Volume 1

Capítulo 23: O Começo de uma Grande Mentira

O ambiente ao redor está impregnado de um ar de abandono. Há várias casas decrépitas e ruínas espalhadas pela área. A favela que vimos antes era cheia de vida e agitação, mas aqui é exatamente o oposto. Não há sinais de vida, nem mesmo para os que procuram desesperadamente um teto.

Embora estejamos em um lugar elevado em relação à cidade, há outros pontos mais altos situados ao longo da montanha. E, ao observar daqui, temos todo o panorama impressionante da cidade diante de nossos olhos:

Mais abaixo, as casas formam uma selva de pedra que se estende por vários quilômetros. A cidade em si termina em outra muralha, e além dela, há algo que se assemelha a um deserto.

A cidade é praticamente desprovida de verde, com apenas algumas árvores solitárias pontuando o horizonte entre as casas e seus espaços curiosamente vazios. No coração da cidade, uma imponente estrutura em forma de torre se ergue, cercada por muros altos em pelo menos duas camadas. Se não for o "castelo" do rei ou o centro da cidade, fico me perguntando o que seria.

É incrível poder ver tudo com tantos detalhes e de tão longe.

As garotas parecem compartilhar o mesmo sentimento de estranheza e admiração. Será que elas são capazes de ver o que eu vejo?

Enquanto caminhamos, acompanhamos os últimos raios de luz desaparecendo atrás da montanha. Por causa disso, a cidade está sendo engolida pelas sombras crescentes do pôr do sol. E, ao olhar para o céu, vejo um tom de azul profundo, anunciando a iminente chegada da noite.

Fico pensando se aquelas nuvens densas e pesadas no horizonte seriam um presságio de uma noite chuvosa.

É fascinante que, neste mundo, mesmo ainda no final da tarde, o céu “noturno” brilhe com tanta intensidade. Embora aquele planeta "Saturno" esteja pairando no horizonte, o céu se assemelha a uma obra de arte, um quadro pintado com inúmeras cores vibrantes e iluminação intensa.

Será essa a magia de uma cidade sem poluição e excesso de luzes?

Agora que penso nisso, por que há tanta escuridão? Existem pouquíssimas ruas iluminadas, assim como as casas. Talvez, neste mundo, a noite e a escuridão sejam perigosas o suficiente para que, quando a noite cai, ninguém mais ouse sair de casa, de sua segurança.

Nunca poderia imaginar uma cena como essa em Tóquio. De qualquer forma, vamos seguir em frente.

Depois de descer a escada e passar por becos e vielas apertadas, chegamos a uma das principais ruas. Aqui, a cidade mostra um cuidado e sofisticação bem diferente do que vimos antes. As casas e lojas têm uma arquitetura mais refinada, são mais espaçadas e feitas com materiais de melhor qualidade.

Além disso, as pessoas não estão tão amontoadas.

Um detalhe que chama a atenção é a quase ausência de inumanos por aqui. Ainda vejo alguns não-humanos de vez em quando, mas a diferença entre os bairros é enorme. O horário pode influenciar, no entanto, acho que não é só isso.

Será que eles – os administradores dessa região – teriam levado todos os não-humanos para as favelas? Levando em conta o incidente com a guarda e os comerciantes locais, isso é bem provável.

Caminhamos pela rua e, em poucos minutos, Sheyla segurou minhas mãos, me surpreendendo. O que está acontecendo? Mesmo no corpo de uma criança, ela está me tratando de forma tão... constrangedora.

Antes que eu pudesse reagir, percebi os olhares curiosos das pessoas ao nosso redor.

A situação aqui não é diferente da que ocorreu no Posto da Fronteira. Rapidamente, ajustei meu capuz e abaixei o rosto, tentando evitar mais atenção indesejada.

— Sinto que estão me encarando... — sussurrei.

— Pode ficar tranquila, Yami... — Sheyla me olhou e sorriu. — Não precisa se preocupar, estou com você.

Errr... obrigado?

Ninx, percebendo os olhares curiosos, fez um gesto de desaprovação antes de encarar as pessoas de volta. Era como se fosse uma mãe-gata rosnando de raiva contra estranhos que se aproximavam de seus filhotes. Essa reação, apesar de afastar os olhares, também poderia ser usada contra nós.

Porra, Ninx, saiba como agir nessas horas!

Meril suspirou e observou Sheyla da cabeça aos pés. Depois de pensar um pouco, ela comentou:

— Levando em conta essa armadura chamativa e nossa situação... Acho que não é só você que está chamando a atenção, Yami.

— Realmente, não estamos nas melhores condições aqui, ?

Tirando a Ninx, Sheyla e Meril estão vestidas como aventureiras, ou seja, personagens diferentes dos cidadãos comuns de uma cidade ou vila. E lá está eu, como uma “escrava” vestindo trapos velhos e Ninx, como uma pobre andando no meio de um bairro rico. Verdadeiramente um grupo feito para chamar atenção.

— Preciso trocar essas roupas o quanto antes — lamentou Meril puxando parte do tecido. — E, também preciso de um banho urgente.

— Só mais um pouco, gatinha suja! — brincou Ninx.

Sheyla segurou minhas mãos com mais firmeza e apontou para o fim da rua.

— Se seguirmos por essa rua principal, chegaremos ao Distrito Central. — Ela olhou para as outras antes de continuar: — Aí poderemos ir para minha casa, Yami.

— Tudo bem...

— De qualquer forma...

Antes que Sheyla pudesse continuar, tanto o Sistema quanto as garotas indicaram algo que nos fez parar. Suas palavras tinham sido interrompidas pela aparição de outra Cavaleira de Lóthus...

Quem é essa? Usei meu [Analisar] e...

Wow, ela é tão poderosa! Se colocarmos Sheyla lado-a-lado, talvez ela seja mais forte que Sheyla. Ainda assim, junto com ela há três guardas tão fortes quanto. Mesmo que tenha chegado repentinamente, traz consigo um ar de autoridade.

Essa cavaleira se chama Emília.

Ah, olha só, é a Sheyla! Que surpresa te encontrar por aqui... — exclamou Emília ao se aproximar. Antes disso, ela sinalizou com as mãos para que os outros guardas se afastassem.

— Emília! — disse Sheyla, um pouco desconfortável.

— Pensei que estava em uma missão importante, e não passeando... — ela olhou de canto para os arredores e, depois de um momento, complementou com um tom depreciativo: — ...em lugares como este.

Sheyla me colocou atrás dela, quase me protegendo de um "predador", e deu um sorriso sem graça.

— Não precisa se preocupar. Estou indo para o Alto-Comando agora mesmo para relatar a situação.

Emília encarou Sheyla por um momento e depois voltou a atenção para mim, chegando a se inclinar levemente. No entanto, Sheyla percebeu e se moveu sutilmente para ficar entre nós e o campo de visão de Emília.

— Entendi... — Emília voltou à postura normal. — Quer dizer que a missão foi bem-sucedida?

— Isso é... posso dizer que trago informações úteis para o Alto-Comando.

Emília apenas concordou com a cabeça e apontou para mim, atrás de Sheyla:

— E então, quem é essa criança com você?

Sheyla pensou um pouco no que iria dizer e ainda tentou me proteger de Emília. Depois disso, deu um sorriso meigo – mas eu pude perceber na hora o quão falso era. O que você vai dizer agora, Sheyla? Apesar de termos discutido isso por algumas horas, nunca deixamos claro como agir se uma situação assim realmente acontecesse.

É como aqueles diversos manuais de conduta esperada pelos funcionários de uma empresa. Só que, quem realmente lê e leva isso em consideração para agir?

— Ela... é... — Sheyla começou a se atrapalhar. — É uma criança perdida que encontrei durante a missão.

— Quê? Uma criança?

Realmente, “quê?!”, que história é essa de criança perdida, Sheyla... quero dizer, eu sei que sou uma criança, mas...

— Estou cuidando dela até encontrarmos sua família — complementou Sheyla.

— Espere... Sheyla... — Emília ficou chocada.

— Quero dizer, estou levando-a para o Orfanato de Hyrelin.

Caralho, Sheyla. Decida-se primeiro como você vai mentir antes de sair incluindo milhares de fragmentos aleatórios.

Emília estava surpresa pela resposta, e quem não ficaria? Como alguém em sã consciência acreditaria em uma história dessa? Não faz nem sentido.

Oh... parece que tem uma pessoa assim aqui:

— Entendi. Se é assim, não precisa se preocupar. Sua missão é mais importante — Emília deu alguns passos para frente. — Permita-me levá-la no seu lugar. Afinal, a Comandante dos Cavaleiros precisa reportar o fim da sua missão.

Sheyla deu os mesmos passos para trás, me empurrando junto.

— Não é necessário.

— Não seja tão...

— Não é necessário! — Sheyla elevou a voz, quase gritando, mas logo se corrigiu: — Você não deve se preocupar com isso, Emília. Afinal, o Orfanato está no caminho para a Ordem.

— Sheyla... — Emília se afastou e voltou à posição autoritária de antes. — Eu entendo que você gosta tanto dessas crianças, ainda assim, você deveria saber seu...

Meril deu alguns passos para frente e comentou:

— Sheyla prometeu levá-la pessoalmente, por isso que... — Emília a interrompeu tão secamente que até eu fiquei surpreso.

— Me desculpe... — ela lançou um olhar ameaçador para Meril. — Quem é você mesmo?

Oh, sinto muito por interromper a conversa de vocês... me chamo...

— Como eu estava falando, Sheyla — Emília simplesmente ignorou Meril e a interrompeu novamente. — Como comandante dos cavaleiros, você precisa dar prioridade às suas ações. E, considerando o tempo que você levou para voltar...

Pude ver Meril se contorcer de raiva, porém, ela apenas deu um leve sorriso e se afastou. Sheyla, vendo aquilo, apenas fez um sinal com as mãos tentando chamar a atenção para si enquanto rapidamente pedia desculpas:

— Sinto muito, Emília. Acredito que, por falta de experiência, minhas ações não estão condizentes com meu título, mas levarei esse aviso com grande importância e corrigirei minhas ações.

Emília a encarou por mais um tempo e depois deu uma leve olhada em Meril e Ninx. Em seguida, ela soltou um sorriso ameaçador e fez um sinal de reverência:

— Entendi. Bem, deixarei você com esses assuntos. Devo me retirar agora. Diferente de alguns, eu prezo pela segurança desse lugar e sei o que devo priorizar. Até mais, Comandante, estou ansiosa para ouvir sobre sua missão mais tarde.

Emília voltou a fazer sua saudação forçada e se afastou. Assim que ela passou próximo dos outros guardas, todos a seguiram sem fazer qualquer tipo de sinal ou comentário.

Parece que, assim como Sheyla disse antes, seu título de Comandante é apenas algo "no papel", já que tanto Emília quanto os outros guardas não a respeitam como líder. Entretanto, que alívio a conversa ter terminado dessa forma...

Espere um momento, não! Como assim agora virei órfã?

Assim que o perigo iminente terminou, esperei Sheyla se virar para mim e a encarei seriamente. Ela, me vendo, disfarçou olhando para o lado.

— Então, Sheyla... o que foi tudo isso? — perguntei.

Sheyla se sentiu um pouco envergonhada com a situação e suspirou antes de me responder:

— Desculpe, Yami. Eu não estava esperando encontrar aquela pessoa... não aqui e agora. Por causa disso acabei me atrapalhando toda. Emília não é uma pessoa fácil de lidar e certamente causaria problemas se desconfiasse de algo. Por isso acabei inventando a história da criança órfã.

— Não sei se isso é uma história tão fácil de se acreditar, mas, pelo jeito funcionou — suspirei. — Então, você realmente a conhece?

— Sim... pode-se dizer que temos uma “amizade”...

Meril e Ninx se aproximaram.

— Amizade? Que bela amizade, hein — disse Ninx de maneira sarcástica.

— Pelo jeito que ela estava falando e aqueles olhares cheios de sangue... pensei que ela e seus guardas iriam nos atacar a qualquer momento. Mesmo sem sacar suas armas, suas intenções eram claramente assassinas — comentou Meril.

— Ela também é da ordem, certo? — perguntei. — Apesar de não estar vestida com uma armadura tão chamativa, dá para dizer que tinha sua própria forma de chamar atenção.

— Sim... ela também é uma Cavaleira de Lóthus.

— E aqueles guardas?

— Eles são o que chamamos de Guardas da Coroa... é uma espécie de guarda de elite.

Ainda não entendo muito sobre títulos, mas aqueles guardas são tão poderosos quanto elas e as outras aventureiras. Ou seja, aquele fracote do Juulis poderia ser chamado de guarda?

— E por que guardas como aqueles estariam andando por aí, assim?

— Bem... Como posso dizer isso... por causa da Emília.

Oh, aquela mulher também tem seus “podres”? — perguntou Ninx.

— Ela é conhecida por ser uma Cavaleira ambiciosa. Além de suas habilidades, também possui muitas características que alguns diriam ser... de uma manipuladora. Ela gosta de fazer favores para os nobres... e estes retribuem com suas próprias “moedas de troca” — explicou Sheyla.

— Ou seja, ela provavelmente vai fazer um desses favores agora? De noite?

— Qual seria o melhor horário senão à noite, Yami? — argumentou Ninx.

— Depende do que estamos nos referindo...

— De qualquer forma, Sheyla... — Ninx cruzou os braços e se virou para Sheyla. — Pelo que sei, aquela não era “A” candidata à comandante?

— Sim... você está certa.

Eita, como assim? Isso significa que Sheyla tomou o cargo dela? Talvez isso explique o porquê de ela ser tão séria e ameaçadora com suas palavras.

— Aquela mulher é alguém com quem precisamos ter muito cuidado. Afinal, ela tem conexões poderosas e quem sabe o que ela poderá fazer com suas influências — afirmou Ninx.

— Não precisa levar para esse lado... — Sheyla tentou argumentar. — Ela é apenas uma mulher... determinada.

— Determinada? Não sei se foi essa a primeira impressão que eu tive de sua “amiga” — respondi ajustando meu capuz.

— Apesar de ter chamado de amiga, está mais para tutora.

— Como assim?

— Ela foi minha instrutora de treinamento durante um bom tempo, além disso, como posso dizer... Talvez ela tenha ficado com um pouco de raiva de mim... ou melhor, da minha família.

Oh, um verdadeiro babado... — comentou Ninx ironizando a situação.

— Por que ela manteria essa raiva?

Sheyla respirou profundamente e depois olhou para o alto, como se quisesse encontrar as palavras certas observando o céu estrelado.

— Minha família possui alguns privilégios...

— Privilégios? E quais seriam esses privilégios para fazê-la tão nervosa a ponto de querer “ajudá-la”? — Desde sempre Sheyla mostrou-se mais que uma simples aventureira, e agora ela realmente é algum tipo de nobre?

Oh, não, será que até mesmo um linho-dourado pode ter problemas? — comentou Ninx outra vez, com tom de deboche.

— Já basta, Ninx... guarde seus comentários para si — repreendi Ninx.

— Desculpe, Yami, quem falou... — fez o sinal de “fechando a boca” — não está mais aqui.

— É assim que você chama os ricos esnobes, certo? É, talvez seja mesmo. Apesar de Emília ser minha instrutora, ela tem quase a mesma idade, e por isso também estava concorrendo para o cargo de Comandante... No fim, eu me tornei Comandante.

— Ou seja, ela está ressentida pela escolha do Comandante?

— Sim.

— No entanto, ela é melhor que você?

— Não sei dizer... depois que foi decidido, nunca mais treinamos ou tivemos algum tipo de duelo. De qualquer forma, suas habilidades eram refinadas o suficiente para chamar atenção do Alto-Comando da Ordem. E isso foi um dos motivos de a colocarem como minha tutora.

Ainda que ela tenha dito isso, se considerarmos seus valores numéricos e habilidades, Sheyla, tenho uma péssima notícia para você...

— Tão boa assim? — perguntou Meril.

— Sim.

— E por que ela não foi escolhida? — perguntei tentando ganhar mais detalhes.

— Sendo eu, fazendo parte da minha família, e Emília, filha de uma família secundária, o Alto-Comando me escolheu.

Ah, entendi... — o que posso falar para ela? Eu sempre odiei as pessoas que conquistaram coisas sem esforço algum. Mas se eu falar isso agora, só me tornaria um babaca. — De qualquer forma, Sheyla, seja a missão que você escolheu, seja o que você está fazendo agora e disposta a sacrificar, para mim você está fazendo um ótimo trabalho.

— Obrigada.

— Só que ser derrotada por goblins, não é um ponto positivo, — disse Ninx do outro lado, com um sorriso de canto de boca.

— Ninx! — gritei com ela, com um olhar reprovador.

Desculpinha! — ela se encolheu, percebendo que sua observação não havia sido apropriada.

— Bem, não sei o que aconteceu para eu acordar naquela caverna... Eu preciso ter certeza do que aconteceu.

— Nós temos nossos próprios motivos, certo? — Meril comentou e vendo que Sheyla ainda estava cabisbaixa, complementou: — Mesmo assim, agora é a hora de recomeçarmos... com a Yami!

Sheyla deu um leve sorriso e acenou positivamente.

Ei, ei... Nosso bate-papo até pode estar legal... — segurei a mão de Sheyla. — Porém, e agora?

Ela olhou para baixo, para minha direção e olhou para a mesma direção que tinha apontado antes do encontro com Emília.

Ah, sim... iremos pelo Distrito Central...

Fiz um sinal negativo, e ela não entendeu. Depois disso, suspirei e perguntei:

— E sobre o orfanato?

— Isso? Bem, me desculpe outra vez, Yami — fez um sinal de desculpas.

— Não é isso... O orfanato, onde fica esse lugar?

— Como? — perguntou confusa.

— Você não disse que fica no caminho? Conte-me mais sobre ele...

Ah... Sim. O Orfanato de Hyrelin, é um dos orfanatos principais da Cidade da Fronteira e aquele destinado a ajudar as crianças que são abandonadas ou ficam órfãs dos seus pais.

— Eu sei o que é um orfanato, Sheyla. De qualquer forma, por que Emília aceitou essa história tão fácil?

— Sinto muito... Então, minha família é uma daquelas que ajudam o orfanato. Pode-se dizer que eu os fiz ajudar. Mesmo tendo esses rumores — Sheyla olhou feio para Meril. — Eu realmente desejo ajudar essas crianças a ter um lugar na sociedade. Então, às vezes pessoalmente eu vou para lá e levo algumas coisas para as crianças.

— Entendi... então Emília já sabe sobre esse “seu lado”...

— “Meu lado”? Hmmm... talvez.

Pelo jeito recebi algumas informações críticas de última hora. De um lado, poderia me manter como escrava direta da Sheyla e estaria em sua casa... Mas, sendo ela uma figurona dessa cidade, não chamar atenção seria impossível. Por outro lado, posso me passar por uma órfã e ficar nesse orfanato... Será que assim as coisas ficariam mais fáceis?

Dei alguns passos ficando na frente das três. Cruzei meus braços e perguntei:

— Entre ser uma escrava e ser uma órfã, qual seria a melhor opção?

— Quê!? — exclamou todas, surpresas com minha pergunta.

— Qual a surpresa de vocês... se é para mentir, que seja uma mentira crível, não? Além disso, se Emília é tão famosa e influente nessa cidade, seria melhor mantermos a história que Sheyla disse para ela.

— Mas e o contrato de escravidão... e a coleira? — perguntou Sheyla confusa.

— Bem, tem isso, ... — tentei puxar a coleira um pouco, em vão.

— Acho que não terás problemas, Yami — afirmou Meril.

Oh, me explique...

— Existem vários tipos de contratos de escravidão, há aqueles que passam para outros durante a morte do atual proprietário e alguns, esses mais raros, que permanecem até que alguma condição ou tempo seja concluída. Qualquer um desses pode nos servir.

Fiz um sinal positivo com a cabeça e comecei a gesticular – mesmo com aquela capa e os trapos velhos.

— Bem, vamos considerar isso: se Emília realmente acredita que sou uma órfã e Sheyla está ajudando o orfanato, ela não deve dar muita atenção a essa situação. No entanto, ainda teria os outros, o que vocês acham?

— Eu acredito que a maioria das pessoas não vai se importar com isso, desde que não façamos algo escandaloso ou que chame muita atenção.

Hmmm, faz sentido — concordei. Só que tem outro detalhe: — E o orfanato aceitaria que uma estranha aparecesse do nada, ainda mais uma meio-demônio com coleira de escravidão?

— Não se preocupe com isso, Yami. — Sheyla recobrou seu entusiasmo. — Eu conheço os responsáveis de lá. Acredito que se eu explicar a situação, não haveria problemas — revendo o que ela mesmo disse, corrigiu-se: — Quero dizer, considerando o que acabamos de discutir.

— Ainda que não precisemos nos aprofundar em tantos detalhes – disse Meril – Vamos precisar ao menos uma pequena base. Como todas estamos envolvidas, é melhor que mantenhamos as versões iguais.

Meril está certa, não podemos considerar os outros sejam como Juulis o “fã que aceita qualquer coisa” ou a Emília, “aquela que odeia e ignora tudo que Sheyla ama”.

Tomei a liderança da discussão outra vez:

— Façamos assim... Vocês foram investigar a Floresta de Erthemon e por causa da sua missão, chegaram no que parecia um pequeno vilarejo onde viviam alguns humanos e meio-demônios. No entanto, o vilarejo foi atacado por uma criatura e todos do vilarejo foram massacrados... sobrando apenas eu... fim.

— Nossa! — exclamou Sheyla.

— Qual foi, por que essa reação exagerada?

— Não, me desculpe... é que... — Sheyla iria continuar, mas, algo a fez mudar de ideia: — Certo, Yami... tudo bem. Então, você prefere que eu te leve para o orfanato?

— Algum problema?

— Não.

— Então, sim. Será melhor dessa forma.

Meril fez um sinal e eu apenas a encarei.

— Yami, eu preciso ir para esse lado... Neste caso, o que faremos?

— Bem, não sei quanto tempo ficaremos nessa cidade, porém, levando em consideração a missão de cada uma... Vocês conseguiriam se encontrar facilmente depois? Ou melhor, conseguem arranjar alguma maneira de se comunicar?

— Não que isso seja um problema... — Meril pensou em algo e com um leve sorriso, continuou: — Já sei como..., mas preciso preparar algumas coisas antes. Então, vocês, Sheyla e Ninx, podemos nos encontrar aqui pelo menos no final da tarde, amanhã?

— Aqui?

Errr... aqui é meio estranho, talvez na Praça Central, aquela próxima da Torre.

Ah, a torre que eu vi antes? Deve ser, pelo menos, era a única torre.

— Tudo bem... Nos encontraremos na Praça Central. E, Yami... eu posso vir te buscar no orfanato antes disso — comentou Sheyla.

— Gostaria que você não usasse esse termo, afinal não sou um bebê.

— Me desculpe.

As outras duas riram da situação e começaram a se movimentar para lados opostos. Afinal, estávamos em um cruzamento para todas as quatro direções.

— Então, é aqui que nos separamos. Até mais — confirmou Ninx.

— Até mais, Yami — despediu Meril.

Restaram apenas eu e Sheyla. Ela me encarou com um sorriso gentil, fazendo um gesto para que continuássemos nosso caminho. Assenti e seguimos andando juntas.

Agora que estávamos apenas nós duas, o ambiente parecia ter ganhado um aspecto diferente. O espetáculo noturno sob o céu estrelado se completou com as ruas de pedras, ladeadas por casas de dois andares construídas com madeiras e pedras, telhados pontiagudos e janelas com sacadas repletas de flores e plantas.

Com apenas algumas casas iluminadas por velas, a escuridão que envolve o lugar é ao mesmo tempo misteriosa e assustadora. Pelo menos, a rua principal tem alguns postes iluminados por estranhas tochas metálicas, possivelmente a gás. Apesar desse elemento incomum, todo o restante do local parecia ter uma tecnologia bastante arcaica, remetendo a algo realmente "medieval".

No horizonte, a torre que vimos antes se ergue imponente. Seu topo se perde no céu, misturando-se ao brilho das estrelas. O tal "Saturno" brilha tanto que, por um momento, poderia até ser confundido com a "lua" desse Novo Mundo. Que estranho, certo? Pois ainda podemos ver a “lua”, ou melhor, as duas “luas” no céu.

Embora houvesse bem menos pessoas agora, continuei caminhando com o capuz abaixado sobre meus olhos, ainda assim, sempre que possível, observei os arredores. Por causa do [Diário], sei que anotações serão colocadas lá de maneira automática. Quem imaginaria que teria uma experiência como essa?

Sheyla segurou minhas mãos quando atravessamos de um "distrito" para outro e, novamente, senti-me desconfortável, mesmo assim, acabei cedendo à situação.

De repente começamos a enfrentar uma ventania cortante que, mesmo através das minhas vestes, alcançava a pele.

Me pergunto se Sheyla também sente este frio, já que está usando essa armadura chamativa. Poucas pessoas passavam por nós, curiosas sobre nossa presença, mas apressadas para seguir seus próprios caminhos devido ao frio.

Sheyla sorriu e começou a balançar nossas mãos. Sério que ela vai ficar me tratando como uma criancinha? E por que está sorrindo agora?

— O que te deixou tão feliz? — perguntei.

— Obrigada, Yami.

— Hã? Por que está me agradecendo assim, do nada?

— Quero dizer... você poderia simplesmente desistir de tudo, não é? Notei que você estava preocupada com a situação, mesmo assim, apenas aceitou pacientemente.

Ela vai continuar balançando nossas mãos, ?

Ah, qual é, mesmo que eu tenha exagerado um pouco com aqueles bandidos, você sabe... Não sou um monstro.

— Sim... sim... mesmo assim, obrigada.

— Sheyla, eu sei que todos nós temos nossas próprias histórias e segredos... mas estou aqui caso você queira conversar sobre eles. Eu sei que disse não me importar tanto...

— Lá vem você sendo uma mulher adulta — brincou Sheyla.

— É assim que você me vê?

— Não... quero dizer, te vejo como uma criança mais madura que as outras. Apesar que às vezes você não se parece nada com uma criança.

É, ? Por que será?

— Entendo... bem, estou aqui porque decidi, então é o mínimo que posso fazer, tentar entender a situação...

E foi assim que Sheyla e eu – a nova criança órfã e escrava – começamos a caminhar em direção à minha nova "casa" até que tudo se resolvesse.

Desde que acordei nesse mundo, estou apenas me deixando levar pela situação, e até entendo isso, no entanto, antes que eu possa realmente começar a fazer a diferença, quero ao menos compreender um pouco desse Novo Mundo.

Talvez, no Orfanato, as "madres" ou quem quer que cuide do lugar tenham acesso a uma base de informações. E se esse caminho falhar, posso continuar seguindo a rota da "escrava". O que me espera agora?



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