líderes da época, realizavam cerimônias para abençoar e proteger o povo. Durante a guerra contra os demônios é dito que elas usaram suas habilidades para fortalecer as tropas, prever e evitar desastres e muitas outras coisas”.
— Interessante... — Será que, se eu falar que não me importo, ela ficará chateada?
Sheyla parou outra vez de caminhar para encarar a torre.
— Infelizmente, com o passar do tempo e as mudanças na sociedade, a tradição das sacerdotisas se perdeu. A Torre de Lóthus foi utilizada como um farol e o centro do Conselho da Cidade. Poucos são aqueles que lembram de seus atos heroicos.
— Uau, Sheyla... Como você sabe tudo isso? Por acaso encontrou tempo para estudar história entre suas sessões de treinamento?
Sheyla sorriu levemente, parecendo um pouco envergonhada.
— Bem, Yami, na verdade, eu sempre fui fascinada pela história e pelos mistérios do passado.
— Sim, percebi.
— Quando eu era mais jovem, antes de me tornar uma cavaleira, passava tempo na biblioteca da cidade lendo sobre as lendas e tradições antigas. A história sobre as sacerdotisas sempre me intrigou e me inspirou. Por isso eu ficava me imaginando como elas faziam. Então, sim, eu me esforcei para aprender tudo o que pude sobre elas, mesmo depois que passei a ter meus treinamentos como cavaleira.
— Sua habilidade de cura vem dessas deusas ou algo parecido?
— Hmmm... como posso explicar isso... Sim, é algo parecido, no entanto minhas habilidades vêm da minha deusa: Lumina.
Outra deusa? Espere, quantos deuses já existem nessa história?
— De qualquer forma, agora entendo por que você tem tanto interesse em ajudar o orfanato... — Será que devo continuar fazendo perguntas ou seria melhor apenas deixar isso de lado? Tanto faz, preciso ao menos saber isso: — Sheyla, por que você gosta tanto de crianças? Ou melhor, por que tanto Meril quanto Emília comentaram sobre os tais “rumores”?
Sheyla suspirou, olhando para o chão antes de me responder:
— Bem, Yami, eu sempre tive uma conexão especial com as crianças. Quando eu era mais jovem, eu cresci em um lar onde não havia muita atenção ou carinho. Meus pais sempre estavam ocupados. Então basicamente vivi nas bibliotecas ou brincando com as crianças do bairro.
“Crianças do bairro”? Bem, estamos falando desse mundo afinal...
— Mas, o que isso tem a ver com os rumores?
— Quanto aos rumores, eles provavelmente começaram porque as pessoas viram o quanto eu me importo com as crianças e o tempo que passei no orfanato. Algumas pessoas podem achar isso estranho ou incomum, especialmente para alguém da minha posição, como cavaleira. No entanto, eu realmente acredito que é importante dar às crianças amor, atenção e orientação para que possam mudar nossa sociedade.
— ... — As vezes esqueço que Sheyla é tal como uma “paladina”.
— Emília, por outro lado, é alguém que conheço desde que nos tornamos cavaleiras. Além do problema que eu já disse, sobre a questão das nossas famílias, ela sempre foi muito competitiva. Então quando eu deixava de focar tanto na ordem quanto ela, para ajudar o orfanato e as crianças, provavelmente foi ela que espalhou esses rumores para diminuir minha reputação.
— Então, já naquela época ela jogava sujo?
— “jogar sujo”, creio que sim. Apesar disso, eu tento não me deixar afetar. Eu acredito que isso é o certo a se fazer, mesmo que nem todos me entendam.
Ainda que Sheyla mostrando certo entusiasmo para explicar minhas dúvidas, ela está visivelmente chateada pelo que aconteceu antes, com a outra cavaleira Emília.
Por que preciso aturar essas coisas? Quero dizer, eu sei que concordei com tudo isso, todo esse teatrinho, mas, se considerarmos o que o Sistema e aquele deus de antes disseram, eu sou forte o suficiente para subjugar tudo, não?
Então, por que deveria fazer isso? Suspirei.
Vê-la dessa forma me faz querer ajudá-la. Não sei o que está acontecendo nesta cidade... E tê-la ao meu lado é uma jogada de sorte? É, acho que sim.
Embora Sheyla não tenha aceitado meu contrato e não faça parte da minha “equipe”, posso convencê-la após tudo isso se acalmar. Se o fato dela ser parte de alguma família nobre ou famosa for verdade, posso usar isso a meu favor.
— Tudo bem, Sheyla. — Segurei suas mãos com mais força.
— Yami? O que houve? — perguntou surpresa.
— Você parece muito distraída com o que aconteceu antes.
— É assim que eu pareço para você?
— Sim, é. Temo que se eu não estiver segurando você, é capaz de me perder e nem perceber.
— Me desculpe — ela sorriu sem jeito. — E obrigada.
— Não precisa ficar se desculpando, Sheyla. Sei que tem muitas coisas passando por sua cabeça neste momento, no entanto, pode contar comigo. Estou aqui, nem que seja só para escutar seu desabafo ou lamentação.
— Sim... eu gostaria de contar com esse apoio. Assim que conseguirmos parar e se sentar, tenho muita coisa para conversar.
Caminhamos durante mais alguns minutos até que pudéssemos ver uma grande área espaçada entre as casas paralelas. Todo este lugar, é como uma vila circular. No centro, uma pequena área que me lembra um parque. Há terra e grama verde, e no meio, um morrinho e uma grande árvore, grossa e de copa densa e florida.
Mesmo com a falta de iluminação, essa região é facilmente destacada do restante da cidade até agora.
Então, havia um lugar como esse escondido no meio da selva de pedras, hein?
— Onde estamos?
— Esse é o Marco de Hyrelin.
— Igual o nome do orfanato?
— Sim... e ali está... nosso objetivo: — Sheyla apontou para uma estrutura grande e chamativa: — O Orfanato de Hyrelin.
— Isso é como uma praça, tem até alguns bancos — continuei encarando o tal “marco”.
Sheyla sorriu.
— Sim, também a chamamos de Praça Central.
— Espere... então é aqui que vocês se encontrarão mais tarde?
— Sim.
— Tão perto de onde vou ficar... Agora entendi porque você comentou sobre me “pegar”...
— Não queria te ofender, Yami.
— Tudo bem...
A Torre de Lóthus está também a apenas alguns bons metros de distância. Mesmo cercada em sua base pelas altas muralhas, é admirável que tudo isso esteja localizado próximo dela. Portanto, esse lugar ser chamado de Praça Central não é um erro.
Além do orfanato, há outros prédios que se destacam à vista, conferindo a essa "vila" um aspecto muito mais nobre do que as outras partes da cidade até então.
O orfanato em si é um grande prédio que me lembra uma igreja católica europeia. Possui algumas torres, telhados pontudos, um grande sino e até cruzes. É interessante imaginar que os símbolos religiosos seriam semelhantes ao do meu antigo mundo.
Antes de chegarmos ao prédio em si, há uma espécie de grade de ferro que serve como cerca do lugar. Conseguimos ver os grandes jardins, repletos de verde, árvores e flores. Do outro lado, o que parece ser um cemitério ou a entrada dele.
Não dá para dizer que esse lugar era simples.
Apesar do portão não estar fechado, caminhamos até aquelas grandes portas de madeira.
— Está fechado?
— Não se preocupe, eu tenho uma chave comigo — respondeu Sheyla.
Observei enquanto Sheyla removia do cordão algo que me lembrava uma chave grande e prateada.
Toda a estrutura ao redor é velha, mas bem cuidada. Além disso, as janelas grandes em arco possuem complexos vitrais coloridos.
Com um giro suave da chave na fechadura, Sheyla abriu a porta, revelando o interior do orfanato. O lugar estava bem escuro, iluminado apenas pelos brilhos através das janelas. Mesmo assim, o quão elegante são esses pisos de madeiras e todos esses afrescos nas paredes?
Diferente do lado de fora, há uma brisa acolhedora percorrendo o ambiente. Embora esse lugar tenha um aspecto meio sombrio por fora, a sensação mudou completamente aqui dentro.
— Bem-vinda ao orfanato — disse Sheyla, sorrindo enquanto se virou para mim. — Você provavelmente vai gostar desse lugar, vou apresentá-la às crianças e às madres do lugar.
— Não que elas estejam acordadas a essa hora, né? — olhei para um banco colocado quase ao lado da entrada. — Então, devo esperar aqui?
— Você tem razão... Certo, Yami. Espere aqui que irei procurar alguém. Seria melhor explicar a situação para a Madre Superior antes.
— Sheyla... tem certeza de que um meio-demônio pode ficar em um lugar tão... “sagrado”? — perguntei.
— Bem, você não fez mal algum até agora... — provavelmente ela se lembrou da situação com os bandidos e ficou pensativa, no entanto, me vendo-a encarar, continuou: — De qualquer forma...
— Entendi... pode ir.
Sistema: [Percepção Passiva ativada].
Sheyla, antes de sair do local, foi surpreendida por um chamado baixinho vindo do outro corredor, oposto de onde estávamos. Quem é essa garota?
Seu nome é Pretty. Ela possui 14 anos. Apesar de parecer muito com a Sheyla, tem olhos verdes e cabelos loiros, mas trançados em duas maria-chiquinha. Uma coisa que posso afirmar é que, ela também está equipada com “duas armas de destruição em massa”.
— Sheyla? É você que está aqui? — perguntou enquanto se aproximava com cautela. Seus olhos tentavam ver Sheyla através da escuridão. Assim que confirmou, deu alguns passos acelerados para próximo dela. — Pelas deusas! Ainda bem que você está viva!
— Pretty?! — respondeu Sheyla, preocupada. — O que aconteceu? Por que toda essa comoção?
— Ouvimos alguns rumores sobre você ter ficado na floresta... — Pretty teve sua voz vacilando por um momento ao me observar, sentada no banquinho. — Espere, quem é essa menina encantadora?
— O que houve com toda sua preocupação comigo? — perguntou Sheyla desacreditada na troca súbita de reação da garota. — Essa é... Espere, Pretty, não faça isso!
Mesmo que Sheyla estivesse tentando acalmar a fera, Pretty já tinha se aproximado o suficiente para me abraçar com “tudo” que podia. O que tinha de peito, faltava-lhe cérebro.
Quero dizer, por acaso essa menina não considerou que a criança à sua frente poderia ser A rainha dos demônios? De qualquer forma, agora estava ela me abraçando e me acariciando como se eu fosse um bebê.
— Pretty... por favor... se recomponha. Isso lá é atitude de uma freira?
— Sheyla... olha essa garotinha, é tão fofa! Além disso, que pele linda... E esses olhos, que coloração mais vibrante. Nunca vi cabelos tão negros e tão brilhantes! — me abraçou novamente.
Sheyla, apesar de estar vendo toda aquela situação, está apenas me ignorando, né?
— Pretty, a Madre Graça está? Gostaria de conversar com ela. Se a Grande-Madre Sonya estiver, também gostaria que a chamasse... urgentemente.
Pretty se afastou um pouco de mim e olhou para Sheyla.
— Me desculpe, Sheyla. As madres superiores não estão. Somente as outras irmãs, mas todas estão dormindo agora.
— Se é assim, você também não deveria estar dormindo?
— Errr... — Pretty voltou a atenção para mim. — E essa florzinha? Ela tem nome?
Empurrei ela um pouco antes de me apresentar:
— Me chamo Yamitsuki Ottoe. É um prazer conhecê-la. Todos que são conhecidos meus, me chamam de Yami, então você também pode me chamar assim.
— Wow! Tão educada! Não é só bonita, porém, também inteligente. É um anjo que caiu do céu?! — Pretty segurou minhas mãos, balançando-a. — Prazer em conhecê-la, Yami. Eu me chamo Pretty e pode me considerar como a irmã mais nova da Sheyla.
Depois de dizer isso, ela simplesmente me abraçou, novamente, só que agora me afogando naquelas montanhas de açúcar. O que passa na cabeça dessa garota?
— Pretty, ela não gosta que...
— Ah! Pare com isso! — comecei a tentar me afastar. — Me solte, não quero que fique esfregando esses melões na minha cara!
— Haha, você viu isso? Ela chamou meus peitos de melões... Nunca alguém falou isso antes, que gracinha.
Ah, é?
— Ah! — ela deu um gemido um tanto constrangedor e segurou seus peitos, dando uma afastada.
— Pretty? — perguntou Sheyla envergonhada. — O que foi isso?
— Nada! — Pretty se levantou sem jeito, se ajustando. — Não foi nada, você não ouviu nada. — Depois disso, ela olhou para mim. — Essa florzinha aqui tem espinhos, né? Mas, não se preocupe, essa irmã sabe como cuidar de um jardim com rosas!
Sheyla sorriu sem graça para Pretty depois do que aconteceu e me encarou por alguns segundos antes de voltar atenção para a nova garota.
— Bem, Pretty, eu precisava falar com elas. Se não estão aqui, sabe quando voltam?
— Pelo que me lembre, amanhã de manhã.
— Entendo... Podemos usar a cozinha?
— Claro! — Pretty foi até o portão e conferiu as correntes e trincas. — Falando nisso, onde você encontrou esse anjinho?
— A encontrei na Floresta, durante minha missão. Como ela estava sozinha, não pude deixá-la abandonada naquele lugar.
— Na Floresta de Erthemon? Como uma criança encantadora como essa conseguiu sobreviver? Ou melhor, que demônio a deixaria sozinha naquele lugar?
As duas olharam para mim e fizeram um sinal para que pudéssemos avançar, nisso apenas levantei-me e comecei a segui-las.
— Você verá que ela é forte, e especial, Pretty. De qualquer forma, assim que a vi, decidi trazê-la comigo.
— Fez certo, Sheyla. — Deu alguns passos para frente, ficando parado contra Sheyla. — Como esperado de nossa guardiã e minha irmã mais velha!
— Ainda assim, como preciso resolver alguns problemas, esperava deixá-la aqui por um tempo até resolver a situação.
— Entendo. Bem, sendo você, não vejo nenhum problema e creio que até mesmo as madres-superiores pensam assim.
— Estou contando com isso.
— E então, Sheyla, os rumores sobre a floresta são verdadeiros? Animais perigosos e monstros estão se reunindo lá?
— Pretty, não posso lhe dar mais detalhes sobre, mas, a situação é muito mais séria do que pensávamos.
— Entendo...
Enquanto as duas conversavam, a gente andava pelo orfanato.
Esse corredor no qual pegamos está repleto de quadros de mulheres seriamente pintadas encarando o telespectador, algo claramente assustador. Além disso, há algumas estatuetas menores como anjos ou figuras angelicais olhando e suplicando para “cima”.
É como se houvesse um misto entre a religiosidade do antigo mundo com os aspectos fantásticos desse novo mundo. Não sei dizer se estas estatuetas representam as deusas ou seus “anjos”, porém, não dá para negar que isso é algo religioso.
Enquanto percorremos pelo grande corredor, uma gigantesca janela se fez presente e mesmo eu sendo pequena, consegui ver um jardim interno grande o suficiente para ter uma árvore semelhante àquela da praça.
Continuamos até um cômodo semelhante a uma cozinha.
Ao menos há uma mesa comprida, alguns bancos e do outro lado, na parede, armários, utensílios de cozinha e um... fogão à lenha?
Pretty fez sinal para que pudéssemos nos sentar e continuou:
— Desde que você saiu de missão, os rumores se tornaram mais intensos. E quando o grupo de aventureiros voltou, mas sem você, as pessoas estavam dizendo que um monstro assustador tinha... — Pretty tentou se conter, estava visivelmente abalada. — Fiquei tão assustada que algo ruim pudesse ter acontecido com você.
— Tudo bem, Pretty, estou aqui...
— Sim.
Quando ela não está se esfregando em mim, parece uma mulher adulta. E vê-la quase chorando, dá a entender que ela gosta muito da Sheyla.
Sheyla caminhou ao redor da mesa até chegarmos às cadeiras mais próximas de Pretty e fez um sinal para que eu me sentasse. Em seguida, sentou-se também.
Sheyla virou-se para Pretty e continuou:
— Realmente houve uma criatura que nos atacou, Pretty, por isso tivemos que nos separar. Só que, quando isso aconteceu, todos estávamos bem.
Dói pensar que Sheyla está “mentindo” para Pretty, mesmo depois do que acabou de acontecer. Mas, é melhor assim, afinal ela não precisa estar envolvida em toda essa loucura de monstros ou “traição”.
— Entendi — Pretty inclinou-se para pegar um objeto de cima de alguns armários e depois agachou-se diante do fogão. — Vou preparar um chá para vocês, tudo bem?
— Certo.
Pretty acendeu a lenha com aquele objeto misterioso e depois o colocou de lado. Com uma jarra, mergulhou em um barril lateral e despejou a água sobre uma chaleira. Algumas ervas secas que estavam penduradas em cima foram removidas do suporte e, em seguida, também lançadas dentro da chaleira.
— Deixando isso de lado, Pretty. Você ainda não me respondeu a minha pergunta, porque você está acordada nessa hora, se nenhuma outra madre ou irmã está?
— Errr... Bem, isso... eu sei que não deveria... — ela fez uma pausa, olhando para Sheyla com um olhar de súplica.
Que enrolação. O que uma garota de 14 anos estaria fazendo para enrolar tanto? Mesmo assim, parece que Sheyla já entendeu, pois, apesar de fazer um sinal negativo, esboçava um leve sorriso.
— Quantas vezes as irmãs disseram para você não usar aquela sala? Você realmente quer fazê-las ficar furiosas contigo, né?
Sala? Que sala?
Quando observo Pretty com mais cuidado, ela está descalça. E, parando para pensar, suas roupas de freira não estavam um pouco molhadas quando ela me abraçou? Que diabos aconteceu com essa menina?
Pretty foi em direção ao balcão e pegou alguns copos, colocando-os em cima de uma bandeja.
— As crianças foram dormir cedo, e como as madres superiores não estavam, achei que seria uma boa ter um tempo para... relaxar.
— Desobedecendo as ordens das madres? De novo.
— Sério, Sheyla! Eu vou limpar tudo quando terminar. Por favor, não conte para elas, ok?
Sheyla suspirou.
— Sim... sim. Entendi. Não se preocupe. Vou deixar isso passar, afinal também estou lhe pedindo um favor aqui. — Enquanto Pretty colocou os copos sobre a mesa, ajustando-os para nós dois, ela continuou: — Resumindo, Pretty: quero que você encontre um quarto para Yami passar a noite. Antes de eu explicar a situação para as Madres, gostaria que Yami não chamasse atenção.
— Certo.
— Você poderia cuidar dela enquanto eu estiver fora? Ao menos, até que as madres voltem amanhã e eu converse com elas antes.
— Sim! Eu irei proteger esse anjinho... — Disse, colocando as mãos sobre meus ombros. — Nem que custe minha vida!
Olhei para Sheyla um pouco irritada.
— Essa garota é “idiota”? — perguntei baixinho.
Sheyla, por outro lado, suspirou e olhou para Pretty seriamente.
— Eu sei que você já deve ter notado, Pretty, mas ela é um meio-demônio...
Pretty fez um sinal positivo com a cabeça e depois deu um “joinha”, mesmo com aquela roupa de freira bagunçada e descalça.
— Sim. Na primeira vez que bati os olhos, vi seus chifres e o rabo.
— E por que continua chamando-a de anjo?
— Não é óbvio? Nunca vi um demônio tão fofo quanto ela — Pretty se agachou para me encarar nos meus olhos. Sério que ela precisa fazer isso tudo? — Eu me recuso a chamá-la de demônio ou meio-demônio.
— Entendi. No entanto, Pretty, só... se contenha, por favor.
Então a chaleira começou a apitar e Pretty se afastou, indo em direção ao fogão.
Sheyla inclinou um pouco para frente, se aproximando de mim e comentou baixinho:
— Não se preocupe com ela, Yami, apesar de ter aquele corpo, ainda é uma criança e tem bom coração. Espero que vocês se deem bem.
— É, percebi. — Olhei rapidamente para a Pretty. — Assim espero.
Pretty passou o chá em outro tipo de jarra e antes de vir em nossa direção, passou por uma bancada que tinha uma cesta coberta. Dessa cesta, retirou alguns pães, cortando-os – com bastante dificuldade – e colocando noutra bandeja.
A garota com roupas de freira estava nos servindo chá e pão-seco.
— Se vocês chegaram agora da floresta, certamente estão famintas. Tomem. Aproveitem que a padaria foi generosa conosco e nos entregaram uma cesta com muitos pães hoje.
Não comi nada até agora, desde quando acordei nesse mundo, no entanto, não é como se eu estivesse com fome. Até mesmo o Sistema me disse que não preciso me alimentar, né?
“grrrrooowwll” Mas, que diabos? Isso foi eu? Meu estômago?
Eu e as duas ficamos surpresas pelo que aconteceu.
— Você estava com tanta fome assim? — Pretty colocou a bandeja em cima da mesa e olhou para Sheyla. — Sheyla, por acaso...
— Yami! Me desculpe, devido às circunstâncias não percebi que você estava com tanta fome...
— Acalme-se, vocês duas... Não é como se eu fosse morrer... é que está cheirando tão bem. — Droga, isso é muito constrangedor. — Desculpe por mostrar uma cena tão vergonhosa para vocês.
— Ah! Que fofa... Certo, Yami... — Ela arrastou a bandeja perto de mim e olhou para o fogão. — Já sei, vou preparar algo para você! Apesar que são os restos da sopa de hoje.
Sheyla está quase chorando.
— Me desculpe, Yami.
— Já disse que está tudo bem.
Droga. E pensar que mesmo não sentindo minha energia cair ou qualquer sinal de “fome”, isso aconteceu. Espere aí, como um Demônio-Real eu não deveria ser imune a estas coisas?
Sistema: [Você agora está, atualmente, passando por um meio-demônio].
Sério isso? Agora que você vem me dizer que minhas “vantagens apelonas” não estão funcionando? Logo agora? Bem, parando para pensar...
Me aproximei do pão e peguei uma fatia. Por algum motivo isso não está cheirando muito bem agora? Ah, quer saber? Que se dane, vou comer alguns.
É a primeira coisa que vou consumir neste mundo. "nhac", "nhac", "gulp", "nhac", isso... Isso...
Isso é INCRÍVEL! Que sabor é esse? Quero dizer, o quê?
Como nunca comi algo assim na minha vida antes? Se eu pudesse descrever, estaria sorrindo à toa enquanto escuto "Happy" do Pharrell Williams.
Sheyla colocou o cotovelo sobre a mesa, me encarando, e depois disso deu um sorriso:
— Você... realmente estava com fome, né? Como está?
— ixsda mavarigoso, oma delixa.
— Sério, Yami... às vezes você age como uma mulher adulta, outras vezes até como um homem... e agora, agindo como uma verdadeira criancinha — começou a rir e depois pegou seu copo, tomando o chá e comendo alguns pedaços do pão.
Não importava o que Sheyla estava falando, aquele néctar divino e aquele pão duro eram tão bons que por um momento me esqueci completamente do que estava fazendo. Viveria apenas para ficar comendo isso o dia todo.
Pretty voltou alguns minutos depois, trazendo uma tigela de sopa quente. Ela pegou mais alguns pães e colocou na mesa.
Não resisti e devorei tudo que pude.
Orgulho? Não tenho mais... Educação? Parece que está voando pela janela neste momento, como um balão de ar-quente rumo ao espaço.
— Seria tão bom se as outras crianças valorizassem a comida como você.
— u q dixe?
— Não entendi... — ela sorriu e sentou-se. — Você pode terminar de mastigar, Yami. A comida não vai fugir do seu prato.
Droga. Também não posso parecer um animal... pior, um monstro. Acabei de mastigar, engoli e limpei meu rosto.
— Como assim, o que você quer dizer?
— Ah. Bem, só por receber esses pães da padaria, mesmo que duros, já é muito bom, sabe? Não é como se a gente pudesse negar comida. As crianças também sabem disso, mas elas odeiam esse pão. Dizem que é muito duro e tal.
— Duro? Quero dizer, assim que você falou, percebi que eles eram um pouco duros sim, nada demais.
— É por causa da sua mandíbula, Yami. Como posso falar isso, não creio que sejam "duros" para você — comentou Sheyla.
Pretty espreguiçou-se por um momento e depois se ajeitou no banco, e como se observasse algo estranho atrás de mim, sorriu e olhou para Sheyla.
— Não entendo muito bem o que vocês estão falando. Só que... — ela apontou para mim. — Vejo que estás feliz, isso que importa.
Sheyla, percebendo, deu uma risada sincera.
— Como assim?
— Sua cauda, e parece que não vai parar tão cedo — disse Sheyla.
Minha cauda? O quê? Droga, ela está balançando como se eu fosse um cão, que coisa é essa? Pare com isso! Não sabia que cães e demônios tinham essa mesma reação.
— Então, Sheyla, você vai passar a noite aqui? Quando foi a última vez que dormimos juntas?
— Pretty! — Exclamou Sheyla sem graça, e depois de se recompor, continuou: — Não! Ainda tenho que responder aos meus comandantes. Então... — ela tossiu como se quisesse ignorar o comentário de Pretty. — Posso contar contigo para cuidar da Yami, certo?
— Sim.
— E você, Yami?
— xin, thud ben, poxe conda comixo! — respondi, ainda saboreando a sopa e o pão, que eram as melhores coisas que comi na minha vida.
Sheyla sorriu e tomou seu último gole de chá.
Depois disso, se levantou e foi com Pretty para o corredor. Pretty, por outro lado, pediu para que eu terminasse de comer com tranquilidade.
Levou alguns minutos até que Pretty voltou para cozinha.
— Terminou? — Pretty perguntou encarando os pratos e bandejas vazios.
— Sim. Agradeço a comida. Acho que não tenho palavras para expressar minha felicidade por ter comido algo tão delicioso.
— Ah, quando você fala assim, me dá uma vontade de te abraçar.
— Não, por favor.
— Pensando bem... eu não queria falar isso na frente da Sheyla. E não quero te ofender, mas, Yami, vocês duas estão cheirando muito mal!
— Ah?! É? Não é como se eu... espera... — eca, realmente estou fedendo igual a um porco, pior que um porco, como um goblin? Nem sei dizer.
— Oh, não se preocupe, não é sua culpa, certo? Você estava naquela floresta repleta de monstros, certamente não tinha um banheiro no qual pudesse tomar banho.
— Sim, acho que sim, me desculpe.
— Já disse para não se preocupar. Por que não aproveitamos que as madres não estão e tomamos banho juntas?
— Hã?
— Vou aproveitar que você é tão fofinha e te contar um segredo, ok? Só não fale isso para as madres. Atrás do altar há uma porta que dá acesso a uma grande banheira. Ela era utilizada para batismos ou algo do tipo.
— Ainda não entendi.
— Sabe, ter um banheiro próprio é um luxo para poucos, até certos nobres têm dificuldade, e aqui na igreja tem uma banheira gigantesca. Seria um desperdício não a usar, certo?
— Acho que ainda não entendi.
— Bom, vou te mostrar, então vamos lá, e aproveitar para tirar esse cheiro ruim que você está. Seria muito ruim levá-la para um quarto desse jeito.
— Ah. Tudo bem. Mas creio que posso me lavar sozinho.
— Nada disso, como sua irmã mais velha, vou ter certeza de que você ficará cheirando como um campo de flores!
— Hmmm, ok?
Apesar da minha idade estar por volta de 12 anos nesse corpo de criança, ela está com 14 anos nesse corpo quase de uma mulher adulta... o sistema numérico desse mundo é um pouco defeituoso, não?
Ah, de qualquer forma, sentir o cheiro da comida parece ter reativado meu olfato, e estou com um odor inaceitável.
Como eu... logo eu, poderia estar nessa situação? Bom, vamos tomar um banho, né? Fazer o quê? Um problema a menos para resolver agora.