Volume 1
Capítulo 21: A Fronteira da Cidade — Parte 2
Juulis então comentou que era a hora de verificar a escrava da Sheyla, ou seja, eu.
Ele fez um sinal com a cabeça para que me aproximasse, mas como eu estou no corpo de uma criança, a mesa está muito alta para eu alcançar. Então, para minha surpresa, Sheyla me levantou e me colocou em seu colo.
Juulis franziu a testa quando Sheyla me levantou. Não pude deixar de me sentir constrangido ao estar sendo carregado como um bebê. Olhei brevemente para Sheyla com um olhar que tentava transmitir "o que diabos você está fazendo?", no entanto, ela simplesmente sorriu de volta. Percebi que ela não fez por mal e respirei fundo.
Agora no nível da mesa, estendi meu braço e Juulis aproximou a Esfera de Contrato, mostrando os mesmos símbolos estranhos de antes.
Sistema: [Tradução Mágica Ativada].
Conseguiu traduzir esses símbolos, porém, as informações mostradas eram básicas e não tão detalhadas quanto as janelas de análise ou status que eu estou acostumado a ver.
Juulis não parecia preocupado.
Fiquei aliviado por minha capacidade de ocultar informações está funcionando.
— Com isso, confirmo que essa escrava é sua, Sheyla — afirmou Juulis colocando novamente a esfera de lado e de baixo da mesa retirou uma coleira. — Qual o nome dela?
— Isso? É... errr... Yami.
— Yami? Que nome fofinho.
Ei, espera aí! Que porra é essa? Yami é apenas uma abreviação para que fosse fácil vocês me chamarem pelo nome, além disso, fiz dessa maneira porque os nomes dos goblins eram ridiculamente curtos. Agora... se...
Juulis pegou uma coleira que parecia de cachorro e a colocou em volta do meu pescoço, ajustando-a com precisão. Eu me senti como um animalzinho, mas respirei fundo e tentei me acalmar.
Na coleira, pelo que percebi, meu nome foi escrito naquela língua estranha, ainda assim, escrito “Yami” na coleira. Não deu outra, com essa coleira, pareço um cachorro! E para piorar tudo isso, Sheyla começou a me fazer um cafuné – me virei para Sheyla com raiva.
“Pare com isso!” Tentei fazer com que minhas expressões e meu “pensamento” fossem o suficiente para que ela parasse.
Se eu tivesse uma aparência animalesca ou mesmo semelhante àquele tal meio-cachorro, até poderia entender, no entanto, estou no corpo de uma garotinha “humana”, logo não importa como eu veja isso, não é normal.
Sheyla me colocou no chão e agradeceu Juulis.
— Ah, que nada. Foi uma honra te encontrar, minha senhora. Por favor, não hesite em me chamar caso precise de algo.
— Agradeço. Agora, vou chamar minhas companheiras para passarem pela análise e podermos entrar na cidade.
Enquanto andávamos juntos, Juulis parecia estar um pouco bobo e sorridente, preparando as papeladas para as outras duas. O sujeito realmente está animado com toda aquela burocracia, como se aquele fosse o ponto alto do seu dia. Talvez a vida na cidade fosse tão monótona que os documentos eram a única coisa emocionante que lhe restava?
Quando saímos do prédio, procurei pelas garotas. Depois de vê-las, fiquei surpreso pela distância que tomaram. Elas estão bem longe, e digo novamente, BEM LONGE, era necessário se afastar tanto assim?
De qualquer forma, assim que nos notaram, se aproximaram normalmente.
Enquanto elas caminhavam em nossa direção, olhei para Sheyla e a encarei por um momento. Ela tentou disfarçar olhando para os lados.
— Sheyla, o que foi tudo aquilo?
— Me desculpe, Yami, não queria te ofender.
— Eu entendi, e como chegou a este ponto?
Sheyla deu mais uma vez aquele sorriso sincero. O que há com isso? Por acaso está tentando me abalar com essa “fofura” toda?
— Yami... sei que pode parecer infantil da minha parte... é que eu gosto muito de crianças — Ela se ajoelhou e ficou na minha frente — e não importa como eu olho para você, até mesmo antes desta versão, você parece ser muito uma criança para mim. Consegue entender?
— Talvez... um pouco — Que merda é essa, ela é outra onde preciso ficar atento por causa de seus gostos e jeitos duvidosos? — De qualquer forma... e essa coleira?
A coleira é literalmente uma coleira de cachorro feita de tiras de couro. Só faltou o pingente de ossinho. Que ódio! E essa merda é bem justa, fazendo com que meus movimentos sejam limitados.
— Eu tinha me esquecido disso. Escravos normalmente usam coleiras para que sejam logo percebidos como escravos, mas, no pescoço normalmente é usado por inumanos.
— Então foi isso, você só esqueceu desse pequenino detalhe?
— Não é bem isso, Yami, é que...
Meril e Ninx se aproximaram.
— Oh, que gracinha, Yami, você está tão bonita com essa coleira — comentou Meril.
— ..., o quê?! — perguntei surpreso.
— Ah, me desculpe, não quis dizer dessa forma.
Que caralhos?! Quase explodi agora. Por um momento já mandaria Meril e Sheyla irem buscar a “salvação” quando consegui me acalmar rapidamente. E depois de um longo suspiro, comecei:
— Por favor... não me faça essas comparações, eu não sou um animal — disse de maneira “calma”, porém, claramente ameaçadora para Meril.
— Sinto muito, sinto muito! Isso não irá se repetir.
— Todas da família Armani possuem essas peculiaridades bizarras? — perguntou Ninx de maneira debochada.
Mesmo Ninx falando isso, não era ela que abandonava seus companheiros para serem emboscados pelas criaturas? Sua personalidade é tão bizarra quanto a de Meril e isso só me faz questionar o porquê de estar andando com elas...
— Bem, garotas, como podem ver, eu passei na avaliação de escravidão e recebi esse presente comigo. Espero, solenemente, que vocês apenas ignorem que estou usando essa coleira.
— Como desejar, Yami — afirmou Sheyla ao se ajustar para ficar em pé, do meu lado.
— Me desculpe novamente, Yami — lamentou-se Meril.
— Certo, Yami — disse Ninx.
— Bem, isso se resolvendo, agora precisamos que vocês façam a sua avaliação. Juulis está os esperando ansiosamente por isso.
Ninx veio para próximo de mim e se inclinou para frente.
— Yami, você tem um segundo?
— O que foi?
— Sabe, sobre o incidente de antes... gostaria de te falar algo.
— Que incidente?
— Sobre meu... antigo “grupo” de aventureiros.
Me afastei das outras duas junto com a Ninx para que pudéssemos conversar sozinhos.
— Certo, do que se trata?
— Ah... tipo...
— Vai ficar enrolando, agora?! Me explique para que eu possa entender a situação.
— Ok. Bem, como Meril disse, os aventureiros poderiam me chamar de Rapineira. É um termo pejorativo, mas que se encaixaria perfeitamente em mim. Como Rapineira, eu costumava entrar em grupos de aventureiros como batedora ou exploradora principal e os guiava para dentro da floresta...
— Continue...
— Se eles eram fracos, eu... como posso dizer isso... não me importava muito em ajudá-los, sabe? — ela sentiu meu olhar de reprovação, mesmo assim continuou: — E isso aconteceu com o último grupo, no entanto, acho que eles já sabiam dos meus planos.
— Oh? E o que aconteceu?
— Bem, eles me acertaram com um dardo paralisante e... acabei sendo traída pelo grupo que iria trair? — ela fez um sinal de deboche como se quisesse contar algo engraçado, no entanto, eu apenas me mantive sério. — Quando acordei, estava naquela caverna com os goblins.
— Ou seja, você sofreu o mesmo golpe que aplicava?
— Sim... Então, provavelmente eles me relataram como Desertora Caótica, e se... eu fizer a análise no posto da guarda, como posso dizer isso, talvez eu seja uma procurada?
— Então você é procurada nesta cidade? Por que você não me disse isso antes? Aliás, por que vocês estão esperando até agora para me contar informações TÃO IMPORTANTES? — gritei, sentindo a raiva subindo em mim novamente.
— Desculpe, Yami, eu não queria te preocupar com isso.
— Não queria me preocupar?! Você sabe que estamos entrando em uma cidade desconhecida, com leis e ordens diferentes, e você não acha que isso é importante? — falei, tentando controlar minha voz para não gritar novamente.
Alguns poucos trabalhadores e outros civis que estavam próximos ficaram surpresos pela minha reação, mas, depois que me acalmei, só continuaram mantendo o contato visual. Agora, de uma forma ainda mais curiosa.
Preciso ter cuidado para não chamar mais atenção desnecessária.
— Eu sinto muito, Yami. Eu pensei que seria melhor se eu não te contasse, para não te colocar em risco.
— E você acha que esconder informações de mim é a melhor maneira de me proteger? — suspirei, tentando acalmar meu tom de voz. — E então, o que você pretende fazer? Ficar aqui fora?
— Sim, acho que seria a melhor opção.
— Mesmo depois que a Sheyla comentou com aquele guarda que você faz parte do grupo dela?
— É... bem, aquilo foi inesperado.
Eu e Ninx estávamos afastados das outras enquanto conseguia vê-las discutindo sobre algo, e lá está eu aqui, também segurando uma boa e quente “batata-quente”. Suspirei e encarei Ninx outra vez.
— Não tem jeito, vamos ter que ver se você está sendo procurada, antes de tudo. Acha que Sheyla conseguiria ver se há algum rumor ou algum boato sobre isso? Se você crê que eles te colocaram como desertor, talvez esteja avisado em algum lugar?
— Talvez sim... — Ninx respondeu e logo depois mordeu o lábio inferior, claramente preocupada com essa possibilidade.
— E pensar que você seria roubada da mesma forma... — a encarei de cima para baixo — Analisando melhor a situação, isso explicaria como você está dessa forma, apenas usando roupas comuns de civil.
— É... Eles levaram tudo que eu tinha de valor, fiquei apenas com as roupas do corpo. — Ninx soltou um longo suspiro com os ombros caídos em derrota. E depois de dar uma olhada para si mesma, seus olhos se arregalaram e ela deu um salto em minha direção. — É isso, Yami, entendi o que você quis dizer!
— “Entender”? Entender o quê?
— Sim! Aqueles filhos da puta, eles realmente me roubaram! — disse Ninx, com o rosto contorcido pela raiva.
Essa garota... ela gosta de se expressar “intensamente”, né?
— Foi isso que te disse, não? E por que está tão puta se você iria fazer o mesmo?
— Sim... sim, quero dizer, se eles me roubaram, eles não podem me declarar como Desertor.
— Quê?! Que tipo de lógica é essa?
— A chance é baixa, mas podemos apostar nisso.
Ninx está bem animada agora, seus olhos brilhando com determinação e esperança.
— Por favor, Ninx, explique-se melhor — essa garota está além das minhas capacidades básicas, não há como imaginar o que ela está pensando.
— Desertores Caóticos são, como posso falar, a pária dos Aventureiros, alguns os veem como bandidos, no entanto, quando você é declarado como desertor, todas suas posses são de direito da Guilda de Aventureiros mesmo se o desertor for “derrotado” pelos aventureiros ou morrer por qualquer motivo.
— E? O que isso tem a ver com sua situação?
— Não gosto de ficar me gabando, só que eu tenho ótimos equipamentos.
— Você quer dizer, “tinha” ótimos equipamentos.
— Sim. De qualquer forma, se eles ficaram de olho no meu equipamento, certamente gostariam de tê-los, por isso me deixaram como “morta” ou desaparecida.
— E o que impediriam que eles apenas te matassem e pegassem o equipamento? Não seria muito mais fácil do que criar toda essa história insana?
— Quando você mata outro aventureiro, você é marcado permanentemente no seu cartão de aventureiro, e passará por um julgamento para verificar os motivos e circunstâncias. Se for julgado como assassino, você pode ficar preso, pagar uma multa altíssima ou até mesmo ser enviado à forca.
— Isso não vale para você também?
— Bem, diferente de um Desertor, você se tornaria um Assassino de Aventureiros, né.
— Isso significa que... você não matou ninguém então, certo?
— Sim! Não sou uma assassina. — Ninx parou um momento antes de continuar: — Quero dizer, que fique bem claro, eu nunca matei ninguém, mas... sabe como é, fugir de um lugar de alto nível e sem equipamentos, pode ter uma chance relativamente baixa de sobrevivência.
— Ninx... estou começando a me perguntar se foi uma boa ideia ter tirado você daquela caverna, por favor, não me faça ter arrependimentos dessa decisão.
— Desculpe, Yami... eu não sou como a princesinha perfeita ou a bruxa-negra. Eu tive que me virar com o que eu tinha e sabia para sobreviver.
— E isso lhe dá o direito de ser alguém tão lixo assim?
— Não sei...
— Tudo bem, não quero julgar teu passado, e eu já comentei que águas passadas não movem moinhos. Portanto, o que você fará agora?
— Irei passar pela análise, é claro. Como ainda tem uma pequena chance que eu seja marcada como desertora, eu fugirei para a floresta. Passar uma ou duas noites lá não será problema... ainda que bem chato.
— Sei que acabei de dizer que seu passado não faz diferença, mas saiba que se você me trouxer problemas, eu irei te punir.
— Sim, eu entendo. Não quero desapontá-la... ainda mais. Além disso, Yami, agora que você me deu esse osso, eu não vou largá-lo tão fácil. — Ninx me encarou, ou melhor, encarou a coleira. — Ah, me desculpe, não queria dizer isso.
— Sério...
— iiih, deixa-me ir o quanto antes, afinal temos que entrar na cidade antes que anoiteça.
Ninx saiu rapidamente em encontro com Meril. Sheyla, por outro lado, veio até minha direção.
— Alguma coisa aconteceu, Yami? — Sheyla se aproximou e depois encarou Ninx e Meril enquanto elas andavam em direção ao prédio da guarda. — E o que foi aquele grito de antes?
— Não se preocupe, apenas conversei com a Ninx... normalmente.
— “Normalmente”, né?
— De qualquer forma, agora só nos resta esperar as duas voltarem e poderemos entrar na cidade, certo?
— Sim.
— E depois, quando entrarmos, o que vai fazer primeiro? — Segurei a coleira e comecei a tentar afrouxá-la, nada, isso está bem justo no meu pescoço. — Maldita coleira... — resmunguei baixinho.
Sheyla, percebendo isso, fez uma expressão triste e lamentou novamente:
— Sinto muito por isso, Yami. Acabei esquecendo e agora veja como você está.
— Já disse para ignorar isso... E então, quais serão nossos próximos passos? — perguntei.
— Bem, se me permite dizer isso: eu gostaria de relatar aos meus superiores o que aconteceu.
— Como é?
— Ah! — ela começou a fazer gestos desajeitados com as mãos. — Não é isso! Nada que envolva você... quero dizer, não sobre o que discutimos. Sabe, eu faço parte de uma ordem, um grupo chamado Ordem de Lóthus.
— Sim, tenho ouvido esse nome várias vezes, e você mesma já mencionou isso. — E é claro, não posso deixá-la saber sobre o Sistema.
Falando nisso, não cheguei a ler no [Diário] o que seria essa ordem, mesmo que alguém ou algo “misterioso” tenha escrito coisas lá...
— E, Yami, eu estava em uma missão importante.
— Para enviar a própria comandante, e sem nenhum outro tipo de reforço, posso até entender o quão importante era...
— Hmmm? — Sheyla ficou repleta de dúvidas e pelo jeito não entendeu meus tons de sarcasmo.
— Esquece o que falei, continue.
Sheyla pareceu surpresa com minhas palavras e apenas assentiu, olhando para os portões da cidade.
— Não precisa se preocupar com isso, eu também sei o porquê. Até posso ter o título de comandante, mas a verdade é que o recebi há apenas alguns dias. Pode-se dizer que nem todo mundo me vê como uma comandante, sabe?
— ... — Isso é interessante, de várias maneiras. Porém, isso só significa que esse título não é tão poderoso quanto imaginei. — Entendo. E o que tem de importante nessa missão? E você estava fazendo parte daquele grupo... qual é o nome dele... do aventureiro...
— Frederick? Sim — confirmou Sheyla. Nós caminhamos até um pequeno banco feito de toras de madeira e nos sentamos. A partir dali, continuou: — Quando você me disse na caverna que eu tinha sido traída pelos meus companheiros, eu não acreditei.
— Me desculpe se isso lhe ofendeu. No entanto, é o mais lógico, né? Pelo que entendi, não há criaturas venenosas naquela área.
— Ainda assim... — Sheyla hesitou por um momento, também se manteve em silêncio. — Bem, pode ser — admitiu, finalmente.
Então, essa missão... do que se trata? Olhei para Sheyla.
— Fale sobre essa missão...
Sheyla ficou um pouco pensativa, mas logo começou:
— Sim... há já algum tempo rumores rondando pela cidade. Rumores sobre as criaturas. A princípio meus superiores e até mesmo os regentes da cidade ignoraram, pois era estranho a forma como eles estavam sendo espalhados.
— Como assim? Que rumores são esses e porque seriam estranhos?
— Os rumores afirmavam que mais adentro da floresta, uma criatura poderosa tinha surgido e estaria tramando contra a cidade. A qualquer momento, uma horda de monstros e demônios sairia da floresta para nos atacar.
— Bem, considerando que a partir da floresta é o Território Demoníaco, tudo bem acreditar nesses rumores, não?
Sheyla assentiu, ainda assim parecia preocupada.
— Até aí, tudo bem. O problema deste rumor é que ele começou simples e, a partir de cada aparição, ele se tornava cada vez mais sério e detalhado.
— Bem, considerando que a depender da curiosidade das pessoas, eles podem se espalhar e evoluir, não vejo problemas.
Sheyla concordou meio frustrada.
— Sim, só que para cada vez, detalhes específicos estavam sendo inseridos...
— “Específicos” em que sentido?
— No sentido de conter localizações e descrições detalhadas o suficiente para não ser mais um boato — explicou Sheyla.
— Vocês acreditavam que alguém estava fornecendo essas informações diretamente?
— Isso, Yami. Como você é inteligente — Sheyla já iria afagar meus cabelos, mas eu me afastei e ela deu um sorriso. — E somente aventureiros são permitidos sair e explorar a floresta. Então se alguém iniciou esse rumor...
— Provavelmente seria um Aventureiro, certo?
— Sim — Sheyla confirmou com um aceno e, em seguida, esticou as pernas como se estivesse alongando-as.
— E então, você decidiu averiguar e confirmar por conta própria?
— Não... não dessa forma. — Sheyla olhou novamente para os portões e me encarou diretamente nos olhos por alguns segundos. — Como eu era uma “comandante” novata, precisava ter algo para mostrar meu valor. Claro que eu sou boa em combate e até mesmo meus superiores sabem disso, no entanto, nunca tive nada que pudesse apresentar como uma conquista.
— Acho que agora estou começando a entender — falei.
Apesar de dizer isso, Sheyla continuou sua explicação:
— Além disso, não poderíamos mobilizar a guarda da cidade ou os Cavaleiros de Lóthus, pois isso seria dar crédito aos rumores e poderia causar caos, pânico e desinformação.
É uma boa maneira de evitar confusões, pelo jeito há gente que pensa no comando das elites nessa cidade.
— Mesmo assim, levar consigo um pequeno grupo de cavaleiros não seria suficiente?
— Sim, mas, pedi que formassem um grupo de aventureiros. Dessa forma, se eu conseguisse resolver a situação, poderia atribuir o sucesso à minha competência.
— E o grupo de aventureiros não iriam reclamar? — perguntei impressionado, afinal, Sheyla não é somente um “rostinho bonito”, parece ter sua própria ambição....
— Bem, fiz questão de assumir a liderança do grupo.
— Não sei se você é muito ingênua ou corajosa... de qualquer forma, o que aconteceu? Conseguiu descobrir a origem dos rumores?
— Os rumores afirmavam que um Lorde estava se fortalecendo dentro de uma masmorra remanescente da Grande Guerra. Essa criatura estaria reunindo os monstros e alterando seus padrões de comportamento."
Sheyla está contando toda essa história e, às vezes parece inquieta, outras bem energética e convicta em suas palavras. Não dá para saber muito o que ela está pensando sobre isso.
— Lorde? — o que é isso, um tipo de criatura ou título?
— Uma criatura sombria. Bem, é um título usado até mesmo para alguns monstros específicos. Nós os classificamos com títulos da nobreza para determinar o quão influente e poderoso é cada criatura... O mais poderoso seria o Rei Demônio, logo abaixo os Príncipes, Conselheiros, Duques...
Ah! Então isso é sobre a hierarquia dos demônios. Como de costume em histórias desse tipo, aqui também parece não faltar. E pensar que já entrei nessa história sendo creditada como “Princesa Demônio”. Então, eu estaria abaixo apenas do Rei Demônio?
— E vocês encontraram algum Lorde?
Ela me encarou por um momento... pensativa. Depois disso, sorriu e apontou para mim:
— Bem, você está aqui.
— Então você acha que eu sou essa criatura, o Lorde? — que audácia, hein?
— Não foi isso que quis dizer... pelo poder que você demonstrou. Se alguma coisa estivesse naquela floresta e controlando os monstros... seria você. É claro que isso não parece ser verdade. — Sheyla esclareceu rapidamente.
— Mesmo que vocês ainda duvidam sobre minha história, é como eu disse antes, sequer sou desse mundo — ressaltei.
— Sim, Yami.
— Bem, esse era o motivo principal, mas os rumores falavam sobre essa masmorra. Encontraram algo lá? — perguntei interessado.
Sheyla ficou um tempo sem dizer, provavelmente escolhendo as melhores palavras.
— Não. Assim que chegamos naquele lugar... — ela respirou profundamente antes de continuar: — realmente existia algo como a entrada para uma masmorra.
— Oh... e?
— Só o fato de ser verdade já nos preocupou e decidimos voltar com essa informação. Então, antes que pudéssemos voltar... alguma coisa nos atacou.
— Como assim?
— Não me lembro bem... só sei que era uma criatura grande o suficiente para tomar todo o nosso campo de visão, e, além disso, ela nos enfrentou sozinha. Eu e o grupo do Frederick. — Sheyla explicou, um arrepio percorrendo sua espinha ao recordar o momento.
— Hmmm... algo desse tamanho estaria naquela floresta?
— Quem sabe? A luta mostrou-se verdadeiramente perigosa, e o que fizemos foi nos proteger e esquivar dos ataques da criatura. — Sheyla respondeu, a preocupação evidente em seu rosto.
Uma criatura bem poderosa, pelo visto. Cruzei meus braços e balancei minhas pernas por um momento, depois disso, perguntei:
— Isso significa que vocês estavam conseguindo lidar com ela?
— Será que foi algo assim? — Sheyla balançou a cabeça lentamente, parecendo incerta. — Acho que não. Para falar a verdade, a criatura parecia muito mais como se estivesse guardando o lugar do que querendo nos atacar diretamente. É claro que no início ela nos atacou e por pouco não morremos... Mas só foi afastarmos um pouco que ela parou de nos atacar.
— E depois disso? — perguntei intrigado.
Sheyla olhou para cima e fechou os olhos. Pelo jeito está tentando relembrar o evento.
— Depois disso... bem, não me lembro. Quando achei que tínhamos encontrado uma brecha para sair, alguma coisa me acertou e desacordei. Depois que abri meus olhos, já estava naquela caverna. — Sheyla se inclinou para frente e ficou me encarando. — Você diz que eles me traíram, certo? Mesmo que eu não tenha visto de onde o golpe veio para me acertar, creio que não foram eles.
— É verdade que você foi envenenada por alguma coisa, e Yaga comentou sobre seus “companheiros”, mas pensar que Frederick e seu grupo poderiam fazer algo assim... Você que os convidou para o grupo e para missão, certo?
— Sim.
— O que me diz sobre eles?
— Eles? — Sheyla suspirou. Ainda assim pude vê-la sorrir um pouco, era uma sensação nostálgica para ela. — Frederick é um conhecido meu desde pequena, ele pode ser um pouco egocêntrico às vezes, porém, sempre foi uma boa pessoa. — Egocêntrico é? Será que ela está falando daquele tal “duelista”? — Seus companheiros também são um pouco exagerados, mas todos são ótimos aventureiros.
— Sério?
— Sim. Pode ter certeza de que na Cidade da Fronteira, poucos se arriscaram a explorar o desconhecido ou um rumor no meio da Floresta de Erthemon, ainda mais se esses rumores estivessem considerando a aparição de um Lorde.
— Devo então supor que os aventureiros mais comuns seriam do tipo “Ninx”?
— Tipo “Ninx”? — deu um breve sorriso — É algo diferente para dizer... você tem razão, sim — respondeu Sheyla parecendo um pouco triste.
Olhei para Sheyla.
Seus olhos refletem preocupações e incertezas. Mesmo que eu não me importo “tanto”, não posso jogar meus possíveis aliados para baixo, né? Tentei confortá-la de alguma maneira:
— Bem, com isso dá para entender por que você não estava confiante nessa traição. Claro que sem provas concretas, não dá para descartar o caso.
— Então nem você tem certeza, é? — Sheyla suspirou profundamente, seus ombros caíram um pouco, e ela olhou para o chão.
— Desculpe se pareceu que eu soubesse disso como uma verdade absoluta — respondi, passando a mão pelo cabelo. Por que me sinto como se fosse a vilã da história aqui?
— Tudo bem — Sheyla sorriu fracamente e balançou a cabeça.
Ambas ficamos em silêncio por um momento. O que será que ela está pensando? O que devo falar agora? Essa tensão se formando... tenho que quebrar esse silêncio:
— Por fim, o que você acha que aconteceu com ele e seu grupo? Essa criatura que vocês encontraram foi tão forte ou ameaçadora a ponto de vocês não terem conseguido enfrentá-la?
Sheyla franziu a testa, provavelmente lembrando-se daquela noite na floresta. Ela apertou os punhos, a ansiedade em seu coração crescendo antes de afirmar:
— Não recordo de todos os detalhes, como eu disse, mas se era tão grande quanto me lembro e lutou contra todos nós de uma vez, aquela criatura poderia ser ao menos considerado um Comandante, não, talvez um General?
Isso não parece estar certo, em vários níveis.
— E já se passaram alguns dias que isso aconteceu. Pelo que o guarda comentou, só recentemente o grupo de Frederick voltou, certo? Tem alguma coisa suspeita no ar.
— Sim — afirmou Sheyla com um olhar sombrio no rosto.
Suspirei e olhei para cima. O céu nesse mundo tem uma coloração bem misteriosa. Antes que caia a noite já é possível ver bastantes estrelas e, bem... aquele “Saturno” gigantesco.
— Certo. Vamos finalizar esse assunto por enquanto... e vamos voltar ao principal: como assim contar para seus superiores? Onde eu fico nisso ou você pretende me levar durante essa reunião?
Sheyla hesitou por um momento antes de responder:
— Não... quero dizer, o melhor seria não.
Hmmm... o que temos aqui? Mesmo não percebendo, talvez eu tenha soltado um leve sorriso irônico antes de começar a brincar com ela:
— Ah, então você vai omitir coisas para eles? Ninx tinha reclamado sobre você ser uma princesa-perfeitinha, só que pelo visto é tão humana quanto ela.
— Quê? Eu nunca disse que era uma princesa perfeita... — Sheyla ficou envergonhada e baixou o olhar antes de continuar: — e eu sei que estou cometendo um pecado ao omitir sobre você para eles. Mas, é como você mesma disse, se eu lhe trouxesse problemas, como eu poderia esperar que você nos ajudasse? Eu não me preocupo comigo. Se eu tiver que ser julgada posteriormente pela Ordem ou pela Deusa, desde que você possa me ajudar... eu aceitarei de bom grado.
— Essa é a Sheyla que “conheço” — coloquei minha mão direita sobre seu ombro.
— hmpf, não brinque comigo assim...
Bem, vê-la sorrir dessa maneira a faz ficar muito mais bonita, né? De qualquer forma... O que deve ter acontecido para que tanto ela, quanto aqueles aventureiros tenham terminado desse jeito? Será que isso tem a ver com meu aparecimento aqui?
— Então, se eu não irei contigo, onde deveria ficar? Você não espere que eu... fique perambulando por aí como um mendigo, certo? — Ainda que não sinta fome, sede ou sono, não significa que eu aceitaria estar de qualquer maneira.
Sheyla pensou por um momento e, em seguida, sorriu bem determinada.
— Você pode ficar na minha casa, Yami.
— Tem certeza disso? — perguntei surpreso.
— Sim... até porque você agora é minha escrava, ok?
Espero que ela não esteja dizendo o mesmo que “animalzinho de estimação”, mas, ainda assim... vou ficar na casa de uma nobre? Melhor que dormir embaixo da ponte.
— Entendi, neste caso basta eu esperar na sua casa que assim que tu terminares sua reunião, você me mostraria a cidade, sim?
— Isso! — Sheyla ficou bem feliz e começou a afagar minha cabeça, novamente...
— ... — suspirei. — E já pedi que você parasse de fazer isso.
— Sinto muito — respondeu rindo, mas logo retirou a mão de minha cabeça.
Embora eu estivesse curiosa sobre o que aconteceu com Sheyla, seu grupo e até mesmo os eventos recentes na Cidade da Fronteira, eu podia confiar no Diário. Essas anotações seriam úteis caso eu esquecesse ou perdesse alguma informação, além disso, ficar fazendo perguntas incessantemente e demonstrando indiferença em relação ao ocorrido poderia prejudicar minha imagem de boa garota.
Pude perceber que Sheyla não era tão simples quanto parecia inicialmente, porém, ainda agia por impulso. Fosse naquela ocasião em que quase teve um destino trágico, ou agora com essa decisão. Aparentemente, ela não teme o que possa acontecer consigo mesma, contanto que isso beneficie os outros, não é?
Observando seu perfil com a luz do pôr do sol ao fundo, a cena se tornou ainda mais marcante. Como mencionei anteriormente, ela se assemelha muito à minha colega de trabalho da minha vida passada, até mesmo no modo peculiar de se envergonhar com coisas pequenas e ignorar assuntos sérios como se não fossem nada.
Sheyla, mesmo sem aceitar o contrato, acredito que você possa me ajudar bastante neste mundo, certo? Quanto às outras garotas, tenho minhas reservas.
E falando nelas, não estariam demorando muito na avaliação? Ao contrário de mim, elas não precisariam comprovar nada relacionado à escravidão, certo? Será que devo me preocupar com isso?
Mal comecei a me preocupar, e o Sistema me alertou quando as duas saíram do prédio e começaram a se aproximar de nós.
— Pelo jeito, elas terminaram.
— Sim — respondeu Sheyla.
As duas, Meril e Ninx, vieram até nós.
— Considerando que vocês não estão desesperadas, tudo deu certo, certo?
— Sim... foi um pouco difícil explicar...
— Explicar? — perguntei já esperando o pior.
— Explicar nossas... forças diferenciadas.
— O que você quer dizer? Aquele tal de Juulis... — tentei imaginar o que aconteceu.
— Não se preocupe com isso — disse Meril. — E, pelo visto, aquele homem irritante não tinha informações suficientes... ou melhor, capacidade intelectual suficiente para conectar mais que dois pontos.
— Não precisa falar assim do guarda — disse Sheyla, um pouco envergonhada. — Ele só é um pouco otimista demais.
— Você diz isso porque ele é seu “fã número um”, né? De qualquer forma, já podemos entrar na cidade — disse Meril, irritada.
— E você, Ninx, tudo certo?
— Sim.
— Entendo... bem, garotas, podemos ir?
— Sim, Yami. Aliás, para onde deveríamos ir agora?
— Ah, sim... já discuti isso com Sheyla enquanto vocês estavam lá, mas eis o plano: Sheyla me levará para sua casa e eu ficarei lá enquanto ela resolve alguns problemas. Durante esse tempo, gostaria que você, Meril, buscasse as ferramentas para remover meu carro daquela colina e recuperasse seus próprios materiais de estudo.
— E eu? — perguntou Ninx.
— Ninx, quero que você vá atrás de informações sobre o grupo de Frederick e o último grupo em que você esteve.
— O quê? — perguntaram as três, surpresas.
— Bem, é possível que eu tenha entrado em contato com o grupo de Frederick e causado todo aquele medo deles — ninguém comentou nada, então elas já desconfiavam de mim. — E sobre o outro grupo... você precisa confirmar o que aconteceu, ok?
— Entendi.
— O que aconteceu, Yami? — perguntou Sheyla, olhando para mim e depois para Ninx. — Bem... cada uma de nós tem seus próprios problemas, pelo que vejo... esqueça que perguntei.
— Não se preocupe com isso. Mais uma vez, devo lembrá-las de que estamos aqui tanto para resolver seus problemas pendentes quanto para que eu possa conhecer essa cidade “humana”. — Digo isso, mas na verdade eu também sou humano, né? — Talvez eu consiga ajudar algumas pessoas durante nossa visita, mesmo assim meu objetivo principal é coletar informações deste mundo.
— Tudo bem, Yami — concordou Sheyla.
— Certo, Yami — afirmou Meril.
— Pode contar conosco! — disse Ninx, com energia.
Então, como é essa Cidade da Fronteira? Vamos ver se eu encontro algo de valor nessa cidade, e, melhor ainda, se consigo encontrar informações valiosas sobre esse mundo para o qual vim parar.